quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Concerto único

02-502231499 l Lasa

Estudei com o Manguinha, Eduardo França, por três anos. Os dois primeiros anos do Segundo Grau, mais o cursinho pré-vestibular, equivalente ao terceiro ano. Quando o conheci, era alto, esguio, dono de um nariz de responsa e farta cabeleira encaracolada e negra.

Devo ao Manga descobertas musicais importantes, como Bob Dylan (o Greatest Hits 2, disco duplo importado, de vinil, me foi emprestado por ele), Cream, Neil Young, Jefferson Airplane e sua cisão, o Hot Tuna e o Starship, além de outros grupos mais obscuros dos quais não me lembro.

Comecei a ouvir música, toda sorte dpe música – com exceção da bunda music, como rotulo axé, funk, pagode e sertanejo (não confundir com caipira, ritmo genuíno e imune à plastificação) e genéricos, em 1974. Foi naquele ano que o Betão, meu cunhado, mudou lá pra casa. Largara a família – mãe e avós maternos – aqui em Copa e a PUC, onde cursava o primeiro ano de Física. Em dezembro de 74 fomos, eu, Beto e Nora, ao Rio comprar presentes. Ficamos um sábado em Lins de Vasconcelos, bairro fronteiriço ao Méier, onde morava meu tio Fante, irmão de minha mãe, tia Matilde, e meus primos, Cláudia e Carlinhos. Esta observação é digna de nota: sabem qual era o nome do meu tio Fante? A pergunta só tem valor retórico, uma vez que ninguém, ninguém, a não ser minha avó e meu avô -- a quem não cheguei a conhecer – poderia cometer tal desatino: chamar alguém de Mesophante. Ou seja, o Ricardo, que carrego agregado, de mal grado, mas carrego, ao Eros, é pinto diante de Mesophante.


Trago na lembrança a capa de “Milagre dos peixes” – o primeiro Milton a gente nunca esquece – e os primeiros E,L & P, Genesis e Yes que entraram na minha vida.
Dois anos mais tarde, no primeiro ano do Segundo Grau, o Macedo Soares resolveu reunir numa só turma os melhores alunos da casa e os melhores vindos transferidos de outros colégios. Eu, que não era nenhuma sumidade, mas que também não era um jerico, fui para o 1º E, mesmo destino de gênios como a Maria Inês, transferida de um colégio de Barra Mansa, Ronaldo, vindo da Fevre, um colégio em Volta Redonda, mesma origem de Manga, outro ótimo aluno. Edisom e Guilherme rivalizavam o posto de melhor (e mais chato) aluno do próprio Macedo.



Bem, mas acontece que o Manguinha me chamou a atenção – já antenada musicalmente – para um monte de coisas legais. Então resolvi aprender a tocar violão, tornando-me um “bardo acústico” – logo eu, que não falo, hesito.

Passei a subir duas vezes por semana o morro em que se transformava a Rua 31, a partir da Rua 26. Logo atrás da bela Igreja de Santa Cecília ficava um Centro Cultural, onde professores davam aula de quase tudo a quase ninguém a módicos preços. Meu professor, cujo nome me escapa agora, era notório mestre de música, conhecia várias pessoas que aprenderam os primeiros acordes com ele.

Que tive umas duas semanas de aula, as seis horas. Logo na quarta aula, o professor, cujo nome, era algo como
Penteado, insistia em “Irene”, do Caetano, que devia ter, no máximo, três acordes e era molinho e alvissareiro mesmo para iniciantes.
Assim, não esperei muito para submeter-me à apreciação de meu guru musical. Chamei-o até em casa, e no meu quarto tentei reproduzir os poucos acordes e cantar os versos. Foi um fiasco. Sequer conseguia tirar as notas do violão e com a minha voz esganiçada tentei cantar. Qual um Belchior desrítmico insistia em “Irene rir/ Irene rir/ Irene rir/Quero ver Irene dar sua risada”. Foi surreal. Não havia ritmo. Apenas o Manga a chorar de tanto rir do meu patético desempenho ao violão.
-- Muito bom, Eritos! Engraçado pacas!! – disse Manga, refreando seu entusiasmo devido ao meu repertório de uma nota só.

Despediu-se de mim e foi até à padaria Central, a uns 300 metros da minha casa, beber uma prosaica Coca-Cola.
E assim, a MPB perdeu um enorme talento (eu). Isso foi num sábado. Na segunda seguinte, já não fui ao Centro Cultural na 31. E o violão quedou-se num canto, de onde foi resgatado, não muito tempo mais tarde pela minha irmã, ela sim, uma boa violonista.

domingo, 31 de outubro de 2010

Lumiar e o polenguinho 4.4

De manhã, logo depois de tomarmos o café, constatamos que o tempo continuava nublado, embora não chovesse àquela hora. Eram pouco mais de nove da manhã quando Claudia ligou pra a prima dela, Leila, que mora em Niterói.


-- Alô? Ana Paula? Tudo bom? Posso falar com a tua mãe? – falava Claudia ao telefone da pousada do.... PAREM!! REBOBINEM A FITA!!! AI, ESTA HISTÓRIA DE FITA DENUNCIA A MINHA IDADE. MEUS FILHOS SEQUER IMAGINAM DO QUE SE TRATA. EM DIALETO “ANTENADO”, DÊEM UM REWIND ATÉ O COMEÇO DO TEXTO.
“Tolices & memórias senis” faria mais justiça como título. Já estava imaginando a gente não encontrando a chave da casa, malocada não num vaso de antúrio, como dissera Leila, mas num xaxim com uma avenca no fundo da varanda.
Bem, acabou que eu perguntei a Claudia e ela me disse que já saímos do Rio cogitando passar na volta, caso o dilúvio se confirmasse, na casa da Leila, em Friburgo. Ninguém da casa da prima da Claudia ia subir a serra, de modos que nós já saímos do Rio com as chaves da casa. Também num pergunto mais nada para a Claudia! Confiar na memória, ainda que caduca, renderia histórias mais originais.

Bem, então ainda era sexta de manhã quando decidimos ir embora da Parada do Krein. No carro do Aurélio, além da Mônica, foram quatro pessoas: Bella, Lu, Denise e Simone. A única menina a ir de ônibus foi a Claudia, para não deixar o “lindo” (eu) ir sozinho para Friburgo, embora Alex, Calmon e André estivessem no mesmo busão. Eu adorei.

Nós, os do ônibus, chegamos em Friburgo por volta de dez e meia da manhã. Quem desceu com o Aurélio deve ter chegado por volta de nove e meia, mas de estômago virado: Aurélio se vangloriava de descer a serra do Mar, passagem obrigatória entre Rio e Volta Redonda, trecho perigoso e cheio de curvas, em inacreditáveis seis minutos. Mas Al estava tranqüilo como há muito não o via. Assim, acho que ele não correu tanto, não.

O bairro onde fica a casa de Leila e Ambrósio é Nova Caledônia. Acho que é isso mesmo: pelo menos era este nome que estava estampado nas garrafas de licor (horrível!!!). E o endereço do fabricante ficava numa ruazinha perto da casa da prima da Claudia.

Era uma casa bem confortável, com uma decoração algo kitsch como convém às casas de veraneio. Mas o que mais nos chamou a atenção foi mesmo o jardim em frente à casa. Era uma área imensa, toda gramada. Tinha até uma piscina Tony, dessas de montar. A casa era circundada por muros altos, o que garantia a intimidade de quem se molhava ali.

