segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

carnaval em Angra 4.4 - última parte

Depois de passada a roleta, ficamos uma meia hora reconhecendo o lugar, enquanto esperávamos a chegada de nossos objetos de desejo. O hall de entrada, os imensos decks ao ar livre, com vista para o escuro e fétido mar que margeava a cidade de Angra (mas que assim, à distância, era uma imensidão aprazível, cujo único cheiro bafejado pelo vento era o de uma tênue maresia).



Onde ficavam os banheiros – tanto os masculinos quanto os femininos, estes, embora vedada nossa entrada, eram os mais importantes - os lugares mais barulhentos e mais sossegados, isto dentro do salão, porque se buscássemos algum resquício de paz, só lá embaixo, com os pés na areia. Enfim, esquadrilhamos o Aquibadã.



É lógico que fuçamos os dois bares do lugar e até tomamos umas cervejas. Eu fiquei numa latinha só. Ainda me revirava o estômago o porre que tomara no carnaval retrasado. A título de “aquecermos as turbinas” e cometermos haraquiri em nossa timidez, nos reunimos na casa do Pedro Moustache e tomamos todas antes do primeiro baile de carnaval no Clube dos Funcionários, em Volta. Apaguei e fui levado semiconsciente pra casa, antes do grito de abertura do carnaval. Desde este trágico evento, carnaval e porre nunca mais foram conjugados (executados) por mim numa mesma sentença.



Enfim, eram 11h e meia, mais ou menos, quando as gatas de Barra Mansa pintaram no Iate Clube. Eram 13 meninas – algumas realmente lindas. Nós as avistamos do segundo andar – a entrada e o salão onde rolava o baile ficavam no térreo. Estávamos apreciando e contando a bela legião, quando Aurélio, escandaloso que só, começa a berrar, ou melhor, a falar mais alto, frases desencontradas:

-- Caralho! A Suicídio taí!! É aquela de flor amarela presa nos cabelos. Já te falei dela, Eros. Viu, Gugu? É ela!!!!



Explica-se: a menina a quem Aurélio referia-se, pela alcunha de Suicídio – “por ela, o cara até se mata”, exagerava o capetinha de Volta Redonda – era a mais recente “descoberta” dele, que a achava lindíssima. Menos, Aurélio, menos. A menina, cujo nome não me lembro, era bonita, verdade. Esguia, elegante, bela pele e belos olhos amendoados. Mas não tinha qualquer traço de sensualidade.

Quando viu que Suicídio – depois entronizada como Suicídio 1, quando apareceu outra da mesma estirpe – era uma das meninas de Volta que foram convidadas para se juntar às barramansenses, Al ficou eufórico. Parecia uma ave-do-paraíso macho – até onde poderia ir a macheza travestida de diabinho de cetim vermelho.

Aurélio tinha (ainda deve ter) o raro hábito de lascar um apelido em alguém e consagrá-lo como definitivo, ainda que fosse o único a repeti-lo.

-- então venham você, Alexandre e o Verrugão (ao referir-se a um amigo que tem uma protuberância íntima, digamos, assustadora).

Ou: -- Fala para o Porno-man (este não me lembro da justificativa, nem a quem ele chama quando sai com esta) me ligar.



Mas Suicídio colou porque nós não a conhecíamos. Eu, Enéas e Gugu sequer sabíamos seu nome de batismo. É lógico que antes mesmo de a encontrarmos em Angra, Al tinha a ficha completa da menina: nome, idade, quem namorou, por quem suspirava, escolaridade, tipo sanguíneo, etc.



Mas fora Aurélio, ignorávamos seu nome, e ainda que soubéssemos, subreptilinarmente não queríamos dar este crédito a ela. Imagine eu falando:

- Olha que graça aquela baixinha, a terceira à esquerda da Maria Eduarda (nome hipotético da Suicídio).

Então para gáudio do inventor de apelidos, sempre nos referíamos à ela como Suicídio.







Enquanto isso, tentava me manter o mais confiante possível. Dei umas voltas no salão sozinho; depois fui falar com Andréa e Nazareth, isso na companhia de Enéas, Aurélio e Gugu. Pulei com Andréa, depois com a irmã dela; nunca investindo nelas. Era como se fossem vitrines móveis, que me permitiam vislumbrar possíveis flertes.

Vislumbrei algumas chances – tinha uma Mulher-Gato chapadaça e a mercê, primeiro de um grupo de centuriões romanos, depois de um trio de pierrôs. Dei um tchauzinho de longe para a Eliane, que pulava num canto do salão. Ela trajava meias-arrastão que me causaram uma ponta de arrependimento.



Enéas também deu voltas despretensiosas com as duas irmãs. Gugu manteve o profile discretíssimo e sequer se aventurou pelo salão; Aurélio marcava passo no mesmo lugar, sempre atento às movimentações de Suicídio, enquanto desenvolvia, displicentemente, o hábito de botar o rabo que saia dos fundilhos de sua fantasia de Belzebu entre as pernas.



Bem, a primeira noite passara em branco. As mais dadivosas e espevitadas de Barra Mansa já ficaram com sujeitos ignóbis – algumas com maurícios; outras com notórios sacripantas; uma sétima com um boiolinha metido a homem.



Meu Deus!!! E eu era tão gente boa ... Feio, mas gente boa. Bocó, mas gente boa. Duro, mas gente boa. E a Natália ficou com aquele troglodiata que sequer deveria saber falar, pois desde que eles se atracaram, tão logo ela chegou, não vi trocarem palavra, apesar da intensa movimentação labial. Mas não me abati. Mantive o moral em alta. Tínhamos mais três noites pela frente.



Segunda noite. Resultado parecido com a primeira, com uma baixa na minha auto-estima, que eu estava vendo minguar a passos largos: Eliane ficou com um bem comportado pirata, a julgar pela perfeita combinação do tênis – branco, com detalhes em vermelho e tiras pretas - com o resto da fantasia – bermuda preta, camisa acetinada branca e lenço vermelho amarrado na cabeça.



Terceira noite. Começou a me bater o choque de realidade: eu era tímido demais, cioso em excesso de minhas limitações – sequer tentei ficar com uma viking loura, bonita, que bêbada feito um gambá, bastava ouvir uma senha (acho que era “Aiôôô, Silver”) que saia trotando pelo salão agarrada ao moleque que pronunciasse as palavras mágicas. Quando o galope já ia avançado, a loura se rendia aos apelos do rapaz que por, em média, dois minutos -- tempo suficiente para dar duas voltas no salão -- podia sapecar quantos beijos e agarrões conseguisse.



A bêbada viking surgiu evoluindo ainda sóbria perto de nós, mas antes das duas da manhã já estava chamando “urubu de meu louro”. E fez-se fila de interessados em dar duas voltinhas pelo salão com ela. Nenhum de nós quatro demonstrou interesse na loura, com exceção o Enéas. Só que quando ele entrou na fila para dar uns catrancos na viking, contava-se mais de 18, mas cê sabe como é carnaval....De 18 para 180, basta um estalar de dedos. Eu sei que o Enéas não deu os pinotes com a loura, porque ela fora resgatada por um casal de primos ou por dois amigos, sei lá. Já não tinha mais o chapéu chifrudo e estava prestes a ficar sem a bata. A machadinha de plástico, para se defender de possíveis inimigos e predadores, sumira óóóóóó, fazia tempo.



Sei que minha auto-confiança estava indo para o brejo. Ficava junto do Aurélio e do Gugu, que limitavam-se a comentar, entre copos de cerveja, o quanto a odalisca, a feiticeira eram gostosas. Mas eram comentários para ninguém ouvir. Imagina se aquela desenibida fantasiada de modelo e atriz escuta a gente falando dela?!! Peraí, existe fantasia de modelo e atriz?



Parecíamos integrantes do bloco carioca “Concentra, mas não sai”: na beirada do salão com copos de cerveja na mão e a ginga típica de quem é natural de Volta Redonda. Vez por outra, dávamos juntos ou separados voltas no salão, para assegurarmo-nos que não tínhamos morrido (pelo menos era essa a minha sensação).



Aurélio, no começo da terceira noite no Aquidabã, chegou a ficar preocupado com a ausência de Suicídio. Mas logo Andréa, que era prima da dona da casa de praia onde as belas de Barra Mansa e de Volta estavam hospedadas, tratou de tranquilizá-lo:

-- A Isabel (poderia ser Suelen, ignoro solenemente o nome da moça)? Ela não veio porque está um pouquinho febril, resfriada. Amanhã vem até na matinê, de tarde.



Mas Aurélio só sossegou quando avistou o mauricinho com quem trocou bem-comportados beijos na véspera. Usava uma desconfortável, porque calorenta, pólo La Coste, bermuda cargo e tênis Adidas, vestimenta semelhante à que ele usara na noite anterior. Só que na ausência de Suicídio, ele jogava uma conversa numa ruiva gostosona sentados na mesa dela.



Descobri que tem gente que vai aos bailes só para pular mesmo. Que consegue se divertir com batalhas de confete e serpentina ou simplesmente com a música estridente e repetitiva tocada por uma bandinha safada. Gente diferente de mim (que ia aos bailes cheio de segundas, terceiras, quartas e quintas, principalmente quintas, intenções). Andréa e Nazareth eram assim. Cansei de ver caras - alguns limpinhos, outros mamados que só – tentarem pular com elas e serem refutados imediatamente. E sobrava alegria e sobriedade naquelas marujas que se fartavam de água ou, muito eventualmente, de um refrigerante – na época, não tinha diet.



A mim, cheio de más intenções, restava-me o consolo de mirar o mar, um pouco afastado daquela algazarra. Definitivamente, eu não tinha o mínimo de competência para concretizar meus ideais devassos. Mas a pá de cal naquele que seria o carnaval redentor viria num sutil e macio tapinha nas costas.

-- Cê tá bem? – perguntava-me Eliane, que se afastou do pirata arrumadinho alguns metros para me perguntar isso.

Caraí!!! E o pior é que sua preocupação era sincera; preferia mil vezes que soasse como vingança, que ela viesse tripudiar do meu fracasso. Mas não.

-- Você está se sentindo bem? Bebeu muito? – perguntava, com devotamento sincero.



-- Que nada, Eliane!! Só vim tomar um ar. Já tô voltando para lá. Afinal, a gente tem que aproveitar, já ta acabando.... – dei um pinote de alegria convicta e voltei para o tumulto do salão. No fundo, e no raso mesmo, queria que ela me abraçasse, me beijasse e esquecesse aquela frase imbecil e imprevidente “Quero terminar” e aquele gentil pirata. Mas me restava um tiquinho de dignidade e saí dali do deck deixando o casal à vontade para os derradeiros amassos daquela noite.

De volta aos bêbados, às devassas, aos foliões sinceros e aquele som horroroso tocado pela bandinha, me baixou o banzo quando ouvi pela décima-quarta vez os vocalistas (dois negões, uma mulata magra e uma senhora branca, gorducha e baixinha) entoarem “Oh, quanto riso/ Oh, quanta alegria/ Mais de mil palhaços no salão...”. Que saudades do meu quarto, do meu pijama, da minha cama.







Nem preciso dizer que me recusei terminantemente a ir na matinê de terça-feira. Preferi ficar jogando tarrafa no rio que desembocava na baía do Pontal, próximo ao condomínio de casa vizinho ao I.C.A.R. Enéas também preferiu ficar dormindo na casinha do Pontal. Mas estava só se poupando para a noite. Ele estava às voltas com uma tal de Adriana, nativa de Angra mesmo.



Aurélio e Gugu foram sozinhos à matinê de onde voltam umas seis e meia, três horas e meia depois de terem deixado o Pontal. Al vestiu uma roupa de “civil”. A fantasia ficara guardada para a última noite.



Eu não queria saber mais de carnaval. Eu era um crítico incorrigível e não conseguia me ver, lépido e faceiro, investindo em um amor de carnaval, que duraria, no máximo, algumas horas. Tinha senso de ridículo. Sabia que precisava conhecer bem a menina para chegar. Aparência e indiferença a tocos não eram meu forte.

- Devia ter te ouvido, Aurélio – reconhecia. – Não devia ter despachado a Eliane.
Caralho!! Admitir que o Al estava certo, era o cúmulo do erro. Ir ao Aquidabã para quê? Para mim, o carnaval acabou, mesmo antes de ser reconfortado pela Eliane.

Bem, tanto insistiram que fui demovido da idéia de dormir cedo e fomos, os quatro, para o Aquibadã. Chegamos lá, meia-noite e meia. Eu sentia os esforços de jogar rede no rio parte da tarde e só dei três voltas no salão. Com Andréa, com Nazareth e uma terceira sozinho, só para comprovar que o pirata da Eliane não era tão gentil assim. Empenhavasse em sufocá-la com um tremendo e vil chupão. Só não investi contra o sujeito, porque ela parecia estar gostando e muito.



De resto, fiquei “concentrado mas não saí”, ao lado de Aurélio e Gugu. Enéas sumiu. Na companhia de Adriana, é claro. Gugu só tinha olhos para uma angrense amiga da Andréa. Mas só olhos, porque coragem para falar com ela, ele não tinha.