Mal tínhamos acabado de chegar, nem bem dividimos quem iria ocupar os quartos (dois) e a sala e pintou uma réstia de sol na varanda. Tratamos de colocar sungas, shorts, biquínis e maiôs e corremos para o jardim. Ficamos umas duas horas desperdiçando água mangueiral, molhando-nos uns aos outros e enchendo a piscina. O solzinho, muito tímido, escafedeu-se passada uma, na melhor das hipóteses, uma hora e meia. Fervorosos adoradores do Sol, ficamos ainda um tempinho flertando com ele – ou melhor, com o que sonhávamos -- enquanto nuvens escuras nublavam o céu. As nuvens foram ficando escuras, escuras, escuras até o céu vir abaixo.

--Caraí – disparou Aurélio, ao ser atingido por grossos pingos da chuva que se seguiu, acompanhada por um vendaval.

Não sobrou ninguém para contar a história
E olha que eu adorava tomar chuva. E acredito
que, pelo menos, outros caras do bando
– Aurélio, Calmon e André - também fossem
fãs de um pé d’água na moleira. Mas aquele
toró era diferente: a água descia do céu
gélida demais, como se passasse por uma
longa e resfriante serpentina de chope. Era
coisa do Dedo de Deus e eu nem ninguém
tínhamos peito para encarar aquele dilúvio
celestial. Assim, tratamos de nos refugiar no
interior da casa: todo mundo na cozinha, pois
estávamos ainda molhados e sujos. Formou-
se uma fila para tomar banho. E a despeito do
cavalheirismo reinante, o primeiro do banho
foi o Alexandre, em quem já se insinuava uma
gripe – os acessos de tosse nada tinham a ver
com a sua renitência em fumar – já que o vício
imbecilisava também André Fábio e Luciana.

-- Também, depois daquele temporal no
Poço Feio (era este o nome, nunca houve
uma cachoeira chamada Véu de Noiva em
Lumiar. Revolucionários os b.g., não?), frio
para caramba, encarar uma fila para tomar
yum banho, ou melhor, um filete de água quente na Casinha do Tio Chico (lembram-se do careca da Família Adams”?), queriam o quê? – resmungava Alex, entre um espirro e outro.

É verdade...Além de todas precariedades
e curiosidades, a Toca do Predador tinha
um único banheiro para todos os hóspedes.
Ainda bem que ele, as meninas e o André
tomaram banho. Porque a água da casa
acabou. Eu, Calmon e Aurélio tivemos que
nos lavar -- as partes, inclusive, devidamente
mascaradas pelas sungas -- na chuva, agora
bendita chuva, mas fria pra cacete.

Todos banhados – uns mais, outros menos
– havia um prazer em estarmos juntos, que
fazer qualquer coisa, desde que juntos, nos
bastava. Ficamos juntos nas redes – alguém, possivelmente o Calmo -- alcunha do Calmon -- tem fotos nossas com uma flor de hibisco na orelha enquanto balançávamos ao sabor do vento.

A não ser quando Bella fazia o papel de
tornado e balançava, de modo inclemente,
quem estava nas redes (eram duas).

Bom, como a chuva nos ilhava e confinava à casa, resolvemos jogar. Enfim serviu para alguma coisa os baralhos que trouxemos do Rio. Jogamos algumas partidas de mau-mau. Até que a Bella teve um rompante entusiasmado e berrou, como alguns dizem ter berrado Newton ao ser atingido pela maçã da Gravidade.
- Dicionário!! Sabem jogar dicionário? Vamos jogar!! Eu explico pra quem não souber -- dizia, enquanto levantava-se até uma estante da sala da Leila, onde jazia -- um dicionário não faz outra coisa senão jazer -- um volumoso Aurélio.
- Massa, é mesmo um jogo maneiro - dizia Alex, como a concordância muda, mas enfática, de Lu, eu e Claudia.
Para quem nunca jogou, uma breve (?) explicação: um a um, os competidores buscam no dicionário vocábulos cuja definição é a mais estranha possível, de modo que os demais participantes achem-na tão esdrúxula que acabam votando num conceito inventado por um cascateiro versado em português. As definições são escritas em pequenos pedaços de papel, lidos por quem escreve o sinônimo correto. Pontuam aqueles cuja mentira é tida como verdade e também o sujeito cuja descrição, correta, engana vários participantes. Entenderam? Se não, joguem e descubram.
Só que para quem jogava com alguma constância como Claudia, eu, Lu, Bella e Alex, por exemplo, contava era ser o mais criativo possível. Fazer rir era bem mais legal e importante do que simplesmente ganhar o jogo. Tem até definições que para mim são definitivas. Como quando alguém sacou uma palavra cujo significado ninguém sequer suspeitava: tembleque. Num sei quando foi, tão pouco de quem foi a genial definição. Pode ter sido na casa em Miguel Pereira do Décio Pinto Aquino Rego, um amigo dileto. Seria genial se o sobrenome de Décio fosse realmente este. Mas não: é um reles Coimbra o mais assíduo leitor e comentarista das besteiras deste blog.

Posso até sido eu a cometer talentosa heresia, mas é mais provável que a pérola tenha sido expelida por Claudia, fã dos personagens do Maurício de Souza. Quando alguém leu "tembleque - expressão usada pelo Cebolinha (o famoso troca-letras criado por Maurício) avisando que sua bicicleta não tinha freio: 'Saiam da frente que esta bicicleta num tem bleque'". Maravilhoso, né?
Pois é, há muito, para nós, o quesito criatividade era o único que levávamos em conta. A graça era encontrar significados tão estapafúrdios quanto hilários.
Mas isso era uma "private joke" entre eu, Claudia, Bella, Alex, Lu mais Ciça e Aloy, amigos da mesma gangue, que, por motivos diversos, não foram à expedição Lumiar. Mas esta piada ficava óbvia depois da segunda rodada; era impossível que os demais participantes achassem que alguém acreditasse naqueles incabíveis, mas extremamente engraçados, “sinônimos”.

Mas daquela vez tínhamos convidados de primeira viagem, como Calmon, André, Denise e Simone, além de Aurélio e Mônica.
Logo no início as pessoas captaram a motivação real do jogo: azucrinar a língua portuguesa. Só que alguém lançou uma palavra cujo significado era uma engrenagem de maquinário gráfico, tipo calandra, e foi imediatamente vetada. Acho que foi a Lu que negou, criando um bordão que nos acompanha desde então: não vale “termo técnico”. Só que disso se valeu Simone, a irmã de Denise. Para ela, qualquer palavra que fugisse um pouco do óbvio, era motivo para esquivar-se e berrar:
-- Termo técnico não vale!!
Era engraçado pacas. Ver um monte de termos vetados, sendo que de técnicos nada tinham. Mas ninguém protestava e deixava Simone vetar o que quisesse. E ria.
Eis que surge a vez de Isabella sugerir a palavra. Ela apenas finge que procura um vocábulo e diz na lata, para uivos entusiasmados:

-- Fimose. A palavra é fimose!

Bella e todos acompanhamos a reação de Simone, que não tardou. Pensou um tiquinho e arrematou.

-- Termo técnico – disse, sendo acompanhada por Bella no segundo vocábulo.

-- Tem razão. Fimose é um termo técnico. Num vale – concordou a Loira Má, com a cara mais lambida do mundo.

A gargalhada foi uníssona. Até Denise, irmã de Simone, chorou de rir. Depois chamou a irmã num canto e deve ter-lhe explicado o que era fimose.

Mas ter sido motivo de escárnio não constrangeu Simone, que continuou a vetar a escolha de palavras com o indefectível “termo técnico” pela noite adentro.

Dia seguinte, o primeiro acordou 6h30m e o último, lá pelas 10h. E, por incrível que pareça, apesar da Bella já estar acordada, o dorminhoco não acordou com o rosto besuntado de pasta de dente.

Ela já fizera das suas com o produto. Também, depois da deixa de TOC (transtorno obcessivo compulsivo) do André...
-- Bem, agora que vamos partilhar todos o mesmo espaço, tenho que confessar uma mania e pedir algo a vocês – começou André, diante do silêncio atencioso de todos. – Eu sou psico com tubo de pasta de dente. Eu só consigo usar apertando do fim para o começo.

E, na hora que os primeiros foram dormir, André levou todos ao banheiro para demostrar o modo correto de usar a pasta dele (existe método certo de usar pasta de dente?): diante de uma audiência que, silenciosa porque estupefata, ele mostrava meticulosamente como tirava a pasta do tubo. Apertava do trecho que era lacrado em direção ao bico de onde saia o dentifrício. Até aí, novidade alguma. O x da questão é que André fazia vigorosa varredura, não deixando rigorosamente nada entre a parte que vinha sendo apertada e o que ainda estava cheio. Sabe um rolo compressor? Pois era assim que André Fábio deixava a pasta de dente dele.

Bem, depois daquela aula sintomática de portador de TOC que André nos dera, entreolhamo-nos, já prevendo o que veríamos dia seguinte.

De manhã, André Fábio foi dos últimos a acordar, pois ficara num papo com Alex e Calmon até às quatro da matina.
Bella acordou cedo e foi a primeira a ir ao banheiro. Depois dela, quem saia do cômodo não escondia o sorriso ou a gargalhada fartos. A pasta de dente Colgate, do André, jazia num canto da pia, completamente disforme. A embalagem, de ferro, estava novamente cheia pela metade. O que vinha sendo amassado sistematicamente, estava agora novamente preenchido à meia- bomba, todo untado de creme dental, como se um ogro tivesse usado a pasta do André. E só a dele estava assim, as outras quatro estavam em decente estado.
Quando André acordou e foi ao banheiro, juntou gente na porta. Ele não sabia o motivo da súbita curiosidade. Vê-lo fazer xixi, ou trocar de roupa no banheiro, não podia ser. Lavar o rosto, escovar os dentes... Tolinho! Foi olhar para sua pasta de dente, outrora tão arrumadinha, e ele entendeu o burburinho. Rindo de sua ingenuidade – não se revela uma paranóia por organização numa viagem de quatro dias ao lado de gente que mal se conhece – André foi motivo de piada por todo sábado. Mas suportou com galhardia e fair-play toda a gozação. Porém, não se viu mais sua pasta entre as que serviam à rapaziada.

Embora estivesse frio pacas, resolvemos xeretar a noite de Tere. Acabamos dando com os costados numa boate cuja voltagem parecia bacana. A Lu já chegou deslumbrada com “Last train home”, música do grupo do guitarrista Pat Metheny, cujo toca-fitas do carro do Aurélio despejava sobre afortunados que tiveram a sorte de irem no Passat vermelho até o centro – acho que além de Luciana, foram, só para checar a música, André e Calmon.

Mas o gosto musical de Aurélio estava longe de pautar-se pela excelência. Ao lado do jazz moderno e brilhante de Pat Metheny e Lile Mays, desfilavam porcarias gravadas de discos coloridos (tinha LPs laranja, vermelho, amarelo) importados, caríssimos que Al comprava na extinta Billboard ou na Modern Sound, mecas musicais vizinhas na Barata Ribeiro, quase esquina com Santa Clara, em Copacabana. Aurélio sonhara ser Dj na sede social do Clube dos Funcionários, e aquelas porcarias coloridas continham o suprassumo do corolário dos Djs: música bate-estacas e imbecilizante.
Mas fiquemos só no bom gosto musical de Al. Lu chegou na boate fascinada por Pat Metheny; acho que não tanto quanto Sônia Braga, com quem ele foi casado (cultura totalmente inútil), mas ainda assim fascinada.

Não tenho muitas lembranças daquela noite. Só que nós bebemos um pouquinho e nos esbaldamos na pista, algo cheia para o frio que fazia. Tenho uma vaga lembrança de que rolou uma porrada feia e, eu, cheio de sentimentos de “paz e amor”, já me encaminhava para separar a briga quando Claudia me puxou e me deu um esporro:
-- Tá maluco, lindo? Vai é se matar. Já viu o tamanho dos caras?

Nisso começaram a voar garrafas de cerveja entre os dois grupos de brigões e fomos embora. Todo mundo a pé, até Mônica. Aurélio levou rapidamente o carro para casa e juntou-se a nós. Fazia frio, lgo só demas estávamos bem agasalhados, e estávamos voltando para casa.

Chegamos, comemos algo só de gula. Depois jogamos algumas partidas de mau-mau mais uma de War, que eu estava ganhando até o povo encher o saco e misturar os exércitos. Isso já era umas três da manhã, quando fomos dormir.

No domingo, à tarde, voltamos para casa. Mas antes, almoçamos num ótimo restaurante, especializado em comida alemã. Desde que chegamos a Lumiar, tínhamos isso em mente: fazer uma super-refeição num lugar bacanão. O nome do restaurante era Burgomestre. A comida era ótima – e o banheiro também. Como faltava água na casa da Leila desde a manhã de sexta, evitávamos de fazer nossas necessidades –tanto número 1 quanto número 2 - nos dois banheiros da casa, o social e o de empregada.
Evitávamos usar ou o ambiente ficaria irrespirável. Ninguém podia fazer ôcoc – leia de trás pra frente. Os meninos evitavam fazer xixi dentro de casa – era um entra-e-sai rumo ao jardim nas madrugadas que passávamos insones. Só quem tinha licença para urinar as moças. Não fazia sentido exigir que elas também procurassem uma moitinha quando precisassem se aliviar. Sempre que saíamos, procurávamos usar banheiros de bares e valemo-nos até os sanitários da boate que fomos, na noite de sábado.
Mas por falta de limpeza e absoluta falta de paz não consumíamos o segundo ato desde que deixáramos o Retiro dos Artistas de Filmes Trashes, em Lumiar, na manhã de sexta-feira. Ou seja, passáramos o fim de semana sem mandar missivas para Migué (inventei esta agora, diante de outras racistas, politicamente incorretas e de péssimo – ainda que engraçado –gosto).

Quando nos deparamos com o Burgomestre, com suas mesas cobertas de toalhas de linho, e belo decór houve uma precipitação incomum aos banheiros. Mais ou menos metade de nós resistiu à mesa, iniciando os trabalhos de pedidos para o garçom. Um senhor boa-praça, que se não entendia aquela súbita corrida de revezamento aos banheiros, ao menos teve uma paciência de Jó para voltar seguidas vezes à mesa para anotar todos os pedidos. Somente uns quatro valentes deixaram para ir depois da refeição.