Al seguia obcecado na Suicídio. Quando ela e mais três amigas, de narizes igualmente empinados, deram três voltas pelo salão, Aurélio ficou eufórico. Convenceu Gugu a segui-las. Como recém-descidas de um pedestal, lançavam olhares reprovadores àquela plebe ignata. O mauricinho que sapecara-lhe umas bitoquinhas no domingo e agora entretinha-se com a ruiva, bem mais fornida do que ela, também foi fulminado pelo olhar de desdém de Suicídio.

Na segunda volta, Gugu parou próximo a um grupo de meninas, entre as quais Andréa e a menina de Angra. E não é que ele puxou papo com a guria?! Através da
Andréa, mas puxou.



Enquanto isso, Al acompanhava, embevecido, o “desfile” altivo da sua princesa entre os plebeus. Quando completou a terceira volta, ela e as três asseclas subiram as escadas e se refugiaram, enojadas, numa das muitas mesas reservadas para as meninas de Barra Mansa.



Faltava meia hora para o fim do baile. Se eu não dependesse do Aurélio, já tinha ido dormir no Pontal há séculos. Já passava de cinco e meia da manhã, quando a bandinha entoou pela última vez, naquele carnaval, “Ai, ai, ai, aiaiai/Tá chegando a hora/ O dia já vem raiando, meu bem/ Eu tenho que ir embora”. No salão, restos da batalha carnavalesca travada há pouco: confete, serpentina, garrafas plásticas de refrigerante, a viking louraça, que voltou a encharcar-se de vodca, os primos que foram resgatá-la de uma tribo indígena canibal, nós quatro – Enéas reaparecera – e outros desconhecidos que esperavam os outros foliões saírem.

Havia um espírito nostálgico entre os casais e grupos que iam se deixando ficar. Até o Aurélio, que a ninguém abateu, respirava esta atmosfera idílica. Eu só queria esquecer mais aquele trágico carnaval, as cagadas que fizera antes de pisar no Aquidabã e... aiiii!!! Quem eu vejo sentada de mãos dadas e rostinho colado na entrada do salão? Eliane! Trocando beijos bem mais que protocolares com o pirata tricolor. Se arrependimento matasse...



Não posso dizer que estava sozinho na merda. Enquanto esperávamos o salão esvaziar, Aurélio seguia encarando de longe Suicídio. Botar o rabo entre as pernas havia virado um hábito arraigado. Eis que Suicídio põe-se a olhar em nossa direção. Aurélio sustenta o olhar e diz, eufórico, baixinho:

-- Olha!! Olha!! A menina tá me encarando!

Com a ar blasé de sempre, Suicídio pergunta a uma menina que desce as escadas ao seu lado sustentando o olhar e abrindo espaço para uma pergunta, no mínimo, vulgar e capciosa:

-- Olha aquele bigodudo fantasiado de capeta. Será que é viado?

sábado, 19 de dezembro de 2009

Carnaval em angra - 3

Passamos mais três dias em casa, e vrrumm...Já estávamos no caminho de Angra novamente. Três dias antes do primeiro baile de carnaval no Aquidabã. Tempo mais que suficiente para tomar decisões apropriadas para o maior (o primeiro do novo Eros, garanhão, pegador) carnaval de minha vida.

Na noite do mesmo dia que chegamos ao Pontal, fomos para Angra.
Antes de encontrarmos com as meninas, já na Rua do Commercio, a principal da cidade, anunciei, resoluto, aos meus companheiros, ainda no Fiat
do Al.
-- Hoje vou terminar meu namoro com a Eliane. Carnaval tá chegando, vai ter um monte de gostosas de Barra Mansa, e eu não quero saber de compromisso - afirmei, com ares do mais novo boçal do pedaço.

Aurélio ainda me advertira, solícito:
-- Não faz merda, Eritos. Vai que num arruma ninguém nos bailes. Vai fazer o quê? Ficar com cara de bunda, chupando o dedo? Melhor você ficar com a Eliane...
-- Acha que sou louco? Eliane vai pular no Aquidabã também... Quero é distância... Com Bárbara, Renatinha, Natália (é claro que são nomes fictícios, não me lembraria de ninguém, a não ser de uma, a preferida do Aurélio) no baile, cê acha que eu entraria de mãos dadas com a Eliane? – justificava, canalhamente, minha opção por terminar o namorico de verão.

E eu falava das meninas de Barra Mansa como se as conhecesse. Sabia seus nomes – eram famosas para parúaras como nós - mas nunca trocara palavra com elas. Mas neste carnaval queria ver alguma resistir ao meu charme e à minha virilidade. Naquele momento, eu realmente acreditava que era charmoso e viril.

Encontramos as meninas. E eu queria me livrar de qualquer compromisso com a bonitinha de olhos azuis.

-- Oi, Eliane. Tenho que te dizer uma coisa – comecei, depois de um beijo não mais do que protocolar, num banco da praça que fica em frente ao cais. – Quero terminar.
Era evidente a surpresa da menina. Titubiou:
-- Mas, mas o que que houve? Tava tudo bem com a gente até você ir para Volta Redonda...
-- É... Mas o carnaval taí. E num gosto de manter namoro durante o carnaval – esnobei eu, como que gabaritado por muita experiência, antes de proferir o chavão impronunciável – Acho melhor ir cada um pro seu lado.
Era visível a decepção de Eliane, mas ela foi elegante e prática.
-- Certo, você é quem sabe. Tudo bem, então. Amigos? – propôs ela, me dando um abraço fraternal.

Pronto. Dissipei um problema, sem criar outro: a inimizade de Eliane.

Na quinta-feira, antevéspera de sábado de carnaval, um encontro aumentou significativamente nossas chances com as beldades de Barra Mansa. Trocamos a manhã no Pontal por boas horas em Angra. E fomos a uma das únicas praias razoáveis de Angra. A Praia das Gordas, vizinha ao Iate Clube do Rio de Janeiro (não me perguntam a razão dos nomes; ignoro totalmente).

Lá, graças ao estilo “entrão” do Aurélio, ficamos conhecendo Andréa, sua irmã, Nazareth (não, não são nomes fictícios) e mais três meninas de Barra Mansa. Longe de “abalarem Bangu”, elas eram ótimos canais até as iguarias barramansenses (ou “barramansuínas”, se o assunto fosse alguma querela envolvendo habitantes da cidade vizinha a Volta Redonda). Ainda mais que estavam hospedadas na mesma casa (uma mansão) que “nossas” meninas. Elas nos contaram que durante o carnaval deveriam ter umas 15 meninas, algumas de Volta Redonda.

Andréa e Nazareth eram gurias legais e bonitas – mas naquele verão, só tínhamos olhos para as outras, as sebosas e metidas que sequer sabiam da nossa existência – quanto mais de nossas pretensões.

Chegou o grande dia e eis que pontualmente às 11 da noite adentramos o Aquibadã, cheios de ímpeto juvenil.

Antes, porém, sacaneamos muito, eu e o Enéas, principalmente, o Aurélio e sua fantasia de diabo.

Aurélio vestido, fizemos alusões à masculinidade do traje. Mas a fantasia do Gugu?
-- Ih, Aurélio, me esqueci de trazer – disse Gugu, entre sorrisos que denunciavam que a frase soava como “me lembrei de esquecer”.
Foi aí que o Enéas instigou o demônio, de cetim rubro, enquanto o Melão (me lembrei neste minuto que também chamávamos o cabeçudo do Gugu por este apelido), já vestia seu traje de “civil”.
-- Que sacanagem, Gugu!! A d. Geralda passa noite em claro fazendo a tua fantasia e você sequer a traz para cá – disse Enéas, esperando uma reação do Al.
O esporro do Aurélio veio quase imediatamente – só não veio contíguo a incitação do Enéas porque o Aurélio, naquele momento, fazia uma barbichinha com lápis preto que ele pegara com sua irmã, Celeste.
-- Pó, cê num esqueceu. Não trouxe porque não quis. Putaria com a Geraldinha... Ela deu um duro danado... –disse Al, botando, pela primeira vez, o rabo do capeta entre as pernas, como um pinto.
Este gesto, ele repetiria, displicentemente durante todas as quatro noites de carnaval.
Sei que entre cobranças de Aurélio, desculpas esfarrapadas de Gugu e muitas risadas minhas e do Enéas, partimos para o clube.

Carnaval em Angra - 2

Eu, Enéas, Aurélio e Gugu compráramos ingressos para todas as noites de carnaval no Aquibadã, na praia do Anil (Isso! Me lembrei do nome da praia mais popular e poluída de Angra!). De quebra, ganhamos entradas para as duas matinês.
Minha performance em carnavais era indigna de nota. Com a manemolência de um norueguês e a desinibição de um coroinha de igrejinha do interior, era um zero à esquerda com meninas (fossem lindas ou canhões, minha incompetência era bem democrática) nos salões carnavalescos - e também fora deles. Eu era tímido demais. Achava uma falsidade quatro dias de devassidão para um sujeito bocó os outros 361. Só porque era carnaval? E cerveja e toda a sorte de bebidas alcoólicas estavam liberadas? Isso para ficar no teor etílico e lícito da “embriaguez”...
Cada vez que a bandinha entoava “Bandeira branca, amor/ Não posso mais/ Pela saudade/ Que me invade/ Eu peço paz” – mote para o cara lascar um beijão na boca da menina que pulou a música anterior com ele, independentemente de se conhecerem há 20 segundos – eu só queria estar de pijamas, dormindo no meu quarto.

Mas “este carnaval não vai ser igual àqueleS que passarAM” apropriava-me eu, confiante como nunca, da letra de outra marchinha conhecida.

Incrível o que uma namorada, ainda que de verão, não faz na alma espinhenta de um adolescente...

Eu e Eliane nunca passávamos de uns amassos junto ao muro de uma das muitas igrejas de Angra, ou de beijinhos mais comportados numa lanchonete onde sempre pedíamos sorvete – tinha um de maracujá que era um sonho.
Mas aquele namorico me encheu de moral. Comecei até – sortilégio dos sortilégios, equívoco dos equívocos – a me achar bonito. Bom papo. Irresistível mesmo.

Faltavam sete dias para o carnaval e depois de duas semanas direto no Pontal, voltamos ao Voltaço, no Fiat 147 do Al. Mais para pegar grana para passar o carnaval do que por qualquer outro motivo. Não, minto. Aurélio e Gugu foram
buscar fantasias que d. Geralda, mãe de Al, fizera exclusivamente para a ocasião.Tinha perdido noite de sono para confeccionar tudo a tempo.
-- Anda, Gugu. Vem aqui pra casa. As fantasias estão prontas. Vamos experimentar que a Geraldinha ainda pode dar um jeito, caso não estejam boas – Aurélio convocara Gugu por telefone, no dia seguinte à nossa chegada em Volta.

Em dois tempos, Carlos Alberto Barenco Pinto, o Gugu, estava na sala do apartamento do Aurélio. Eram vizinhos no Aterrado, bairro onde morava boa parte dos nossos companheiros de Macedo Soares.
Sem muito alarde, d. Geralda tirou, cuidadosamente, as fantasias de uma sacola plástica.
-- A sua, Aurélio...E a sua, Gugu... – anunciava, orgulhosa, Geraldinha, assim chamada pelo filho pela pouca estatura. -- Não tinha outro pano. Este era o mais fresco que achei.
Quando Aurélio viu a sua e põe-se de cuecas – afinal, em casa só estavam sua mãe e um amigo – exclamou, enquanto vestia a fantasia:
-- Pô, Geraldinha, muito maneiro!!! Cê caprichou!!

D. Geralda caprichara mesmo. Ficou muito legal. Não sei se para um homenzarrão como o Aurélio.

Tratava-se de um macaquinho – um macacão sem calças compridas – num tecido que lembrava cetim, todo vermelho, cujo peito era aberto para melhor ventilação. Do short, a roupa subia pelas costas e terminava num capuz, de onde saíam dois chifres escuros. Ah, nos fundilhos também foi costurado um tecido preto, que graças a um enchimento, tinha consistência mais dura, como os chifres. Era uma versão menos calorenta do capeta.

Al era um júbilo só, feliz da vida com sua fantasia de Coisa-ruim rubro-negro (Pleonasmo? Todo rubro-negro é Coisa-ruim?), abraçava d. Geralda, beijava-a e a tirava do chão aos berros de “Geraldinha é campeã”.

D. Geralda tentava manter a sobriedade diante da felicidade do filho que tanto amava e mimava.
-- Me põe no chão, Luís Aurélio. Pára com isso – dizia, no fundo, radiante com os rodopios nos braços de Al.
Gugu mal disfarçou a decepção. O Aurélio vestido de capeta, peito e pança à mostra, com aquele capuz com chifrinhos e aquele rabo preto no meio da bunda era a própria visão do inferno!!

-- Maravilha, d. Geralda. Puxa, brigadão mesmo. Ficou muito bacana -- disse Gugu, já se encaminhando para a porta de casa
do apartamento de Aurélio.
¬¬-- Ei, ei, Espera aí, cara. Cê num vai experimentar não? Este seu cabeção pode num caber no capuz e aí? Aproveita que a Geraldinha pode arrumar isso... – disse Aurélio, já ressabiado com o pouco entusiasmo demonstrado pelo companheiro.

Imediatamente, Gugu sacou sua fantasia do saco plástico e vestiu só o capuz enchifrado, e mostrou que sua cabeçora cabia no capuz de sua fantasia.

-- Viu, Aurélio? Perfeito, perfeito – afirmou Gugu, retirando o capuz da cabeça e socando a fantasia de volta à sacola. -- O resto nem precisa experimentar... A senhora num fez com as minhas medidas? Então, num tem erro.
Até mais, Aurélio. Brigado, d. Geralda.


A mãe do Aurélio mal teve a chance de balbuciar um “mas” e contestar a saída intempestuosa de Gugu.

Carnaval em Angra 1.1

Em fevereiro de 1979, passei o carnaval em Angra. Aquele era o último ano antes de ir para a universidade. Foi também o último verão passado na meia-água que tínhamos no Pontal, a 14 quilômetros de Angra – mas isso só saberia muito mais tarde.

Pela primeira vez e passados muitos anos – uns quatro, desde que me tornara adolescente, uma eternidade na época – arranjei uma namorada na cidade. O nome da moça era Eliane – e não era nenhum bagre não.

Dezesseis anos, bonitinha, tinha olhos azuis, talvez um tico rechonchudinha. Tinha uma irmã que era mais nova, uns 14, cujo nome não me lembro.

Sei que nós ficamos amigos dessas e acho que de mais duas meninas. E isso em Angra dos Reis, na cidade mesmo, para onde íamos todas as noites daquela temporada.

Tínhamos decidido passar o carnaval lá, já que em Volta nós não pegávamos ninguém. Ainda mais que soubemos que uma legião de ninfetas de Barra Mansa iria pular no Iate Clube Aquidabã, cuja praia, como todas da cidade, era horrível.
Meus companheiros de aventura eram o famigerado Enéas, que protagonizou outras histórias já descritas, o Aurélio e o Gugu.

O Enéas tinha cabelo liso num corte curto. Olheiras, um nariz um pouco acima da média. Um rosto comum. Tinha 1,75m mais ou menos. Sempre esteve mais para gordo do que para magro. Quando criança, “mamava” uma lata inteira de leite condensado, e gordinho, era delicadamente chamado pelos colegas da rua 40, onde morou, de “Banha”.

Aurélio era (ainda é, graças a Deus!) um figuraço!! Narigudo, um bigode quase ruivo, cabelos muito finos, uma calva (na época) que logo se transformou em fulgurante careca. Tem mais de 1,80m e, na época, uma pancinha de chope. Ganhara o apelido de Pastoso, pelas consistência de sua voz e morosidade de concluir um raciocínio.Certa vez me contou em duas horas e meia um filme que tinha duas. Depois daquele massacre narrativo, virou-se para mim e disse:

Que bosta de filme, hein, Eritos?

Não era um sujeito dos mais responsáveis – eventualmente fazia merdas inomináveis - mas em sua rudeza prezava como poucos a amizade sincera.

Gugu era a sombra do Aurélio. Unha e carne, tinha lugar cativo no banco de carona do Fiat 147, azul bebê, placa de Volta Redonda (só me lembro dos números: 3333) do amigo. Cabelos curtos, enroladinhos e castanhos-escuro pontuavam sua cabeça -– maior que a média. Tem (isso é imutável; bótox só aumentaria a circunferência) um rosto redondo, é troncudo e pouco mais baixo que Al (sei que o certo seria grafar o apelido com u, mas Au? Ninguém merece...).

justificativa

Como os textos são grandes demais – além de prolixo, me deixo guiar pelos desvãos da memória, como um gato guia-se pelo cheiro de peixe – resolvi dividir a crônica em capítulos.
De nada adianta, pois estão linkados irreversivelmente. Você precisa ler em ordem para encontrar algum sentido. Mas tem o efeito psicológico: “Oba, quatro textos SÓ gigantescos”.

Meus parcos leitores (só não os cito nominalmente porque posso ter perdido o poder de cativá-los e aí seria um erro grotesco arrolá-los como testemunhas), por favor, opinem.





Saibam que o que me importa é qualidade, não quantidade.
Observação: quando escrevi isso ainda não tinha concluído o quarto e último capítulo da saga “Carnaval em Angra”. Ou seja, tô mais vagaroso que cagado, isto é, cágado.

domingo, 29 de novembro de 2009

blitz da PM

O André sempre foi (acho que ainda é) o melhor amigo do Enéas. Mas houve uma época, acho que pela proximidade de nossas casas – o André mudara-se da rua 40, na Vila, para um bairro mais afastado, o Jardim Amália -- em que fui lugar-tenente do Enéas. Lugar-tenente é ótimo, excelente eufemismo para coadjuvante. Raramente fui protagonista. Mas esta falta de luz própria jamais me incomodou. Presenciei cenas impagáveis por conta disso.
Uma delas aconteceu numa das muitas noites em que rodamos pela cidade a bordo da Brasília bege do Capitão Enéas. O Juninho, como era tratado pela mãe, d. Aída, estacionou o carro em frente à minha casa, na rua 27, e conversávamos com as portas (as da frente) escancaradas. Passava pouco de uma da manhã, quando cruzou por nós uma patrulha da Polícia Militar, numa veraneio azul claro e branca.
Rondas feitas pela PM nas áreas nobres da cidade -- sim, o Voltaço tem áreas nobres -- eram comuns. Naquela época, meados de 1970, Volta Redonda era considerada área de Segurança Nacional por sediar a C.S.N. A Companhia Siderúrgica Nacional fabrica aço e ferro, considerados material estratégico na visão belicista-boitatá dos militares que chefiavam o país.
Voltando à vaca fria, a veraneio com cinco mal-encarados policiais a bordo, parou na frente da Brasília, depois de passar por nós à velocidade de cágado. Descem quatro PMs da viatura. Só fica o motorista. Dois deles vão até o Enéas; os outros dois vêm até minha porta, escopetas em punho. O cara que chefiava a patrulha, sargento Antunes, disse, curvando-se e apoiando os antebraços na porta do Enéas:
-- Boa noite, cavalheiros. Identidade dos dois, documentos do carro e sua carteira de motorista -- exigiu o sujeito, magro, não muito alto e barba feita.
-- Boa noite -- respondeu Enéas, pronunciando as duas únicas palavras ditas amistosamente aos policiais. -- Cê sabe com quem está falando?
Sargento Antunes tomara um susto com a petulância do moleque -- se bem que filhinhos-de-papai eram figurinhas fáceis numa sociedade de castas, como era Volta Redonda - mas recompôs-se num átimo:
_ Você pode ser o presidente da República, estou me lixando. Seus documentos, os documentos do carro e sua carteira de motorista.
- -- Sou filho do Capitão Enéas -- arrotava Enéas, com uma empáfia desmedida. – Moro na rua 26, quase esquina com a 31. Os documentos estão lá em casa. Sai só para trazer meu amigo.
Morava a uns 350 metros do Enéas, embora de minha casa não avistássemos a dele.
Sugeri que chamássemos o Celinho, meu pai, que dormia ali em casa .
-- Não, não, não, Eros. Deixa o Celinho dormir. Aliás, vai dormir você também. São quase duas da manhã. Vou até lá em casa preu provar pra estes brucutus (o adjetivo é meu, não me lembro do que Enéas chamou os PMs, mas era algo que tinha a ver com a truculência e a ignorância deles... meganhas, talvez fosse este o termo que Enéas usara) que sou filho do Capitão -- disse Enéas, fechando os vidros do carro antes de trancá-lo.
Não preciso dizer que vetei imediatamente a idéia de abandonar o barco.
Então Juninho, virou-se para o sargento, e disse, entre impaciente e autoritário:
--Vamos lá. Cês seguem a gente...
-- Seria mais rápido se vocês entrassem no carro e fossem com a gente. O cabo França e um outro praça iriam com a Brasília -- sugeriu, cavalheirescamente, o sargento.
-- Nem fodendo eu entro no carro de vocês. E nunca, nunca deixaria algum de vocês botar as patas no volante do carro de meu pai – devolveu, cavalgaduramente, Enéas.

Assim, lado a lado, fomos andando rumo à casa do Enéas com a Patamo nos seguindo.

Perguntei, quase segredando ao Enéas:
-- E agora? Você num tem carteira de motorista...Que merda!

-- E porque cê acha que eu tô levando estes imbecis lá pra casa? Quando o capita aparecer, eles vão se cagar todos, pedir desculpas e ir embora, de fininho. Quer apostar? – respondeu Juninho, resoluto.

Em três minutos, estávamos na casa do Enéas. As casas não ostentavam as grades que são obrigatórias na Vila atualmente, e a luz da varanda ainda estava acesa, o que significava que ainda faltava chegar alguém.


Pois este “alguém” acabara de entrar em casa. Antes, Enéas pediu, ou melhor, comunicou aos PMs que esperassem, no carro ou na varanda. Ele ia buscar o pai.

Assim que nós entramos na sala, os PMs iniciaram uma breve conferência na patamo.
-- E aí, vocês conhecem esse “Capitão Enéas”? – perguntou o sargento Antunes.
-- Um primo meu foi ordenança na casa do capitão. Ele só falava bem do cara e da família – afirmou o soldado Flores.
Ordenança era um empregado sem salário. Um soldado raso que era cedido pelo Exército para trabalhar na casa de um oficial. Na maioria dos casos, fazia a faxina pesada, como limpar latrinas.
-- Eu conheço, ou melhor, sei quem é. Ele, na verdade, entrou para a reserva como major. Agora manda num departamento da C.S.N.. É gente boa demais...— garantia o cabo França.
Outro praça também sabia da (boa) fama do capitão.
Só Antunes e um soldado nada sabiam a respeito do Capitão Enéas.
– Caralho, é melhor eu pôr meu galho dentro...


Ainda na sala, d. Aída, que ouve o barulho do filho chegando, sai do quarto do casal, envolta num roupão que combinava com a cor, bege, do creme que passara no rosto.
-- Juninho!! -- grita abafadamente ela. – Por onde você andava?






Cacei você por tudo quanto é lugar. Liguei para o Eros, o André... e nada!
Enéas esquivou-se dela, com um ”tá bom, depois a gente conversa” e já ia entrando no quarto, atrás do capitão, quando d. Aída, indignada com a indiferença do Juninho, alterou a voz:
-- Moleque!! Olha aqui, me respeita – olhos injetados, expressão irritada.
Enéas olhou-a e respondeu, se desvencilhando das mãos da mãe:
-- Num é nada disso, Aída. É que agora papai precisa conversar com uns guardinhas aí.
Estressada que só, d. Aída já imaginava o pior.
-- Deus do Céu!!Bateu com o carro!!! Machucou alguém?? Eros??
E eu me fazendo de jarro de planta.
-- Não, num aconteceu nada, tia Aída – disse eu, que diferentemente de meus amigos, costumava chamá-la de dona, não de tia.
E enquanto d. Aída vistoriava Juninho à cata de algum caco de vidro espatifado, o filho contou-lhe o que acontecera.
Foi o suficiente para ela mudar de atitude. E da busca dos resquícios de vidro passou aos tapas e cascudos no filho.

-- Peste!! E eu sem conseguir dormir até agora – disse d. Aída. – Não vai ser fácil acordar teu pai. Tava te procurando para que você o buscasse na casa do Jader, onde tinha um enterro dos ossos de um churrasco de carneiro. Encheu a cara de cerveja e tava cochilando com o seu tio na mesa, quando Aída me ligou. Dudu poderia ter ido buscá-lo, mas você saiu com a Brasília...Ainda bem que o Jader Jr. chegou e o trouxe para casa agorinha há pouco.

Dr. Jader era médico respeitado e primo do Capita. Os dois moravam na mesma rua, separados por umas oito casas, se tanto. Aída era a mulher do Dr. Jader, homônima da mãe do Juninho, e Jader Jr., obviamente, era sobrinho do capitão.

Os dois entram no quarto. Imagino o que não fizeram para acordar o Capitão. Eis que d. Aída sai do quarto e grita para o Enéas:
-- Juninho, pega umas pedras de gelo.
Vira-se para mim, que acompanhava a movimentação do lado da porta de entrada.
-- Eros, chama os policiais até a varanda – disse-me. – Vou pedir que eles esperem um pouco. O Enéas já vem.
Eu fiz o que ela pediu, não sem antes sinalizar que ela tinha creme no rosto.
Quando os PMs chegaram à varanda, o Capitão já estava de pé, graças aos cubos de gelo que Juninho buscara no congelador. Ficou a par da situação e encaminhou-se para a varanda, acompanhado de d. Aída, robe fechado da cabeça aos pés.