-- Estou guardando munição – explicava Alex.

Comemos de tudo: kassler com chucrute, salsichão com salada de batatas, almôndegas...Rolou até um joelho de porco. Comíamos comunitariamente: cada um garfava o prato do outro. Pastávamos desenfreadamente, arrematando cada prato com um papo ótimo e um fantástico pão preto. Consumíamos também várias tulipas de chope claro e escuro. E para fechar a tarde, pedimos torta de maçã com creme e licor (Drambuí, Frangélico e Amarula).

Ah, como foi fantástico o almoço e balsâmico o banheiro no/do Burgomestre. Fechamos com chave de ouro um feriado que tinha tudo para ser monótono. Além de termos deixado um monte de burgomestrezinhos para’trás.

A volta não foi concorrida, como em feriados prolongados. Saímos da rodoviária por volta das cinco da tarde e antes das oito estávamos em casa.

Fizemos de um inusitado encontro de pessoas que não se conheciam, uma sagração à amizade. Rimos muito, passamos perengues mil e temos muitas histórias para contar. Estas foram só algumas.

domingo, 20 de junho de 2010

Lumiar e polenguinho 3.4

Pegamos o ônibus numa cidade desolada. A chuva transformara aquele ponto turístico em reduto dos bichos-grilos nativos. Rodamos alguns quilômetros numa estrada de barro com o coletivo fazendo perigosas evoluções e sambando “nas curvas” (favor caprichar no dialeto chiado carioquês).

Desembarcamos uns 40 minutos depois noutro ponto turístico igualmente desolado. Ficamos em São Pedro da Serra o tempo que o ônibus ficou por lá: uns 20 minutos. Tempo mais do que suficiente para conhecer todo o “centro nervoso” da cidadezinha. Que entrara em pane com aquele dilúvio. Tanto que tudo que eu imaginava ser uma loja, estava com as portas cerradas. Com exceção de uma birosca – misto de quitanda e armazém – e uma padaria, cujo néon do l do Real, estava apagado. Embora fossem menos de oito da noite, os caras da padaria já iam fechar a Confeitaria Rea -- como se lia, sem o l. Tratamos de comprar alguns víveres, já que frigobar é luxo desnecessário na ex-talagem do sr. Gólum Klein.

Eis que estranhamente ouvimos música. Vinha do único restaurante aberto. Era chique bem, e não havia viv’alma nas mesas. Só um sujeito que parecia o dono, pelo jeito que se dirigia aos garçons, se embebedava solitário com vinho rosé (blergh! Imagina a dor de cabeça do cara, ao acordar, no dia seguinte...).
O motorista do ônibus veio avisar-nos que aquela era a última viagem de retorno a Lumiar. Até conjecturamos passar a noite ali, mas aquele coaxar de sapo fez aumentar significativamente o frio.

Então pegamos o último ita em São Pedro da Serra e fomos com Klein ficar (Adeus meu pai, minha mãe/Adeus Belém do Pará... Foi só uma piadinha com o clássico “Ita do Norte”. Entenderam não? Na próxima vez, eu desenho, dããããããã....). Foi na primeira curva sacolejante que o Aurélio (não vou descrevê-lo, já o fiz nos posts de “Carnaval em Angra”) resolveu inventar um treco doido, ao que ele batizou “surfe de ônibus”. Consistia em ficar de pé no corredor do ônibus e tentar manter-se de pé sem se segurar em nada.

-- Vamos lá, Erão. É divertido – dizia ele. – Vamos, gente.

Calmon, um sujeito normalmente fechado, foi o primeiro a aderir à nova modalidade aureliana. André, Alex, Bella, Lu e eu tratamos de também tentar domar aqueles sacolejos na estrada esburacada, enlameada e cheia de curvas.


Somente Claudia -- sabiamente, pois tem os dois lados esquerdos – Mônica – a brincadeira foi idéia do Aurélio, ah, me poupem! – e as irmãs Denise e Simone – tanto por timidez quanto por medo de se estabacarem – não participaram do surfe no circular Lumiar-São Pedro.

O ônibus vinha vazio – só recolhera um capiau no caminho, que se entrincheirara no primeiro banco. Então era nosso o rinque de patinação. Depois de muito quase metermos o nariz naquele chão infecto e barrento do ônibus – eu, André, Calmon e Bella cansamos e nos sentamos, cada qual num banco. Eis que um dos que continuaram a “surfar” – acho que foi a Luciana – tomou um caixote e para não arrebentar os quartos -- e os quintos também – caiu sentada no meu colo. Ao que eu imediatamente retruquei, para espanto geral:
--Ai!! Meu polenguinho!!
Lu foi a primeira a verbalizar o pensamento geral.
-- Ué, eu caio no seu colo e você reclama do seu polenguinho? Vem cá, Claudia, como é namorar um queijeiro? – observou ela, antes de gargalhar e encontrar eco em todo mundo, incluído aí o trocador.
Alex e Aurélio também tinham cessado o “surfe rodoviário” e estavam sentados.

Nisso, eu me levantei e tirei do bolso direito da calça – usava calça de algodão verde escuro, com dois longos bolsos na frente – dois queijinhos Polenguinho, devida e irremediavelmente amarfanhados pela buzanfa ( é com s?) da Luciana.

-- Ainda bem que a Lu caiu em cima do lado direito – disse, sacando do bolso esquerdo, dois chocolates e dois doces-de-leite, que vem numa embalagem de plástico e você morde uma extremidade e vai sugando o doce.

Seria mais ambíguo e muito melhor para a minha imagem se, ao ser buzanfado (pergunta que não quer calar: é com s?) pela Lu do lado esquerdo, alertasse:

-- Ai!! Meu doce de leite!!


Mas seria melhor só para a minha imagem porque imagina o lodaçal que ia ficar minha calça, caso algum dos sachezinhos de doce de leite estourasse. Ia ser mais ou menos como o vazamento de silicone dos peitos da Vera Fischer, coisa que aconteceu há uns cinco anos (mas que me calou fundo n’alma: volta e meia eu, ainda hoje, imagino aquela mulher que já foi uma diva, com os seios vazando).

Eu sei que foi (é) uma encarnação interminável. No dia seguinte, a primeira coisa que Isabella pergunta à mesa no café da manhã (ou a pão e água, como vai insistir Luciana) a Claudia, depois de um protocolar bom dia foi:
-- E o polenguinho do Eros, Claudia? Sobreviveu? Tá tudo bem?

E aguente gracejos. Só quem não zoou comigo foram Denise e Simone. Até a Claudia fez piada...

Mas voltemos à noite anterior, que ainda não acabou. Mais alguns solavancos e estávamos de volta a Lumiar. Frio e úmido pra cacete. Mas fazer o quê? A espelunca de Chucky, o Brinquedo Assassino, não tinha área comum que abrigasse seis pessoas confortavelmente, imagina 11. Apesar da bosta do tempo, insistimos e demos uma andada até o coreto – toda aldeia tem um. Claudia tinha levado um baralho, pois já imaginávamos que seria ruim de encontrarmos lazer naquela terra. Mas o chão do coreto estava imundo e começava a chegar um povo ainda mais fedido que os bichos-grilos locais. Quando apareceu uma mulher com uma garrafa de Itapipoca, que ela sorvia pelo gargalo mesmo, fomos embora.
-- É o melhor que a gente faz, galera – dizia Aurélio ajudando Lu a descer os poucos degraus do coreto, como bom cavalheiro que quem o conhece sabe que ele não é.
-- Pô, mas ainda não são dez horas...Num tô com sono algum – ponderou Calmon, enquanto nos encaminhávamos para a Gruta do Gólum.
-- Vamos ficar no nosso quarto ou no de Aurélio e Mônica. São os maiores e se todo mundo se apertar...— disse eu, quando estávamos quase chegando à pocilga, digo pousada.
-- Podem nos incluir fora dessa. Tá frio pra burro e a gente vai é ficar debaixo das cobertas no nosso quarto – disse Denise, diante de Simone, que balançava a cabeça assertivamente, partilhando da opinião da irmã mais velha.
Eram dez e cinco quando cruzamos a porta da Pousada do Alien. Fomos para o quarto onde eu e Claudia estávamos hospedados depois de cruzarmos com seu Klein, dona Klein e Kleinzinho diante de uma televisão... ligada!! Caramba, até alienígenas assistem novela!!!
-- Boa noite – saudou-nos Klein.
-- Boa noite – respondemos em uníssono.
Já no nosso quarto, sem a presença de Denise e Simone, trocamos o baralho por uma assembléia. Dúvida: o que fazer?
-- Dou força para a gente ir embora daqui. Vamos de volta para o Rio -- sugeriu Aurélio, então morador de Volta Redonda, ainda livre dos “porra, meu” admitidos em seu léxico diário depois de duas décadas morando em São Paulo, capital.

-- PÕ, mas se a gente saiu de lá em busca de tranquilidade – ressaltou Alex.

Sei que depois de muitas deliberações depois chegamos à seguinte decisão: de manhã cedo, Claudia ligaria para Leila, prima dela, embora minha mulher regulasse em idade com as filhas dela, as três Anas: Cristina, Paula e Beatriz. Eles (não citei o Ambrósio, marido da Leila e pai das Anas) tinham uma casa em Friburgo, que talvez estivesse vazia. Naquela época não tinha celular – uns quatro anos mais tarde, tive acesso aquela máquina revolucionária na cobertura de um show na Enseada de Botafogo. Era um tijolão imenso e eu não conseguia passar a cobertura do show pelo celular e tive que recorrer a um orelhão para passar a matéria. Ainda ficamos conversando um pouco no quarto – Lu também já tinha ido dormir. Deu onze e 15 e decidimos ir dormir. Calmon ainda estava sem sono. Pois que contasse carneirinhos (na época já namorava a Kátia Carneiro, hoje mulher e mãe de seu casal de filhos) ou papeasse só com o André no quarto.

A princípio, não entendi a pressa de Bella em ir para o quarto que dividia com Alex e Lu - àquela altura do sono dando buzanfadas (é com s?) em Morfeu. Logo que todos se despediram e foram para seus quartos e Alexandre encontrou a porta do quarto fechada, começou a fazer sentido a pressa da Loira Má.
Os Quein já tinham se recolhido e o silêncio, imperativo na Toca dos Quem, reinava absoluto. Só, rarefeito, ouvia-se o sussurar de Alex diante da porta do quarto trancada:
-- Bella! Bella! Abre a porta. Abre logo, que tá um gelo aqui fora.
Nisso, aconteceu uma sucessão de murros e pontapés na porta. E de dentro do quarto, num fiapo de voz fingido, Isabella pedia comedimento ao Alex:
-- Por favor, Alex. Não faz barulho. Já são mais de 11 horas.

Eu e Claudia chegamos a deixar nosso quarto, atraídos pelo barulhão.

-- O que houve, Alex? Que esporro é este? – perguntei.
Mas Alexandre nem precisou responder.
Uma nova sucessão de murros e pontapés chacoalhou a porta fazendo de novo barulho alto. Era Bella que esmurrava a porta, enquanto Alex fazia cara de resignação.

-- Pôxa, Alex. Já te falei pra num fazer barulho, esta é uma pousada de família – dizia Bella, com voz pausada e traindo-se para quem escutasse suas ponderações, deixando escapar uma gargalhada entre as duas últimas palavras pronunciadas.
Alex, da resignação, passou ao desespero.
-- Isabella, pelo amor de Deus, abre esta p#@@% de porta – falando um tiquinho mais alto.

Apesar do palavrão proferido entre os dentes, ainda era grande o medo de que Jason aparecesse com sua motoserra gritando “que era proibido fazer barulho depois das dez e meia, caralho!!!”.
Acabou que o cara não emergiu das sombras. Também, além dele, mulher e filhos, só nossa desavisada turma estava na pousada. E pouco depois, Bella abriu a porta. Ela só queria que Alex -- ou Lu, calhasse entrar no quarto depois dela – ficasse desesperado com a situação; não pretendia obrigá-lo a uma noite gélida, depois daquelas roubadas todas, nem vê-lo retalhado pelas garras metálicas de Freddie Kruger. Objetivo cumprido, porta aberta.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Lumiar e polenguinho 2.4

Voltemos a Lumiar e a pousada do Klein. Acho que a cidade não estava tão cheia porque urbanos, mais espertos do que nós, confiaram nos palpites meteorológicos (naquele tempo, mais do que hoje, uma loteria). A meteorologia previa uma Semana Santa chuvosa. Mas um solzinho, ainda que tímido, na manhã de quinta (chegáramos quarta à noite), nos encheu de esperança. Fomos todos para uma cachoeira a pé -- não era muito distante da pousada -- depois de tomarmos o café da manhã. Afinal, quando se é jovem há uma ânsia de tudo aproveitar, e entre nós o que não faltava era ansiedade por um mergulho na gélida poça feita pela cascata. Mas bastou chegarmos ao poção para cair um dilúvio. Até dava para ficar, não fosse o frio cavernoso que fazia. Era de se esperar que a chuva gelada tornasse quentes as águas vindas do Véu de Noiva (acabei de batizar, toda cidade turística tem uma cachoeira com este nome). Qual o quê! Era glacial o frio fora ou dentro d’água.

Assim não restou outra saída senão batermos em retirada o mais depressa possível. Aurélio corria como um louco na frente de todos. Voltara pilotando o Passat, resgatando todo mundo daquele aguaceiro. Numa primeira levou Mônica, Claudia, Calmon e André mais as irmãs Denise – era diagramadora de um jornal de cinema no qual a Claudia trabalhara antes de ir para o Globo -- e Simone, outro subgrupo.
A Denise conhecia algumas pessoas desse Dream Team – ou Nightmare Team, mais apropriado - mas a irmã só conhecia, e mesmo assim, mal, a Claudia. As duas eram bem tímidas e quietinhas.