O Capitão foi falar com os PMs da maneira que dormia, sem camisa, apenas com um calção surrado. Capitão Enéas tinha fisionomia tão única como seu caráter – um cara simples, que sempre buscava o bom da vida, um dos meus heróis. Usava um bigode farto encimado por uma imensa nareba – herança que deixou para os três filhos homens; Eneida escapou dessa. As sobrancelhas grossas cobriam olhos castanho-escuros e tranqüilos e tinha uma pança típica de todo bom bebedor de cerveja. Sacam o Abracurcix, chefe da aldeia gaulesa de “Asterix & Obelix”? Já d. Aída me lembra a Eva Vilma.

Bem, a cena foi muito engraçada, hilária mesmo. Estavam ali perfilados os cinco policiais, quepes devidamente nas mãos e os cinco batem continência e juntam os calcanhares quando o Capitão, olhos e nariz vermelhos, pança saliente e gambitos à mostra, surge na varanda e devolve o cumprimento juntando os calcanhares nus.
-- Desculpe, capitão. Mas estávamos fazendo nossa ronda de praxe na Vila, e na rua 27, encontramos uma Brasília bege e dois rapazes. Um deles disse ser seu filho. Era nosso dever checar – argumentou, se desculpando, o sargento Antunes.

-- Cumpriu o seu dever, sargento.... –embora o Capita espremesse os olhos, não conseguia ler o nome do PM, gravado na camisa.
-- Antunes, senhor – apressou-se em ajudar o sargento.
-- Cumpriu bem o seu dever, sargento Antunes. Ele é meu filho, sim.

-- Desculpe tirá-lo da cama, senhor – bateram continência, despedindo-se.

No entanto, antes que começassem a marchar em retirada, o capitão perguntou com voz pastosa:
-- Sargento Antunes, o meu filho não lhe faltou com o respeito não, né?
Senti um frio na espinha, mesma sensação que imagino que Enéas deva ter sentido.
Porém, o sargento foi magnânimo, acho que mais pelo estado do Capitão.
-- Em absoluto, Capitão. O senhor tem um filho bem educado – Antunes disse a última frase olhando fixamente para o Juninho.
Mais não disse o Capitão, retornando, cambaleante, para a cama e o seu sono tão bruscamente interrompido.
D. Aída fez menção de dar uns tapas no filho, mas Juninho imobilizou-a, segurando as mãos dela. Lascou-lhe um beijo, afirmando-lhe:
-- Volto já, Aídão. Só vou buscar o carro na casa do Eros.
D. Aída ainda resistiu aos carinhos do filho, mas quando conseguiu livrar-se do abraço, o Enéas já ia longe.
-- Boa noite, d. Aída – gritei, já em frente ao jardim.
Fomos até minha casa, entrei e o Enéas pegou o carro. Chegou em casa um minuto mais tarde. Enfim, a luz da varanda foi apagada.

domingo, 22 de novembro de 2009

a viagem

Quando eu tinha 3 anos, meu pai e minha mãe construíram uma casinha a 14 quilômetros de Angra, num lugar chamado Pontal. Era uma meia-água mesmo: quarto, banheiro, cozinha e um varandão imenso, que servia como garagem. Já o terreno que circundava a casa era grande.

Na minha infância, quase todo fim de semana era para lá que íamos. Quando cresci, continuei a ir com muita freqüência para lá. Sempre com os amigos: Cláudio, Enéas, Cozido, Aurélio e Gugu eram figuras constantes na maison do Celinho (Célio era meu pai).

Estranho que André e Chico (meus dois melhores amigos) nunca tivessem ido à Angra. Decidi que iríamos para lá, os três mais Marco Antônio Guerrero, outro amigo do Macedo Soares (colégio onde cursei da 5ª série ao cursinho pré-vestibular) e Renatinho, camarada que estudou os dois primeiros anos do 2ª grau, e logo caiu nas graças de toda a turma.

Aqui cabe um longo, porém compreensivo parênteses, que tem a extensão de uma crônica.
O Guerrero é um clínico-geral, chefe da emergência do mais importante hospital da região, o Vita, que assim se chama desde que a C.S.N. privatizou seu hospital. Coube a ele a triste incumbência de comunicar a morte de meu pai, em 1993. Ontem, 21 de novembro de 2009 (aniversário do Celinho), ele fez um festão comemorando seus 50 anos.

Já do Renato César, pouco sei. Apenas que é engenheiro químico da Petrobras. Ou era. Há uns 18 anos o vi pela última vez. E é este encontro que justifica estas aspas no texto.

Tinha uns dois anos de casado e até a morte do meu pai, quase todo fim de semana passávamos em Volta. Imagina minha alegria quando Chico me liga, sábado à tarde, para contar de um velho amigo:
-- Eros, antes do almoço, encontrei com o Renatinho, cara!!
-- Renatinho...Caraí! E ele tá bem? Tá trabalhando? – perguntei, sinceramente interessado.
-- Tá ótimo. Casado, trabalhando na Petrobras...Ele, inclusive, quer se encontrar com a rapaziada. Falei pra ele que podíamos marcar aqui em casa. E que falaria com você e o André, que viriam com as respectivas esposas. Marcamos aqui às 8h, tá? – confirmou Chico, dando um breve briefing
do Renato.

Desliguei o telefone e falei pra Claudia do programa de logo mais.
Às 8h15m, estávamos, de carona, com André e Códia em frente à casa de Chicão e Áurea, então sua mulher.
Às 8h20m, chegava o convidado especial, Renato César. Conversamos amenidades, falamos do destino de alguns de nossos amigos.

Até que Renatinho nos convidou para irmos a uma sala onde Chico, a pedido feito à surdina por Renato assim que chegou, postara um quadro branco e um pilot azul.

Subitamente, depois de nos acomodarmos num longo sofá, Renato se põe ao lado do quadro, saca a pilot e inicia o discurso habitual:

-- Amigos, venho trazer para vocês uma oportunidade única...

-- Puta que pariu! É Anway...Caralho!!! -– eu, indignado, interrompera Renato
antes que ele concluísse a primeira frase.

E para minha total decepção, era realmente Anway, o que nos juntara, depois de tanto tempo, a Renatinho.


Amway, para quem não conhece, é uma espécie de pirâmide legalizada. O cara tem que convencer o maior número de pessoas a comprar o maior volume de produtos (de higiene pessoal, hidratantes e para limpeza doméstica) de marcas vinculadas à Amway. E tentam (acho até que acreditam, ao menos nas primeiras reuniões) provar que ser um vendedor Amway é certeza de independência financeira.

Estes encontros têm (e teve com o Renato protagonizando um dos momentos mais constrangedores da minha vida) a velha lenga-lenga. Exemplos de total mudança de vida, tipo “Ronaldo Calado era um humilde atendente de farmácia. Isso até se tornar um vendedor da Amway. A partir daí, sua vida mudou. Investiu todo o seu salário em produtos Amway e hoje Calado mora num condomínio de alto luxo em Key Biscayne, na Flórida, joga golfe uma vez por semana e vive vendendo os produtos Amway pelo mundo a fora. E isso porque, certo dia, Calado falou com convicção para si próprio: ‘Vou virar um vendedor da Amway e me tornarei um quaclionário (vide almanaque do Tio Patinhas).’”

Sei que a “minha” Claudia (a Códia do André também era Cláudia e Regina, como a minha) ficou uma arara. Com comentários desdenhosos à cada “veredicto empresarial” pregado por Renatinho,quase não o deixou demonstrar a eficiência da Amway, como ele se propusera a fazer. Não houve perguntas depois da explanação de Renato.
Ele percebeu a imensidão de sua cagada: a pretexto de rever amigos há muito afastados, promoveu
uma reunião para vender Amway!!

Chico também ficara irado. Estranhamente, André não ficou puto com o cara, considerando a atitude dele normal. Eu sei que antes das 10 da noite, acabou a reunião. Renatinho, muito constrangido, e, acredito, seriamente arrependido, foi para a casa de um primo. Nós fomos para casa. Eu, particularmente,
com uma péssima sensação: saudades não apaziguadas porque do que eu tinha saudades não existia mais.
Falência de uma amizade.
Fim do imenso parêntesis.




O sábado de nossa viagem amanheceu esplendoroso, sem nuvens no céu.


Oito e meia surgiam, na porta de casa, Guerrero, Renatinnho, Chico e André, devidamente instalados na Brasília amarela do Guerrero. Assim, antes das 9h estávamos pondo os pés na estrada.


A viagem foi tranqüila. Guerrero não chegava a 80km/h – preferia a morosidade do que o risco. Mas o dia estava tão pleno de sol que a velocidade – ou melhor, a falta de velocidade – não nos incomodava. Era outono e o céu tinha uma limpidez rara. A paisagem da estrada de Volta Redonda para Angra era – acho que ainda é – estonteante. A serra é úmida e a estrada, margeada por pequenas cachoeiras, samambaias, marias-sem-vergonha e avencas.

Pouco depois de Lídice – vilarejo que ganhara este nome em homenagem a uma cidade tcheca destruída na Segunda Guerra – o caminho estreitava-se para percorrer uma sucessão de três túneis. Ao cruzar o primeiro, uma surpresa inesquecível até mesmo para adolescentes insensíveis e com testosterona até a alma: uma visão de cartão postal da baía de Angra dos Reis. Aquele marzão todo lá embaixo, emoldurado por ipês roxos que salpicavam a serra verde. Uma das mais esplêndidas vistas de minha vida.

-- Agora, agora...Dêem uma olhada do lado direito, logo na saída do túnel...Caraí, num é demais? -- inquiria eu, entusiasmado com o que acreditava uma revelação .

O silêncio à pergunta seria mais enfático do que o menear de cabeças e o “hum, hum” que André e Chico limitaram-se a grunhir antes de retomar o papo em questão, algo de seriedade equivalente, nos dias de hoje, aos limites éticos dos excessos das cachorras do funk. Guerrero sequer respondera, sequer percebera que acabáramos de ser oficialmente apresentados à Angra. Só tinha olhos para o chão da estrada. Acho que foi a indiferença à beleza do mar que levou o tempo a se revoltar e dar o troco...

Quando chegamos em casa, pouco depois de 11h, o tempo já estava lusco-fusco. Meu pai comprara o lote uns dois anos antes de 1964, quando a casa ficou pronta.

Como descobrira o lugar, tão longe da civilização? A fazenda onde Celinho havia comprado o lote – os proprietários venderam uns poucos terrenos -- ficava em frente ao Iate Clube de Angra dos Reis (I.C.A.R.), clube cuja maior atração era mesmo o hangar que abrigava lanchinhas, lanchas e lanchões. Só isso explicava a existência de um clube a 14 quilômetros da cidade: a saída para o mar, o estonteante mar de Angra. O I.C.A.R. hospedava também sócios e convidados. Bem, uma vez meu pai e minha mãe passaram um fim de semana a convite de um casal de Barra Mansa. Adoraram o lugar. Tornaram-se sócios.

Houve uma época em que meu pai tinha pretensões a alcançar -- uma lancha e uma casa na praia eram duas delas. Tivemos uma lancha -- pequenininha, uns 15 pés, cinco metros – e um motor Johnson, cuja potência não me lembro nem me arrisco a chutar. Uma voadeira –lancha pequena com motor de popa com alguma potência.


O fato é que nós cinco tínhamos objetivos bem mais simples. Queríamos apenas nos divertir e ir para Angra era o máximo para mim em termos de auto-suficiência: um fim de semana longe de casa, comendo miojo e atum em lata. E o que seria inadmissível nos dias de hoje, naquele tempo já era difícil de aceitar: a casinha do Pontal não tinha luz elétrica. Ou seja, banho, só frio. Geladeira, televisão eram apenas pequenos trastes que nunca couberam em meus sonhos de capitão de mim mesmo.

Acendíamos o lampião e não raro ficávamos jogando conversa fora e assistindo a noite chegar nos revezando na rede que cruzava o varandão, antes de irmos para o I.C.A.R.


Naquele fim de semana, logo depois que chegamos ao Pontal, o tempo fechou e às três da tarde já desabava uma chuva torrencial – o que era sinônimo de goteiras, uma vez que não havia laje cobrindo o varandão, era só telha. Saco!!!

Mais de uma vez eu, Enéas e Cozido encaramos chuva e mergulhamos no mar do I.C.A.R.. Mas naquele fim de semana estava frio e nos preparamos para ficar em casa mesmo, comendo um miojo com salsicha, brindando nossa independência com Sangue de Boi (o mais abominável vinho que alguém já bebeu) e suco de laranja (na época André era um abstêmio intragável) em copo de geléia. Driblamos o banho gelado que a falta de luz elétrica nos proporcionava e, conformados com o confinamento provocado pelo toró, já nos preparávamos para dormir às nove da noite quando a chuva arrefeceu. Agora apenas chuviscava. Catei dois baralhos, meti no bolso do casaco e lá, fomos nós, de carro – coisa que dificilmente fazia, já que o Iate Clube ficava a menos de 300 metros de casa.

Encontramos o clube vazio: tinha, entre visitantes e hóspedes, umas 20 pessoas. Não tinha viv’alma no salão de jogos – onde uma mesa de bilhar, tacos tortos e uma mesa de pingue-pongue eram muito disputadas, principalmente pelos cariocas que tinham casa de veraneio no condomínio vizinho ao clube.

A presença deles nunca era muito agradável. Eram adolescentes da Zona Norte do Rio que, longe de serem ricos, arrotavam arrogância e prepotência por passar o dia percorrendo de lancha o mar de Angra. À noite, sem ter muito o que fazer, iam para o I.C.A.R. esnobar os funcionários e eventuais duros como nós, cuja principal diversão durante o dia era irmos à praia ali no I.C.A.R. mesmo, mergulhar agarrados às correntes presas a âncoras, pescar no rio da fazenda ou de tarrafa no canal que desaguava na divisa entre o clube e o condomínio e fazer breves incursões às ilhas próximas ao continente.

Atividades de nenhuma relevância para as gatinhas queimadas de sol que não davam a menor para nós. No entanto, volta e meia nos iludíamos acreditando num flerte – nunca confirmado; sempre voltávamos para casa de mãos abanando.

Quando o clube estava cheio, limitávamo-nos a nos inscrever entre as duplas que se revezavam nas mesas de bilhar e de pingue-pongue. Não me lembro dos cariocas misturados a nós para poder jogar. Preferiam esperar um conhecido perder a jogar em parceria com algum de nós.

Como o salão estava vazio, primeiro jogamos sinuca, depois pingue-pongue. Eu nunca foi grande coisa mas André e Guerrero eram ainda piores e Chico uma nulidade em jogos que exigem alguma coordenação motora.

Em seguida, chegamos a sentar numa mesa no salão destinado a jogos de carta. Mas o tempo estava horrível, a chuva ameaçava apertar e voltamos para casa.

Eram 10 e meia da noite mas como não havia nada para fazer, fomos dormir. No quarto/sala eram só dois sofás. Quem perdia no sorteio, dormia em colchões espalhados pelo chão.
Ganhamos eu e o Guerero; Renatinho, Chico e André dormiram no chão. Em pouco tempo, após as besteiras habituais ditas por cinco adolescentes fechados num quarto sem luz, caímos em sono profundo, não sem antes ouvirmos os comentários muito pertinentes de André.

-- Puta que pariu! Tem mosquito pra caralho! – disparou André, untado de baldes de repelente como todos nós.

Apesar dos zunidos angustiantes de pernilongos, dormimos quase que imediatamente ao comentário de André.

Dia seguinte, André é o primeiro a acordar, Guerrero, eu e Chico pouco depois. Foi o André o primeiro a reparar, quando já estávamos na cozinha, prontos para o café da manhã:
-- Chico, caralho!! Cê tá com o lábio inferior inchadaço. Que maneiro!
Com ares de preocupação, Chico passou a língua no lábio e saiu correndo para o espelho do banheiro. Nós o seguimos.

-- Tá bonitaço, Chicão – disse, antes de cair na risada, junto com André e Guerrero.

Chico tivera o lábio picado por um mosquito e agora ostentava uma beiçola que o tornava ainda mais cômico.


Chico é um sujeito que traz na testa um luminoso no qual se lê, em letras garrafais: “Sou muito gente boa, pode se aproximar”. Não é um cara bonito. Tronco, pernas e braços curtos e musculosos fazem-no parecer mais baixo do que realmente é. Tem pêlos em volume semelhante ao de Tony Ramos.

Imaginem o que nós não o perturbamos com aqueles dois quilos de beiço. No entanto, antes do meio-dia, o lábio já estava desinchado.

E como a chuva dera lugar a um tempo nublado, quente e abafado pacas, fizemos um rápido périplo pelo I.C.A.R.. Fomos até o hangar, andamos pelos salões do clube e fui mostrar para os três o condomínio ao lado. Acabamos entrando na praia – que, naquela época, já tinha lodo – nadamos, comemos sanduíches frios no bar e fomos para casa. Tomamos uma ducha fria, arrumamos a bagagem e, antes das 4 da tarde, já estávamos rumo a Volta Redonda.

Ali começara o inferno do Guerrero. Mais do que na vinda, ele redobrara a atenção com a pista, molhada e escorregadia. Muito branco, cabelos louros dourados, feições finas, Guerrero ganhara o apelido de Robert Redford. Era caladão e tranqüilo.

Mas o cuidado com a direção e a conseqüente morosidade valera-lhe os achincalhes de André, Chico e Renato que o atormentaram a viagem inteira.

-- Guerrero! Guerrero! Tem uma lesma te ultrapassando pela direita. Cuidado! – advertira-o Chico, enquanto ria sua risada galopante, qual o Rabugento, o cão do Dick Vigarista, do desenho animado “Corrida maluca”.


-- Guerrero! Guerrero! Foi mal. Eu deixei cair meu chiclete na marcha. Por isso você num consegue passar a segunda – emendava André, se vergando de rir, ao lado de Chico e Renato, no banco de trás.

Eu ria de algumas piadas, mas não de todas. Minha criatividade era nenhuma. E bom samaritano, calei-me para não deixar o Guerrero ainda mais puto.


Depois de mais de uma hora ouvindo, calado, os gracejos dos dois, o motorista achou por bem responder. Mas o fez de maneira tão gutural que a frase ecoou ininteligível. O que só excitou ainda mais Chico, Renato e André, que choravam de tanto rir com o bordão emprestado da frase proferida por Guerrero. A partir da intervenção onomatopéica de nosso Robert Redford, toda frase dita pela dupla terminava com uma sucessão de vocábulos ininteligíveis ou um simulacro de cochilo. Assim foi o resto da viagem, com André e Chico enchendo o Guerrero até Volta.


O primeiro a descer em casa fui eu. O segundo foi o próprio motorista. Isso porque na altura da rodoviária, Guerrero obrigou Renato, André e Chico a desembarcarem.

-- Bem, cês me sacanearam a viagem toda, né? Então peguem um buzão para casa. Quem sabe vocês não vão mais rápido? – vingava-se.

Os três tentaram argumentar, apelando para um monte de garrafas de plástico duro que levaram para Angra. Mas Guerrero estava irredutível e começou a jogar as garrafas para fora da Brasília, junto com as malas deles.

Do retrovisor da Brasília que se afastava, Guerrero acompanhava os malabarismos de Renato, André e Chico para resgatar as muitas garrafas de plástico a salvo até a calçada. Pela primeira vez desde que saíramos de Angra, Guerrero sorria.





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domingo, 15 de novembro de 2009

A flor

Bom, conforme podem constatar, criatividade aqui passou longe. E desaguo todo o entulho represado por anos a fio. Pior para quem lê. Me desculpem. O único texto escrito e postado quase imediatamente foi o dos baianos de Viçosa. Assim, mando este texto que está escrito há séculos. Já o mostrei pra uma pá de gente.

Tentei reproduzir o que contei para a então minha analista. – há uns dez anos eu fiz análise pela terceira e última vez .Tinha tido duas experiências decepcionantes com psicoterapeutas – um deles chegava a pitar cachimbo, protótipo do freudiano. Numa das primeiras sessões com Bia, mulher do Sérgio, falei do trajeto da flor no dia da morte de minha mãe. E ela chorou – se emocionando e me emocionando. Prometo que volto com coisas mais amenas. É que ou mandava essa ou quebraria minha promessa de mandar um texto por semana.



Quando minha mãe morreu, tinha absoluta convicção de que todas as minhas vicissitudes tinham se acabado. Uma certeza de que dali para frente só viriam coisas boas. Todas as minhas mágoas e tristezas tinham-se acabado. Ledo engano.

Era 19 de fevereiro de 1983 e estava de férias da faculdade em casa. Cursava o segundo ano de agronomia, em Viçosa, cidade mineira que ficava a quase 400 quilômetros de minha Volta Redonda natal. Era verão e minha mãe tinha sido internada no Hospital da Companhia Siderúrgica Nacional(CSN), com dificuldade de respirar, tão gripada estava. Naquela época, ela pesava algo em torno de 40 quilos, vitimida que estava pelo galope da doença de Machado Joseph, mal que afeta o cerebelo, conseqüentemente, o equilíbrio, e vai drenando as forças de quem tem esta bosta de doença até o imobilismo total, isto é, a morte. Estava sozinho em casa quando o telefone tocou. Era do hospital.

-- O seu Célio está? -- perguntou o homem, depois de identificar-se como sendo do hospital.

-- Ele saiu. Quem fala é o filho dele. Algum problema com a minha mãe? – respondi, perguntando.

O cara foi direto e disse que ela acabara de morrer. Desliguei o telefone e segui a pé até o hospital, a uns 600 metros da minha casa, na Vila. Fui acompanhando o riacho, que corria em frente lá de casa. Primeiro, peguei uma rosa no jardim, atravessei a rua, fui até a pinguelinha que cruza o rio. Costumava ir lá sempre com minha mãe na cadeira de rodas. Ela atirava uma flor no rio e acompanhávamos a trajetória dela, levada pela correnteza, até perdê-la de vista.

Naquela manhã, estava sozinho sobre a ponte. Chorava. Joguei a rosa no riacho, só que desta vez, acompanhava sua trajetória não apenas com os olhos, mas caminhando por uma trilha de brita às margens do Brandão. Segui pela rua 31 -- Volta Redonda é uma cidade planificada, ou era, e as ruas eram todas numeradas -- vendo sua evolução nas águas nada turvas, embora sujas, do riacho. Seguia me lembrando de diálogos, de conselhos, de trejeitos, de expressões.

-- Filho, vai ser bom quando eu morrer. Um alívio para mim e para vocês -- dizia ela, não sem algum esforço, pois a doença compromete a fala também.

-- É verdade, mãe. Vamos todos parar de sofrer -- respondia, afagando-lhe o rosto fino.

A gente -- eu, minha mãe, meu pai e Norinha, minha irmã -- era cardecista. E os cardecistas acreditam na reencarnação e na necessidade de purgar erros passados. Conseqüentemente, a principal virtude de um cardecista é – ou deveria ser -- a resignação. Hoje tenho minhas dúvidas quanto ao título da maior das virtudes, mas na época era inconcebível não ser resignado. Inútil (mas humano pacas) se revoltar contra tudo e todos; acho que só torna ainda mais pesado o fardo que nos cabe. E durante longos nove anos, não havia melhor sentimento que definisse minha mãe: resignação.

Ele fora uma mulher bela, de olhos grandes (esbugalhados, posteriormente), pernas bem torneadas. Era moderna para os padrões vetustos e bolorentos da época; trabalhou durante 18 anos como contadora da Companhia Siderúrgica Nacional. Só aposentou-se porque já não conseguia andar sem amparar-se em alguma coisa. E como nas ruas não há necessariamente paredes...

Inda hoje tenho uma foto dela esbelta, com óculos gatinhos e calças capri. Além da indumentária, a modernidade era patente em sua atitude: ela era mulher até a medula.

A flor seguiu flutuando, a pista da Rua 31 obrigava o Brandão a submeter-se a uma breve ponte, de onde saia dividindo duas ruas, a 18.A e a 18.B. Segui a rosa pela 18-B com as últimas imagens de minha mãe latejando na mente.

Me fustigava um inoportuno -- porque pequeno, em razão do justo tamanho do que de fato deveria sentir -- arrependimento por não tê-la levada mais vezes para ouvir música no meu quarto. Mais do que isso: o que me vinha à mente agora eram as vezes em que algum amigo me chama à porta de casa e a levava, carregando-a nos braços para seu próprio quarto -- é bem verdade, sempre um pedido dela mas que eu nunca objetivara. Ela tinha vergonha de estar naquelas condições ou melhor, eu é que tinha vergonha da minha mãe. E embora guardasse isso só para mim, posando de hercúleo e bom filho, relativizando minha vergonha diversas vezes, ela, obviamente com seu sonar de mãe captara meu desconforto com sua trágica presença junto a amigos meus e sempre que possível, buscava afastar qualquer constrangimento. E ela gostava tanto de ouvir música no meu quarto...

Ia me torturando com estas lembranças, deixando uma lágrima rolar aqui, outra acolá. Quando o riacho mergulhou novamente, desta vez sob a pista da Rua 33, tentei rezar um Pai-Nosso, mas fiquei só nos dois primeiros versos: minha rosa tinha sumido. Me passou uma estranha sensação de solidão, de orfandade com o sumiço da flor nas águas do Brandão. Mas depois de alguns segundos, a rosa emergiu de um redemoinho e seguiu rumo ao hospital. Eu sorri um sorriso triste e a segui ainda pela Rua 18-B até o riacho desaguar num afluente do Paraíba, na Rua 41.

Dali até a entrada do hospital foi um pulo. O Hospital da CSN ficava, mais ou menos, na metade da rua. O sol começara agora, por volta de 11h30m, a despontar no céu, abrindo espaço entre muitas nuvens. A distância era curta, a flor não demorou mais de três minutos para rodopiar, pega por uma correnteza mais forte, em frente ao hospital, para onde eu seguia. Ao todo, caminhando lentamente para acompanhar a rosa, não levei mais de que 20 minutos. Tempo suficiente para que passasse a limpo e rememorasse as principais paradas do suplício de minha mãe.