Na segunda leva, Aurélio recolheu quem ainda estava debaixo d’água: eu, Luciana, Alexandre e Isabella. Os três já tinham estudado com a Claudia. Alex fizera o 2º ano do Segundo Grau (hoje ensino médio) e o cursinho pré-vestibular com ela no extinto Colégio Impacto, na Rua Xavier da Silveira, onde hoje funciona um apart-hotel. Luciana e Isabella estudaram Comunicação com Claudia. Lu optou por publicidade e abandonou o curso. Já Bella concluiu jornalismo com minha mulher, mas optou pela pesquisa, enquanto Claudia se rendeu ao jornalismo, primeiro o impresso, depois o televisivo e atualmente o on-line.
Lu é uma das pessoas mais agradáveis que eu conheço, dona de um humor ágil e inteligentíssimo. É madrinha do Caio, meu filho mais novo, e botafoguense de carteirinha como nós, aqui em casa. Meus filhos são fascinados por ela. É uma genial contadora de história. Acho que ela e o Zamba, vulgo Gilberto, irmão do André, estão comendo mosca. Dariam dois ótimos comediantes – e é muito mais difícil arrancar uma gargalhada do que uma lágrima.

Já Isabella era diabólica – no passado mesmo, porque agora, deu uma acalmada. Viajar com a Bella significava disposição para aturar toda sorte de avarias no percurso da civilidade. Acordar untado de pasta de dente ou andar um longo trecho com um pedregulho imenso na bolsa eram sinônimos de que Bella estava por perto. Poderia listar uma infinidade de qualidades de Isabella, mas o objetivo desse texto é acentuar seu lado Loira Má. É madrinha de consagração do João.

O terceiro vértice deste triângulo de amigos é o Alexandre, marido da Ciça, mas que na época nem imaginava que se tornaria Alexandre Mendes. Apresentado ao grupo da Eco pela Claudia, foi imediatamente aceito e passou ser um comunicólogo desde criancinha. Alex é a tranqüilidade em pessoa. Nunca vi o cara puto, nunca. E dá papo para todo mundo, até pros chatos. Se ele tem ansiedade – um dos grandes males contemporâneos – não demonstra; tira de letra todo e qualquer embaraço. É padrinho do Caio e conhecido lá em casa como “Tio Pangaré”.

Pois Bella e Alex foram os últimos a serem resgatados por Aurélio. Como não havia o que fazer – não tinha onde se proteger da chuva – vinham ensopados debaixo de uma toalha, tiritando de frio. Não preciso me estender ao dizer que o carro do Aurélio ficou um melê com barro até o teto. E o toró que caía era gélido e assim ficou o clima o resto do dia.

De volta à estalagem do Pônei Cansado (como era mesmo o nome do lugar onde os hobbits de “O senhor dos anéis” encontram pela primeira vez Aragorn (Viggo Mortensen) e por ele são salvos de serem mortos? Pois o Klein era a cara e a careca, mais a careca, do Gólum) tomamos banho quente – morno ou gelado mesmo, conforme reza a Lu. E como não tínhamos como sair com aquele pé d’água, ficamos no Klein, cuja diária só incluía café da manhã, traçando uns biscoitinhos muito dos muquiranas até umas quatro da tarde, quando parou de chover.

Mas continuava frio pra chuchu. Sei que fomos a um restaurante e fizemos um lunner (corruptela inventada agora para designar, em inglês, duas refeições em uma, no caso o almoço e o jantar. Num tem o brunch? Então pode ter o lunner). Sem poder usufruir das belezas naturais de Lumiar e não tendo como permanecer na pousada do Klein (a Lu me corrige e diz que a estalagem era um moquifo só), pois o silêncio era imperativo a partir das dez e meia da noite, fomos, todos, de ônibus até São Pedro da Serra, uma cidadezinha um pouco mais acima de Lumiar.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Lumiar e polenguinho 1.4

Não lembro exatamente quando foi e por que escolhemos Lumiar. Sei que foi o grupo mais eclético que jamais conseguimos reunir. Eu e Claudia mais nove amigos, de quatro grupos diferentes. Foi antes de 1989; sei que eu inda não estava casado com Claudia, tão pouco Aurélio, um amigão meu do Voltaço, casara-se com
Mônica (eles se separaram há dois anos e tem um filho de 21 anos, o Rafael). O casal era um dos grupos ecléticos que subiu a serra.
Na época, o Aurélio tinha um Passat vermelho e era o único que foi motorizado para Lumiar. Nós outros, fomos de buzão mesmo.

Acho que foi numa Semana Santa que fomos conhecer a cidadezinha que era título de música do Beto Guedes.Também não tenho certeza quanto à pousada: se reservamos daqui ou foi nossa única opção naquele paraíso de bichos-grilos. Afinal, era um feriadão e Lumiar, como todos os cantos turísticos do Brasil, estava cheia de urbanóides, como nós, além dos b.g. de sempre.

A segunda alternativa – última e única opção – ganha força diante da porcaria que era a pousada. Isso pode se imaginar apenas lendo o letreiro em frente ao casario: “Pousada do Klein”. As dependências até que eram limpinhas, apesar do tal do Klein parecer um adepto de uma dessas seitas apocalípticas que prenunciam o fim do mundo.

E o regime interno da pousada era o óu. Era vetado qualquer tipo de barulho depois de 22h30m. Ah, devia ser por isso que a pousada jazia vazia em pleno feriadão... Numa terra onde só tem bicho-grilo, você exigir silêncio total a partir de dez e meia é pedir pra falir.

Mas foi um aviso afixado na parede dos quartos que nos chamou a atenção. “ É terminantemente proibido queimar vela fora da latinha”. Procuramos e nada de latinha ou vela. Aí fez sentido o que o André Fábio, companheiro de Jornais de Bairro e meu vizinho de rua -- morávamos em dois dos últimos prédios da Benjamin Constant, na Glória, separados por duas casas de tolerância.
__ Hummm. Isto está mais parecendo uma proibição para não fumar maconha. Exato! É um código: onde lê-se “é terminantemente proibido queimar vela fora da latinha” deve-se ler “é terminantemente proibido queimar maconha” – matou a charada nosso Sherlock Holmes que dividia o quarto com outro amigo do Globo, que vem a ser padrinho de nosso filho mais velho (temos trigêmeos), Milton Calmon.

André Fábio fez algo em 1991, isto é, há quase 20 anos, que é um enigma até hoje para mim. Éramos grandes amigos – de freqüentar a casa um de outro e filar bóia sem qualquer constrangimento – e isso se seguiu ao meu casamento com Claudia. Depois de morar um bom tempo na Benjamin Constant, ele mudara-se para a Conde Laje, também na Glória. A Glória é um dos menores bairros do Rio. Visitávamo-nos regularmente, mas sem qualquer motivo aparente, André parou de nos procurar. Simplesmente riscou-nos de sua relação de amigos. A gente perguntava o porque daquele notório esfriamento de relações e André sempre saía pela tangente.
-- Não há nada. Só num deu para aparecer –- justificava (?) ele, quando reclamávamos de seu súbito gelo.

André tangenciou rapida e definitivamente, mudou-se da Glória e pulou fora de nossas vidas. Sinto falta de nossos papos sobre cinema e música pop (tínhamos, eu e ele, uma porrada de vinis e emprestávamos, um ao outro, discos com frequência). Bem, bola pra frente ou bico pro mato/que o jogo é de campeonato.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Guia

Ainda hoje continuo a passar dias em Volta Redonda. Já teve umas duas vezes em que fiquei uma semana direto na casa que era do meu pai e atualmente é da Norinha. Desde que se separou de Natasha, há dois anos, Chris, meu sobrinho, voltou a morar num quarto com banheiro nos fundos, com entrada independente.