Do diagnóstico errôneo de Parkinson -- mas o único cabível na Volta Redonda dos anos 60 -- o caminhar sempre escorando uma parede, o tombo no quarto da minha irmã, a decisão de não mais andar, de só se locomover de cadeira de rodas -- Meu Deus! E nós acatamos esta estupidez, que agravou e tornou irreversível seu quadro de imobilidade. As noites passadas dormindo na cama logo abaixo da sua, ajudando-a a se mexer durante a noite, a dificuldade para se expressar, as escaras, aquele corpo que mal chegava aos 35 quilos e cuja rigidez caminhava para assumir a posição fetal e final.

Tenho certeza, certeza não, impressão, de que quando joguei um beijo para a rosa, numa despedida definitiva, a flor rodopiou ao descer uma correnteza e deslizou lentamente, como também despedindo-se de mim para, em seguida, seguir o caminho do rio. Àquela hora,chorava. E no peito, trazia um alívio indescritível.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

A Glória de Edisom (acolhendo, tardiamente, perfeita sugestão do André)

tá imensa, eu sei.Ficaria muito maior se eu contasse mais alguns episódios imprescíndíveis a saga de Edisom na Glória.





Era 1980, 1981. Migrantes em busca de faculdades, nós, jovens de Volta Redonda deixávamos a cidade em debandada. Exagero falar em debandada. Na verdade, só os filhos da elite – uma classe média que podia pagar cursinhos pré-vestibular e bancar a permanência dos herdeiros em outra cidade – trocavam de ares.

Da turma que fez o 3º ano junto com o pré-vestibular no Macedo Soares, a grande maioria tinha ido para o Rio. Acho que, de conhecidos, só Artur e Ovinho foram para Petrópolis; eu e André, para Viçosa; Gugu para Valença; e Valéria e Guilherme para a Rural, em Seropédica. Aurélio e Jalb não passaram no vestibular integrado e ficaram por Volta Redonda mesmo, estudando na faculdade de engenharia civil da cidade.


Aqui no Rio surgiram repúblicas formadas por quatro ou cinco rapazes, em média. Num dois quartos sem qualquer sofisticação na rua Benjamin Constant, na Glória, Chico e mais quatro sujeitos formaram uma das mais ecléticas que surgiram no período.

O apartamento só virou república no segundo ano de faculdade do Chico. Primeiro, ele e o Nelsinho, outro voltaredondense, resolveram dividir um apartamento na Cacuia. Isso mesmo, Cacuia. Um bairro na Ilha do Governador, onde ficava o campus do Fundão, da UFRJ. Os dois, espertos, resolveram morar perto da faculdade de Matemática. Na primeira semana, chegaram todos os dias atrasados na aula; simplesmente não conseguiam acertar o ônibus. Detestaram a vizinhança, cansaram de se perder na Ilha. Enfim, descobriram que era uma senhora roubada morar na Cacuia.

Ainda que muito mais longe do Fundão do que a Cacuia, a Glória era um caminho mais rápido para a dupla rumo ao imenso campus da U.F.R.J.

O apartamento na Benjamin Constant já tinha um habitante: João Avelino, primo português de Chico que viera de além-mar tentar a sorte no Brasil. Os três rapidamente criaram uma comissão para aprovar eventuais candidatos a companheiros de aluguel. Eles queriam mais dois para dividir despesas. Assim, dois ficariam no quarto da frente, dois no quarto dos fundos e o Chico ficaria no quartinho de empregada.

Os três conversariam com os interessados. E para evitar futuros dissabores, combinaram que precisaria de uma tríplice aprovação. O primeiro candidato a ser sabatinado pelo trio foi Luís Fernando. Mais velho, já havia se formado em engenharia e era um gênio em computação. Trabalhava no campus da UFRJ, no Fundão. O papo com Chico, Nelsinho e João foi legal. Luís Fernando, que não esbanjava simpatia, mostrou-se sério e objetivo.

-- E aí, gostaram do cara? Eu gostei. Voto a favor – perguntou e respondeu João, tão logo Luís despedira-se dos três, deixando o apartamento.

-- O cara não é simpático, mas parece ser gente boa. Também voto a favor...E você, Nelson? – reforçou Chico.

-- Num sei... – ponderou Nelsinho. – Ele é muito feio.

O argumento para a dúvida fora tão estúpido que só ficou restando uma vaga, imediatamente preenchida por Edisom – também conhecido por Elvis, pela semelhança física com The Pelvis. Filho de um médico ilustre em Volta Redonda, de quem herdara o Júnior, morava no mesmo bairro que do dono do apartamento. Fora a própria mãe que falou com Seu Zé Alfredo, pai de Chico, pedindo pelo filho, que tinha que sair do apartamento que ocupava em Ipanema. Assim, resumira-se a uma única entrevista a atuação da comissão-de-aprovação-de-candidatos-a-uma-vaga-na-apto-301-da-Benjamin-Constant-149.

Edisom era um velho conhecido de Chico e Nelson. Fora colega de classe da dupla nos três últimos anos de Macedo. Não estava entre os sujeitos mais populares do Macedo. CDF, passara para física no Fundão.

Apesar de estudioso pra caramba, fazia musculação em casa – era fortão pacas – e vivia bronzeado, fruto de muito sol na casa de praia que a família tinha em Ubatuba, São Paulo. A casa onde morava, em Volta Redonda, era uma mansão. Casarão que não trazia boas recordações para Chico, que não se cansava de lembrar-se de uma sacanagem de Edisom. Chico tinha acabado de se transferir para o Macedo e ainda sem conhecer ninguém, visitara o vizinho, aluno do colégio desde o ginásio (ou melhor, 5ª série do 1º grau). Estavam na cozinha quando Edisom percorreu a área de serviço abrindo a porta que dava acesso ao quintal. Rindo, gritou:
-- Pense rápido, Chico!!
A porta que Júnior abrira mantinha um doberman enorme e feroz no quintal. O animal entrou na casa e cravou os olhos no Chico e partiu, célere, ao alcance dele. Por sorte, o visitante atinara rapidamente para o perigo e pernas curtas em frenética corrida, fugira para o corredor, fechando uma porta atrás de si. Por segundos não teve sua parte mais protuberante (a bunda, óbvio) mastigada pelos dentes alvos do cachorrão do Edisom – Edisom tinha dentes brancos e era mesmo um cachorrão, mas no caso a ameaça era mesmo o doberman.

Pois era este brutamontes egocêntrico e arrogante o quinto morador da república de Volta Redonda na Glória. E de algoz, Júnior passaria a condição de alvo preferencial das sacanagens daquele quarteto.

Logo em sua chegada ao apartamento, ficara claro em que vespeiro Edisom tinha se metido. Ele chegara para as aulas uma semana depois de iniciadas as aulas; aproveitou mais seis dias de sol em Ubatuba, e domingo à noite chegou à república.

-- Fica à vontade, Edisom. Cê vai ficar no quarto com o Luís – anunciava Chico, enquanto o recebia.
Marrento como de hábito, Júnior deu um tapão a título de cumprimento em Chico.
-- E aí, Chico? – entrou, já atirando sua bolsa no chão da sala e dando uma olhada – a primeira – no apartamento. – É esta a televisão? – perguntou, referindo-se a um televisor p&b enquanto instalava-se no acanhado sofá de napa branca.

Chico não respondeu. Tratou de apresentar seu primo, João, que se sentara numa poltrona sem pés ao lado do sofá. Edisom exclamou um oi pouco efusivo. Falou com Nelsinho, também vizinho de Aterrado, bairro de Volta Redonda. O novo morador do apto 301 só não conhecera seu companheiro de quarto, Luís Fernando, que tinha ido ao cinema e só deveria chegar por volta de meia-noite.

Chico retoma o papel de mestre-de-cerimônias e recomeça, mostrando o apartamento ao recém-chegado.

-- Este é o seu quarto, esta é sua cama; Nelson e João dividem o quarto da frente; aqui é o banheiro – apresentara Chico.

E seguiu mostrando o resto do apartamento. De volta à sala, Chico levou Edisom até a janela e mostrou-lhe a rua. Disse que ao lado do apartamento havia “uma casa de tolerância”.
__ Se precisar de maconha ou pó, encontra a um preço justo no segundo andar daquele prédio – afirmou, apontando para a cabeça-de-porco que ficava à esquerda. – Procura o Genésio. Diz que mora aqui.

Júnior esboçou um sorriso, mas Chico sequer deixou-o retorquir o oferecimento.
-- Pois é, Edisom. De vez em quando a gente até cheira um pouco. Tanto para ficar ligadão quanto para relaxar. Aliás, quando você tocou a campainha, a gente tava se preparando para cheirar. Cê está servido? – perguntou Chico, encaminhando-se à mesa de fórmica amarela próxima da janela.

Sentados, já se encontravam Nelson e João, em volta de carreiras de pó branco, canudos feitos de notas de R$ 10 à mão. Chico juntara-se aos dois e começava uma cheiração danada. Edisom mantinha-se sentado no sofá. Os olhos saltados, o novo inquilino mostrava-se assustado com aquela orgia.

Sequer podia imaginar que o pó branco não passava de fermento Flashman e que a encenação fazia parte da jocosa recepção tramada por Chico e Nelson. Ele começou a ficar preocupado quando Nelson, fingindo estar fora de si, enrolou-se nas velhas cortinas e começou a gritar.
-- Vou sair voando pela janela. Vou seguir até o Voltaço – ameaçara ele, levantando-se, agitado, da mesa.

Edisom, perplexo com seus novos colegas, aproximou-se, num pulo, do suicida em potencial.
-- Que isso, Nelson!! Enlouqueceu? -- balbuciara, segurando-o pelo braço.

João também se levantara rumo à janela. Edisom estava apavorado. Olhos esbugalhados, não sabia o que fazer. Merda! Seu primeiro dia na república e suicídios em massa?

Porém, Chico botou tudo a perder, quando teve um acesso de espirros. Sete seguidos. O Nelson e o João pararam com o ímpeto suicida. Até que Chico foi ao banheiro e pingou sorini, aquele remédio para nariz entupido. Numa das ações entorpecentes, Chico aspirava fermento sem querer e agora o “pó” incomodava-o pacas.

Diante da evidência de que Chico não estava drogado, Júnior se pôs a rir.

-- Vocês são uns idiotas mesmo, uns tremendos manés – disse Edisom se encaminhando para o banheiro. – Vou escovar os dentes e dormir. Boa noite, palhaços!

A alergia do Chico adiou o desmonte da empáfia de Elvis, que continuava a se achar muito melhor do que seus colegas de apartamento. Numa manhã, começou a irritar João, que tomava café com um ar e uma cara visivelmente cansados.

-- E aí, fracote? Que animação, hein? – provocou Edisom, sentando-se à mesa, bíceps volumosos que transcendiam à camiseta. Tinha acabado de fazer meia hora de halter em seu quarto.

-- Por que você num faz como eu e passa a malhar todo dia de manhã? É óbvio que nunca chegaria a ter músculos assim, mas pelo menos ficaria mais animado – continuava a encher o saco de Avelino.

Na hora do “ é óbvio nunca chegaria a ter músculos assim”, estava bem perto de João, cotovelo na mesa enquanto exibia seu muque. João, que mascava seu desânimo, cream cracker e margarina, reagiu de maneira silenciosa e eficiente: encheu a faca de margarina e besuntou os músculos que Edisom exibia.


Ele custou dois segundos a acreditar na ousadia e João não deu sorte ao azar: estava semi-pronto para ir para o trabalho e semi-pronto foi. Esbaforido, escafedeu-se porta afora enquanto Edisom até pensou em ir atrás dele mas conteve-se, impedido pelo short de pijama que usava. Sem cueca.


Restou ao fortão vociferar ameaças de aniquilamento a João, interrompidas pelas risadas curtas que alavancavam Chico do sofá, de onde assistira à cena.

Coisa de um mês e pouco mais tarde, fim de tarde, início de noite, Nelson, Chico, João e Luis já tinham chegado em casa. Estavam todos na sala, assistindo televisão e jantando (uma sopa Maggi) uns, lanchando (pão com requeijão e presunto) outros. Eis que Júnior entra em casa, vindo da universidade. Tem o semblante carregado, vai até o sofá, onde calma e severamente desvencilha-se da bolsa – daquelas Sansonites que usa-se com a alça cruzando o ombro e suspira, todo sentido.

Diante da imensa carga de desânimo com que ele adentrara a sala, João, solícito, perguntou:
-- O que houve, Edisom?

Os outros três também abandonaram a TV e agora estavam atentos à maldição que caíra sobre o Edisom.

-- Putzs!! Não dá!! Puta sacanagem!! Cês lembram que eu fiquei a semana passada toda estudando para uma prova? Pois é, era matéria pacas, um retrospecto de Cálculo I e Cálculo II, mais tudo que demos até agora em Cálculo III. Você viu, né, Luis? Virei noite estudando...
-- Verdade, verdade – assentiu Chico.

-- Hoje o professor entregou a nota. Me ferrei – admitiu Edisom, olhar desolado fitando o nada.

Como notas baixíssimas na faculdade de Matemática eram comuns para Chicão, ele quase sorriu de júbilo. Ameaçou um “bem-vindo ao clube”, mas pensou melhor, concluiu que o fracasso não teria entorpecido totalmente aquela besta-fera e evitou uns catirapapos com uma fingida solidariedade.

-- Não esquenta não, cara. O Fundão é foda, cê sabe disso.Também acabei de receber as primeiras notas deste semestre. Minha maior nota foi 5,5. Fiasco geral – afirmou Chico, falso toda vida, mas que diante da inércia do colega começara a ficar realmente preocupado.

João, Nelson e Luís Fernando também cercaram Edisom, prestando sinceras demonstrações de preocupação com o abatimento dele.

O sujeito agradeceu as manifestações de carinho dos companheiros:

-- É, mas é isso aí! Vida que segue – afirmou Edisom, subitamente recuperado, se encaminhando ao seu quarto. – Vou tomar um banho, sair, tomar umas cervejas e dar uma relaxada... Num adianta ficar reclamando agora.

Estava quase na porta de seu quarto quando alguém, a título de curiosidade, perguntou:
-- E quanto você tirou na prova?

O retorno foi seco, seguido de barulho de porta fechando:

-- Sete e meio.

A resposta emudeceu os quatro, que imediatamente se entreolharam.

“Caralho!!“ – pensavam em uníssono. – “A gente se solidarizando com o cara, crente que ele tinha se ferrado e, na verdade, o filha da puta reclama de um 7,5, um notão! É muito besta!”

Não trocaram palavra. Apenas cochicharam durante breves segundos. Edisom tomou banho, se perfumou e assobiando uma canção, despediu-se.

No que ele bateu a porta da rua, Chico correu para a pia da cozinha, onde, num canto, repousava uma panela de pressão na qual fizeram um feijão incrementado há pelo menos quatro dias. Encheu a panela de água e com a ajuda de João levou-a até a janela da frente do apartamento. Nelsinho e Luiz já esperavam os dois aos brados de “Rápido!”, “Rápido!”
Poucos segundos mais tarde saiu Edisom, todo pimpão. Só ouviu alguém o chamando do apartamento, parou e olhou para cima.

Choft!!! A água suja da panela caiu em cheio, encharcando completamente o camarada. Pingando e puto dentro da roupa molhada, Júnior subiu voando de volta para o apartamento, pelas escadas mesmo.

Entrou esbaforido na sala. Barulho algum. Os quatro estavam trancados no banheiro, morrendo de rir. Edisom esmurrava a porta, transtornado.

-- Abram esta merda, seus filhos da puta. Têm coragem para me molhar mas não para me encarar, né, seus covardes. Vou enfiar muita porrada em vocês. Vou matar um! – vociferava.

-- Ai, que meda! – irritava-o ainda mais Chico, protegido pela porta do banheiro. – Vai chorar seus 7,5 com suas amiguinhas da Augusto Severo (conhecida avenida de baixo meretrício na Glória). Tu é um babaca, Juninho!!

Edisom ainda tentou fazer com que eles saíssem do banheiro. Secou-se, trocou de roupa, foi até a porta da sala, abriu-a e bateu-a. Em seguida, pé anti pé foi até a porta do banheiro.

-- Caralho, como você é previsível. Fingiu que saiu, bateu a porta da rua e agora taí, esperando a gente sair. Pó esperar sentado. “Daqui não saio, daqui ninguém me tira” – cantarolou, irônico, Chico.

Edisom bufou. E foi-se embora, ávido que estava para dar uma escapada daquele ambiente pouco aconchegante onde se metia alguns dias antes de alguma prova. Queria relaxar, aproveitar aquela noite enluarada e de temperatura agradável.

Era sempre assim: antes de uma bateria de provas, Júnior só saia de casa para ir às aulas. Fora isso, trancava-se em casa e passava tardes e noites estudando. Feita a prova, saía e se destrambelhava. Houve vez em que só chegou em casa no dia seguinte, completamente bêbado. Geralmente, as noites de esbórnia eram de sexta para sábado.

Fruto de maior intimidade este episódio ilustra a quantas andava a relação entre os republicanos. Depois de uma atribulada prova, Edisom preparava-se para uma noite de “descarrego”. Passara uma semana enfurnado em seu quarto estudando – faltou às aulas a semana toda para dedicar-se integralmente. No fim de tarde, lá estava ele febril para desopilar o cérebro, oxigenar a alma.

-- Quer ir não, Chico? Vou só tomar umas cervejas...Voltamos logo...Vamos, João?

As negativas foram incisivas e pontuadas por gozações. Tanto que Edisom não insistiu e às 8h em ponto, perfumado que só, desceu a Benjamin Constant, não sem antes cruzar rapidamente a portaria do prédio, para onde debruçava-se pela janela do apartamento – seguro morreu de velho.
Chico, João e Luiz – Nelsinho já não morava na Glória – só estavam esperando Júnior sair para começar a operação “desmanche”. Desmanche de cama.

Com precisão e cuidado, os três desmontaram o estrado da cama do Edisom. Para sustentar o colchão, colocaram várias caixas de papelão vazias. As caixas tinham sido coletadas pelos três ao longo da semana e armazenadas no banheiro de empregada, ao lado do quarto do Chico.

Ao final do trabalho, a impressão era de que a cama de Edisom sequer fora tocada. A colcha estava arrumada, não havia nada amarfanhado.

Se bem que do jeito que Edisom costumava chegar dessas noitadas não repararia num rinoceronte no quarto, quanto mais numa dobra na colcha.

O perfeccionismo na confecção da cama imperou até às 4 da manhã quando, bêbado como um gambá, Edisom meteu a chave na porta do apartamento e entrou na sala. Acendeu a luz da cozinha, fez o esporro habitual de copo sobre a pia, e garrafa d’água retirada da porta da geladeira. Chico acordou.

Júnior levou o copo d’água para o quarto, onde evitou fazer barulho até descobrir que Luís não dormira em casa. Tirou os sapatos, a camisa, a calça e se jogou, de cueca, sobre a cama.

As caixas de papelão não resistem ao peso e o colchão desabou com Edisom em cima.
-- Seus filas da puta. Viados, escrotos... – xingava Edisom, que com a voz pastosa ainda berrou mais uns cinco palavrões até cessar, derrubado pelo sono e as cervejas.

Chico, sem sequer se levantar da cama, ria de soluçar. O mesmo fazia João, no quarto da frente.

Edisom diferia pouco de um aborígene. Era capaz dos atos mais imbecis para provar algo para os amigos – na maioria das vezes só conseguia provar o quanto era troglodita. Como quando apostou com o restante da república que conseguia comer, de uma vez só, uma dúzia de ovos.

-- Consegue nada. Isso é só farol. Você fala muito... Cê lembra quando garantiu que fazia cem flexões e quando chegou a 91 bufou e quase apagou? – instigava Chico, lembrando outra aposta ridícula feita por Elvis.

-- Nanico, te garanto que como uma dúzia de ovos. Cozidos, é claro. Aposto o que você quiser – respondeu, ofendido em seus brios.

Foi quando Chico e João fizeram uma proposta para lá de indecente. Inacreditável mesmo.

-- Então tá. Se você conseguir comer todos os doze ovos, a gente te paga outra dúzia. Do contrário, não pagamos nada, ok? – propôs Chico, com total aprovação de João, que emendou: -- Mas se deixar meio ovo que seja, babau! A gente num compra um ovinho sequer.

Uma proposta dessa é motivo, para no mínimo, xingar a mãe de sapo e o pai de perereca. No entanto, em nome da augusta palhaçada, Edisom aceitou:

-- Tá legal. Mas vocês compram a dúzia de ovos amanhã, combinado?

Chico e João não esperavam que ele topasse. A aposta foi feita de chofre, só para implicar. Difícil para Chico agora era conter o riso.

-- Fechado! Você come uma dúzia de ovos que a gente te paga uma dúzia de ovos – João só pronunciou a frase para que reverberasse o absurdo da aposta.

Edisom encheu uma panela de água e botou-a sobre uma boca do fogão. Depois foi até à geladeira. Pegou a caixa de ovos e cuidadosamente botou uma dúzia de ovos para cozinhar. João e Chico, ainda incrédulos, acompanhavam a movimentação excitada de Júnior.

Cozidos os ovos, ele os deixou esfriar e foi levado por Chico e João para a sala, onde a “degustação” podia ser assistida de camarote, ou melhor, no sofá velho.

Depois de comer oito ovos em pouco mais de dez minutos, Edisom deu sinal de que a missão não era tão simples quanto ele próprio crera.
.
-- Deixa eu beber um pouquinho de coca. Tô ficando entalado – disse, encaminhando-se para a cozinha.

--Nada disso – gritou Chico. – Tem que comer os ovos a seco. Do contrário, é mole.

João apoiou o primo:

-- Se não for a seco, num vamos pagar nada.

Rindo aos solavancos, Chico cochichou com João:

-- Eu quero ver sair gema pelos tímpanos dele. Acho que basta ele comer mais uns dois ovos.

--É, ele vai explodir –- juntou João.
Edisom deu meia volta, sentou-se à mesa diante da panela com os quatro ovos intactos e do prato com as cascas dos outros oito. Soltou um alto e fétido arroto.

-- Vamos, vamos – frisou Chico,batendo palmas, encurralando Júnior, o que normalmente era impensável – A aposta era para comer agora. Comer assim, até eu.

Edisom ameaçou dar uns cacetes naquele nanico insolente, mas voltou-se para sua atividade-fim momentânea e comeu os quatro ovos restantes. A seco.

-- Ganhei!! Consegui!!! – ergueu-se da mesa.

Mas num teve tempo sequer de comemorar. Mal se levantou, foi uma corrida desabalada para o banheiro. Chico e João foram atrás.

Ajoelhado, quase abraçado ao vaso sanitário, Edisom vomitou toda a dúzia de ovos que acabara de ingerir. Chico gargalhava, até chorou de tanto rir:

-- Cara, você é mesmo um mané!! Vou descer ainda hoje para comprar sua dúzia de ovos, campeão!

-- Caralho, és um estúpido mesmo – completou João, saindo do banheiro junto com Chico.
Edisom continuou algum tempo ao lado do vaso. Durante à noite mal-dormida, com uma tremenda dor de cabeça causada pelo fígado, levantou-se umas três ou quatro vezes. E teve que agüentar durante muito tempo Chico e João repetindo a história.



Isso tem quase 30 anos. Hoje Edisom é professor de física numa universidade mineira. Um sisudo – me engana que eu gosto – mestre. Casado, pai de uma menina de 15 anos.
Calvo, nem de longe lembra o topetudo Elvis. A marra e a arrogância se diluíram ao longo de anos de análise, de confinamento em Londres, onde fez mestrado e doutorado, e -- por que não? -- na convivência no apartamento da Glória.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Passei

tinha escrito este troço há muito tempo e continuava pelo meu encanto inicial por Viçosa. Mas eu não acabei o texto, dde modos que dada a urgência de manter um texto a cada semana, mando este mesmo reclamações na gerência.Mas cês esttão no lucro. quae mandei um texto pseudo-filosófico meu.


Personagens: toda a galera que estudava junto no Macedão, curso pré-vestibular de Volta, mais o Luis Henrique, o Cozido, que fizera cursinho no Rio




O chuveiro dava um choque fraquinho, mas que incomodava. Eu só ouvia, predominantemente, a voz do Guerrero, me orientando (?):

-- Isso, Eros. Segura aí (numa das tais maçanetas que davam o incômodo choquinho). Tá acabando... – gritava ele para mim e para um monte de gente que tinha ido me ver tomar banho, completamente bêbado, depois de vomitar, no chuveiro no banheiro do quarto do Enéas.

Eu era um misto de orgulho e depressão, aromatizado por um odor de vômito e coquinho -- uma batida vagabunda que eu e o Cozido tínhamos comprado no fim da tarde para iniciarmos a comemoração por termos passado no vestibular. O resultado da maioria das provas saíra naquele dia.

Era dezembro de 1978 e éramos mais de 30 adolescentes na casa do Enéas, nosso ponto de encontro habitual. D. Aída, mãe do Enéas, não se importava com aquela turma barulhenta que enchia a cara, ocupando varanda, sala, quartos,cozinha e garagem da casa dela com berros e bravatas. Ao contrário: vibrava mais do que muitos e consolava quem não tinha passado. Por isso, não se alterou quando me viu, cabeça molhada ainda, sem camisa e usando um short que imagino do Dudu, irmão mais novo do Enéas, ser atirado no beliche superior do quarto do filho.

Escutei o comentário sucinto dela:
-- O Eros é mesmo fraco para bebida, né?
Apagaram a luz e fecharam a porta do quarto. Tentei protestar, mas aquela altura tinha me tornado inaudível. E apesar do facho de luz no chão da porta e do vozeiio, o efeito do álcool era mais forte e apesar da comemoração ter ido noite adentro, em pouco tempo eu “apagara”.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

"O" apelido



TÁ GRANDE PACAS, EU SEI, MAS É RECENTE. O TÍTULO É O APELIDO,LITERALMENTE.