Há uns três anos, quando ainda tínhamos carro – um Pegeout 206, ano 2004 – que vendemos no fim do ano passado, fomos passar um fim de semana no Voltaço. Sempre ficávamos no Bela Vista, um hotel ótimo, da própria C.S.N., que montou um hotel legal por conta dos gringos, principalmente americanos, que vinham dar consultoria na companhia.

Somos em cinco, o que inviabilizava nossa permanência na casa de minha irmã; uma única vez, ficamos na casa do André, enchendo com nossas presenças uma casa grande, bonita e confortável, mas que não fora projetada para abrigar nove pessoas.

Sei que Códia e André tiveram que deixar o quarto deles, ocupado por Claudia, eu, João e Caio; Clarinha dormiu com Ana Júlia. Códia, do André, dormiu no quarto do filho, Andrezinho, enquanto o André dormiu num quarto na cobertura. Acho que o prédio tem apenas quatro apartamentos, sendo que os do segundo andar tinham mais um pavimento.

Ou seja, já conhecíamos de cor e salteado o apartamento do André, mas nunca acertávamos o caminho. André e família moravam no Jardim Amália II, bairro colado no Jardim Amália, onde até hoje seu André e dona Leila moram num casarão que abrigara, muito confortavelmente, os pais do André e os seis filhos do casal: três homens e três mulheres.

Esse senso de “desorientação” não era de se estranhar em mim. Eu me perdia até em Viçosa, uma microcidade encravada nas montanhas de Minas e que em 1979, quando fui estudar lá, não tinha mais de 40 mil habitantes. Mas acho eu minha antice contaminava a Claudia também, de modos que nunca acertávamos o caminho.

Até que numa de nossas idas a Volta, combinamos de lanchar na casa do André.

-- ... só tem um problema – ponderava ao telefone com o André. – A gente sempre se perde quando vai à sua casa.

-- Num tem problema, Erão. Quando estiver entrando no Jardim Amália II me liga e eu guio vocês. Mas pega a rua Fulano e Tal e me liga. Num vai ter erro – prometeu André.

Assim fizemos. Quando chegamos a rua Fulano de Tal, eu, eterno no banco de carona, pois não dirijo, liguei do celular para a casa do André.

-- Alô? André? Tudo bem, miguim? Bem, já chegamos na Fulano de Tal... – disse.

-- Agora é só subir... Já estou vendo vocês... – respondeu André.

A tarde estava linda. Castanho-clara. O sol não demoraria a se pôr. Fui interrompido em minha contemplação pela recomendação do André:

-- Olha à sua esquerda. Agora, num tem erro.

Olhei na direção que ele mandara e imediatamente me pus a gargalhar. Do lado esquerdo, havia um imenso terreno baldio e um morro, onde estavam assentadas várias casas. Eis que numa janela, surge uma bunda nua. Imediatamente avisei às crianças e a Claudia.

-- É só seguir a bunda – disse, gargalhando, para Claudia que, assim como o trio, chorava de rir.

André ria alto ao telefone.

-- Hummm... Que ventinho bom – ouvi do outro lado da linha, antes dele desligar.

Com aquela abundancia de informações chegamos rapidinho ao destino.

As crianças estavam hiper-excitadas e ansiosas para que chegássemos logo à casa do tio André.

É por esta e outras que os três adoram o André.

sábado, 8 de maio de 2010

O susto

O ano era 1984. O André desfrutava de seu ano sabático em Volta Redonda. Ele ficou exatos 365 dias coçando tão logo concluiu, no tempo mínimo de quatro anos, o curso de engenharia agronômica, em Viçosa, Minas.

André odiava Viçosa e passara os quatro anos da faculdade arrumando pretexto para ir para Volta Redonda. A greve que, em 1980, mobilizou milhares de alunos para o André significou dias de folga junto â família. Assim, tão logo se formou, André tratou de passar um ano sem fazer nada na casa dos pais.

Chico abandonara a UFRJ, onde cursava matemática. Foram dois anos de tola insistência. Voltou para a casa do pai e para a caixa registradora da padaria da família. Um ano trabalhando de manhã e à tarde. Até resolver fazer concurso público e estudar para valer. Ficava na padaria das 8h ao meio-dia, quando ia para casa, se trancava no quarto e estudava como um tarado.

O terceiro personagem desta história sou eu. Ex-aluno de engenharia agronômica em Viçosa, onde estudara com André, estava no terceiro ano de jornalismo numa faculdade que mais parecia uma boate na Zona Sul do Rio. Estava em Volta por causa de uma semana de recesso nos estudos.


Foi numa tarde de um dia útil que André me ligou, combinando de passar lá em casa. Chegando lá, fomos até uma loja de sucos, perto do cinema Nove de Abril. Nada tínhamos para fazer naquela tarde de sol ainda cálido de agosto, quando André propôs uma incursão abrupta.

-- E se a gente fosse na casa do Chico? São quatro e meia Se dermos sorte, pegamos ele na academia, onde ele faz aulas de jazz – André pronunciou as últimas palavras entre risos abafados.

-- Tem certeza que num vamos perder a viagem? Cê sabe onde fica a academia dele? Cê já viu ele malhando? – perguntei, vislumbrando o Chico, um sujeito cabeçudo e de ombros e pernas curtas e grossas, todo desproporcional, fazendo ginástica entre beldades de malha que abundam as academias de ginástica, seja em Volta, Rio ou Foz do Iguaçu.
Foi uma imagem medonha, dessas que, de noite, a gente baba na fronha, se urina todo e já não tem paz, parafraseando Chico Buarque.
Chicão nunca dera o mole de deixá-lo flagrar malhando. André desconfiava onde era a academia, mas certeza, certeza, ele não tinha.

Mas entre passar a tarde vagabundeando na Vila e ir de ônibus ao Aterrado e termos a chance de flagramos o “verme” – como André, volta e meia, carinhosamente, chamava Chico – malhando, preferimos a segunda hipótese.

Chegando na casa do Chico, tocamos a campainha na expectativa de ouvirmos de sua mãe ou de uma prima, que na época morava com a família – Seu Zé Alfredo era o chefe da casa, que, por sinal, era alugada do Zé Alberto, o JALB – que o Chico estava na academia. Se Chico tivesse mesmo ido malhar, ela era capaz de nos levar lá para assistir a cena. Achava nossas brincadeiras inofensivas e realmente eram.

-- Oi – dissemos em uníssimo para a prima, que foi quem atendera a porta.

-- Chico está tomando banho. Acabou de chegar da academia -- disse-nos.

André pediu silêncio a ela, com o dedo em riste sobre os lábios para em seguida lhe sussurrar:

-- Podemos esperá-lo no quarto dele? Mas não avisa a ele, não, ta?

-- Claro que podem – respondeu ela, com ares de cumplicidade, sabendo que faríamos alguma sacanagem com o primo dela.


Chico morava na parte superior de uma casa de dois andares. Havia um lance de escadas para a casa dele e em frente um terreno coberto de brita e uma garagem encimada por folhas de zinco com capacidade para quatro carros. Ao fim da escadaria, havia vasos e xaxins com antúrios, avencas, samambaias e comigo-ninguém-podes(?), uma espécie de varanda-selva ou vice-versa. Duas portas: uma para a sala de casa; outra para a cozinha.
A prima do Chico nos recebeu pela porta dos fundos. Correndo, silenciosamente, passamos pela cozinha e fomos direto para o quarto dele, o primeiro do corredor, vindo da cozinha.