Assim que nos mudamos para Viçosa, em 1979 (caraí!!), eu e André éramos bem próximos a dois baianos de Salvador, Arthur e Boca – não me lembro do nome dele, só era conhecido pelo apelido.

Nós os conhecêramos durante as provas do vestibular. Arthur era brilhante e não teve dificuldades para passar para engenharia agronômica. Éramos calouros do mesmo curso. André passara com méritos; eu, porque redação tinha o mesmo peso de matérias como matemática e biologia.

Boca era calouro de um curso menos concorrido: zootecnia, que era uma sub-veterinária. Dava ao cara noções de como lidar com os bichos, coisas como tirar a temperatura, como vacinar, como ordenhar uma vaca, mas não lhe permitia sequer prescrever um remédio para berne.

Arthur era bem mais exuberante que Boca. Tinha a manemolência típica de
todo bom soteropolitano (natural de Salvador). Era sacana toda vida. Não passava um diálogo sem zoar de seu interlocutor. E ele e Boca falavam muito. Tanto que nós, nascidos e criados em Volta Redonda, sudoeste do Estado do Rio, sem -- graças a Deus! – qualquer sotaque característico, ficamos, durante meses, falando baianês. Sempre que íamos a Volta, carregávamos as expressões e as bocas moles dos baianos. Como se aquele vício de linguagem fosse algum legado importante...Imagina.


Sei que os caras eram engraçados pacas. Arthur nunca perdia a oportunidade de lascar um apelido em quem quer que fosse. Lindo Olhar era o jocoso nickname de Norberto, um sansei de Londrina, veterano que morava com eles numa pensão no primeiro semestre de faculdade.

Outras pérolas precisam ser creditadas: Erótico era como me chamava; batizou Guilherme, um calouro como nós, de Visconde de Sabugosa. Era olhar para o sujeito e visualizá-lo com a cartola da espiga de milho falante criada por Montteiro Lobato.

Mas genial mesmo foi o apelido que cravou no Flavão, conterrâneo nosso . Era um sujeito grandalhão e algo pançudo - mais grande do que gordo. Tinha expressão séria sublinhada por sobrancelhas volumosas, verdadeiras marquises. Nós nos conhecemos na primeira semana de aula, quando ele, já de posse de seu camelo – bicicleta, essencial para quem, como nós, não tinha carro – se apresentou, curto e grosso.

-- Olá. Cês são de Volta Redonda, né? Eu também. Meu nome é Flávio e vocês devem ser André e Eros. O Muel (amigo meu de infância, Samuel) comentou comigo que vocês tinham passado para cá – disse Flávio, numa torrente de perguntas e respostas que não mais se repetira.

Dali para frente éramos três. Uma semana depois, Flávio mudara-se para a pocilga onde moramos os primeiros seis meses de 1979, onde dividira um quarto na parte baixa da casa de cômodos – morei em repúblicas de estudantes e aquilo não era uma república, embora todos ali fossem estudantes – com um sujeito chamado Hélio. O codinome, Aranha, fora dado porque, numa noite de muita bebedeira (dele, o cara tomava goles e goles de cachaça sozinho!!), o celerado apostou conosco que botava o pé no teto do quarto. É claro que nós, três espíritos-de-porco em involução, botamos pilha.
-- Mas isso é mole, Hélio!! O pé-direito desse quarto é mínimo – dizia eu, do alto de meu 1,67 cm, incendiando o bebum.

-- Mole é??? Eu falei que vou botar o pé é lá em cima!!! – repetia Hélio, apontando para onde uma fraca lâmpada iluminava o beliche onde dormia, no andar de cima.

Sei que a gente apostou uma merreca que ele não botava o pé no teto. E o caboclo, bêbado de dar dó, insistia que conseguia. Subia pela parede como um asno ensandecido. O cara tomava distância – o quarto não era pequeno – vinha correndo, dava um galeio típico dos saltadores e escalava a parede feito uma lagartixa, ou melhor, um jegue gosmento. Ficamos uma meia hora incitando o sujeito a arremeter-se contra a parede. Até que os efeitos do álcool e das seguidas topadas derrubaram Hélio.

Não tenho certeza, mas acho que o sujeito, que não era nenhum nanico, chegou a tocar o teto com o pé.


Fechando o longo parênteses sobre o cara com quem Flávio dividira o quarto na pensão, voltemos aos baianos. Foi imediato o contato de Flávio com Artur e Boca. Nem bem o apresentamos e já eram os melhores amigos de infância do aparentemente taciturno Flavão. Eis que, no quarto ou quinto dia de convivência, Artur lascou-lhe um apelido.

Como cães famintos, ficávamos observando as meninas depois do almoço num dos muitos jardins próximos ao bandejão da UFV. Eram pouquíssimas que passavam pelo nosso crivo. Embora cada vez menos seletivos, eram a maioria, quase a totalidade, tribufús.

Aliás, a ida de mulheres, ou melhor, de representantes do sexo feminino, para Viçosa foi uma indução federal.

Em 1926, o presidente Artur Bernardes fundou a universidade, então faculdade, pois para ganhar o título de universidade, a instituição tem que abrigar, no mínimo, 22 cursos superiores. E Viçosa surgiu para ser um centro de excelência no ensino agrícola. Ou seja , no nascedouro da então FFV (Faculdade Federal de Viçosa), a cidade só tinha homem. Imagina se em meados dos anos 20, mulher se dispunha a se formar em engenharias agronômica e florestal, medicina veterinária ou zootecnia?

O que fez o governo para conseguir atrair mulheres para Viçosa? Criou um curso chamado economia doméstica. Que hoje tem matérias bem úteis e interessantes no currículo. Mas quando surgiu era apenas um curso para arrumar marido para os tribufús que se dispunham a ir para o interior de Minas (sei que Minas só tem interior; neste caso, a palavra designa o oposto de centro urbano).

Desculpem-me este novo aparte, mas tribufús é um tema forte demais. Sim, era nosso esporte preferido ficarmos jogados na grama observando as “beldades” passarem.

-- Olha, olha, uma saracura desdentada – chamava nossa atenção Artur diante da aparição de uma loura de farmácia, de pernas finas e sorriso escondido entre os lábios.

-- Disfarça, que vem aí aquela senhora metida à gatinha. Até que dá um caldo...De maracujá, mas dá – anunciava discreto e jocoso, referindo-se a uma mulher com mais de 40 que insistia em usar óculos de gatinha.

Foi quando passou uma caloura, morena, nem magra nem gorda, de uma alvura ímpar. Os olhos, negros, eram profundos, e o conjunto, harmonioso.
Como juízes a proferirem importantes e definitivos veredictos, nos entreolhamos, e nossas expressões denotavam que achávamos a garota apenas razoável.
Flávio adiantou-se a qualquer comentário do grupo.
-- Cara, que gata! Num acharam não? – perguntou, mesmo já sabendo a resposta. – Parece uma princesa. Não anda, desliza...
-- Éééé...Parece mesmo uma princesa. Só faltam os anões. A branquela é a própria Branca de Neve – ria-se Artur, diante de um furibundo Flávio, na época um moleque tímido e de rara argumentação.
Ficamos ainda algum tempo olhando as moças que iam-e-vinham a caminho da biblioteca, em cuja sombra que estávamos há quase uma hora.
-- Dez pras 2. Vamos para a aula de Química. Eros? Artur?

Estávamos no último ano do regime militar (1979) e os milicos ainda temiam os estudantes, suas idéias e, principalmente, sua aglutinação. Por isso, a idéia era diluir as bases estudantis. Então, misturavam-se ao máximo os alunos. Era da turma de Química I de André e Artur. Mas não tínhamos aulas em comum de Física e Cálculo, por exemplo. Artur era colega de Flávio e Boca nas aulas teóricas de biologia. E assim seguiam as turmas, retalhadas, para evitar senso comum.

Bem, voltáramos às respectivas salas. Eu, André e Artur seguimos para o prédio logo atrás do refeitório.
Flavão tinha aula no departamento de biologia, para onde foi de bicicleta, e Boca foi para a biblioteca. Só teria aula às 4 da tarde.
Combinamos de jantar juntos lá pelas 6h. Marcamos de nos encontrar em frente ao refeitório. Quem chegasse esperava os outros.

Seguimos para a aula de Química, cuja aula era dada num imenso anfiteatro. A matéria era básica para quase todos os cursos. Mas o salão não estava cheio, não. Eu, André e Artur sentamo-nos distante do professor, umas sete arquibancadas acima. E entre meneios de cabeça e anotações, reparei que Artur sorria consigo mesmo. Peguei-o algumas vezes trepidando o corpo, como se alguém estivesse a lhe contar uma hilariante piada. André chegou a lhe perguntar o que houvera, mas Artur deu de ombros e emitiu um “depois eu conto”.

Às 10 para às 4h, acabou a aula de química. Eu segui para o prédio da biologia, onde tinha aula; André permaneceu no edifício onde estávamos. Só mudou de sala. Foi para o terceiro andar, onde assistiu a uma aula de cálculo I. Artur nada mais tinha a fazer de acadêmico naquela quarta, de modos que foi só maturando a nova galhofa enquanto encaminhava-se para o carro dele (ele e Boca tinham carro, o que os tornavam mais emancipados do que nós, meros donos de camelos e usuários de mata-sapos inter-estaduais), estacionado em frente ao refeitório. Um por um fomos chegando e juntarem-se a nós Ricardo, um caloro de agronomia, e Serginho, veterano, quase formando que moravam na mesma pensão que os baianos.

Sentados à mesa (juntamos duass para caber todo mundo). Artur virou-se para Serginho num tom que permitia que todos na mesa escutássemos, apesar do zum-zum-zum vindo de outras conversas:
-- Rapaz, estávamos eu, Boca, Erótico, André e Flavão olhando as mocréias que aqui polulam, hoje, depois do almoço. Os comentários de sempre. Olhe meu rei, não tinha viv’alma interessante, só baranga. Se bem que uma das fofinhas que circulam na área cativou Gordonzelo... – e ia continuar seu discurso como se todo mundo soubesse quem era Gordonzelo, como se aquele apelido que ficara a tarde inteira remoendo não fosse sensacional.
-- Peraí. Quem é Gordonzelo? – interrompeu Serginho, demorando a proferir a frase por conta das gargalhadas que lhe entrecortavam a fala.
-- Ora, alguma dúvida sobre quem é o Gordonzelo?? É óbvio que é o meu companheiro aqui, o Flavão – disse Artur, apresentando Flávio, que estava do seu lado – justificando plenamente a inusitada formação na mesa.

Artur raramente sentava-se ao lado de Flávio no bandejão. Mas desta vez era conveniente. Eram dez pessoas nas duas mesas, unidas para formar um mesão. Nós três de Volta Redonda, os baianos, Sérgio e Guilherme, ambos de Niterói, Ricardo, do Rio, Norberto “Lindo olhar”, e outro Flávio,este natural de Friburgo, irmão de um músico pouco conhecido, Cecelo.
Todos caímos na gargalhada, com a óbvia exceção do Flávio.
Eu e o André sabíamos que aquele apelido o incomodava e não o usávamos. Mas não tenho dúvidas: foi o mais inspirado apelido que já ouvi... Gordonzelo... É a junção perfeita.

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Só que quando me deparei, há dias, com Gordonzelo na memória, liguei o apelido de Flavão, erroneamente, a outro episódio. Este ocorreu já no apartamento que nós três dividíamos a partir do segundo semestre da faculdade. Também, depois das agruras que passamos na pensão/república – que não era uma coisa nem a outra – da D. Edith....

Foi num fim de semana, pois estávamos os três em casa de tarde. O que era impossível de acontecer durante a semana, quando geralmente tomávamos café – vez por outra comíamos em casa – e sempre, sempre mesmo, almoçávamos e jantávamos no bandejão da universidade.

Tínhamos chegado há pouco do almoço – sábado e domingo, invariavelmente, almoçávamos no refeitório – e costumávamos ficar batendo um rápido papo já em casa. Como o grande apartamento (três quartos, sala, uma cozinha imensa, mais dependências de empregada) não tinha nenhuma área comum habitável, cada um ficava em pé na entrada de seu quarto. O banheiro ficava entre o meu quarto e o do André; este ficava ao lado do quarto do Flávio. Estávamos conversando, já tontos de sono – era de lei uma soneca depois do almoço dos fins de semana – quando Flávio e André começaram a discutir do nada. Não me lembro a razão, mas guardo que Flávio ficara ofendido com alguma coisa. Ofendido, não. Magoado. Sei que a discussão terminou com uma frase que deixava clara a susceptibilidade de Flávio.
-- E pode continuar a me chamar de”Mmmoostroo” que eu não ligo – disse ele, imitando a entonação que André dava ao apelido, antes de bater a porta do quarto estrondosamente.
É ou não compreensível minha confusão de como surgira Gordonzelo?