Entramos no quarto vazio, e excitados com a possibilidade de sacanearmos o Chicão, batemos cabeça, rindo. Penamos em dar-lhe um susto, permanecendo atrás da porta. Isso, quando entramos. Mas imediatamente mudamos de idéia: nos escondemos nas cortinas do quarto.
Foi quando André ditou a última forma. Sussurou para mim:

-- Fica debaixo da cama. Quando ele se aproximar e estiver com os pezinhos ao alcance das suas mãos eu dou um berro e você puxa-lhes os tornozelos.

Me joguei rapidamente no chão e, em dois segundos, estava debaixo da cama de Chico, a postos para lhes chacoalhar
os calcanhares.

Ficamos pouco mais de um minuto esperando-o chegar, numa excitação de criança, rindo nervoso.

Enfim, o sujeito saiu do banho, indo tranquilamente para seu quarto. Vinha com o dorso, pouco, mas pouco mesmo, menos peludo que o do Tony Ramos. Uma toalha enrolada na cintura. Todo fresquinho.

Trancou a porta e imaginei que ia tirar a toalha. Mas com ela enrolada na cintura, veio caminhando em direção da cama. De barriga para cima, preparei-me para o berro do André. Mas eis que a meio metro da cama, Chico parou. Achei que tinha descoberto o André. Mas não. O súbito breque foi seguido de uma guinada tranquila rumo ao armário que ficava na parede oposta à cama.

Pegou bermuda e camiseta, deu uma última olhadela no espelho, como a constatar que sua (feia) imagem conservava-se intacta. Voltou para a cama e seus tornozelos ficaram ao alcance das minhas mãos, mas esperava o berro do André, que parecia adivinhar que Chico viraria de costas para a janela e se sentaria na cama. Pronto! Ele se posicionara de maneira ideal. E ainda ficara pensativo, de costas para a cama. Mais mamão que isso, era impossível.

Justo quando Chico ia sentar-se, André solta um urro irreproduzível. Quase simultaneamente ao berro, minhas mãos apertaram firmemente os tornozelos de Chico.

O cara ficou lívido; não tivesse o sangue galego de seu pai (forte como um touro, embora o Chico estivesse mais para um javali) correndo nas veias, acho que ele teria um troço. Por troço, subentendesse um ataque cardíaco, um desfalecimento (uma reação bichosa) ou um piti chiliquento (idem). Mas como bom filho de portuga, só tremeu nas bases, quietando por três ou quatro segundos – tempo mais do que suficiente para que André saísse de trás das cortinas às gargalhadas e puxasse a toalha que protegia as partes pudendas do verme. Ah, decepção!! Uma cueca crivada de ursinhos Poou evitou o grand finale daquela estratégica peça.

-- Puta que o pariu – foram as primeiras palavras de Chico depois do susto, tratando de arrancar a toalha das mãos do André. – Aposta que foi a imbecil da Lena que deixou vocês entrarem. Lena! Lena!!.

Ele berrava, já com a toalha em torno da cintura, enquanto abria a porta do quarto. Flagrou Lena e sua mãe se escangalhando de rir, imediatamente atrás da porta. E elas não viram minha participação, personificando o terrível monstro que guinchava atrás da cortina. Mas com ouvidos colados à porta e prenunciando que faríamos alguma sacanagem com o Chicão, não se assustaram quanto aquele berro horrível quebrou o silêncio da dormente casa.

-- Lena, sua idiota! Tá mancomunada com eles, né? – Chico ralhava rindo e ameaçando a prima nordestina. –- O´, que eu te boto no próximo pau-de-arara de volta pra Natal.

Deu um xispa na mãe e retornou para o quarto, onde eu e André deitávamos na cama e ligávamos a TV de 21’, sem qualquer cerimônia. Rindo, Chico admitiu que aquele susto fora um dos mais fortes que tomara em toda sua vida.

Mas nossa presença ali era raridade. Desconcertantes eram as visitas semanais feitas por Magno e Alexandre, em 1976, no 1º ano colegial.

Na época, unha-e-carne, a dupla (com um estilo de humor que ora lembrava a sofisticação do Monty Python, ora assemelhava-se à grossura encardida da série “Jackass”) invadia sempre o quarto do Chico. E fuçava o armário sem qualquer constrangimento.

Espalhavam cuecas e meias pelo quarto inteiro. Até as quatro primeiras “visitas”, Chico ainda tentava impedir que deixassem o quarto como devastado depois da passagem de um furacão. Mas já na quinta vez, resignava-se a cobrir o rosto com uma almofada do Vasco.

-- O pior é que eles não diziam palavra. Era como se fosse um trabalho que tinham que executar. Como vinham, partiam. Já na terceira vez que vieram, deixaram até de falar com a toupeira da Lena, que insistia em abrir a porta para a dupla – ria-se a valer Chicâo.

Uma investida das mais engraçadas foi quando, tacando uma a uma as cuecas no chão, Alexandre deparou-se com uma que tinha a Cruz de Malta. Alex não hesitou: botou a cueca vascaína na cabeça, acabou de espalhar as tralhas no quarto e foi-se embora, usando na cabeça a cueca do Vasco.

Coisa de maluco. Coisa do Alexandre.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Bebum, eu?

Em 1999, eu ainda andava sem ajuda de aparelho algum. Andava meio trôpego, arrastando os pés e volta e meia me amparava em paredes. Era efeito da Machado Joseph, que tornava mais penoso o meu dia-a-dia – não muito mais penoso, um tiquinho só.

Não podia passar em frente a um botequim impunemente. Os pinguços me olhavam como quem diz: “O que é isso, companheiro? Num pode beber, num bebe”. E de nada adiantava meus olhares mais irritados, que evidenciavam uma lucidez que só calava em mim.

Teve um cara que chegou a mexer comigo:

-- Tá ruim, hein, camarada?

Eu tropicava no nada, em frente a um pé-sujo na Barata Ribeiro, no caminho de casa, quando ainda morava na Nossa Senhora de Copacabana. É óbvio que nada respondi. Ia falar o que para o bebum?

-- Meu senhor, não estou alcoolizado. É que sofro de uma doença rara, uma ataxia spino-cerebelar, conhecida como Machado Joseph...

E diria isso com a voz pastosa, pois este cocô de doença também atinge a fala. Tá, o cara me entenderia e até se desculparia pelo comentário. Pois sim! Fiz a minha cara mais feia (o que não era nenhuma dificuldade), encarei o cara, tratei de buscar o prumo – ainda tinha prumo, naquela época -- e seguia adiante para ouvir outro comentário jocoso, noutro boteco mais à frente.


O prédio onde moramos até 2005 fica quase na esquina com Bolívar. Em cima de uma Bagaggio, uma loja de malas. De frente para a ruidosa Avenida Nossa
Senhora de Copacabana.

As crianças não tinham feito um ano ainda, quando, inconformados com o aluguel, resolvemos (eu e Claudia) comprar um apartamento, juntando o nosso fundo de garantia como entrada e financiando o resto a perder de vista. Bem, o apartamento da Nossa Senhora é enorme: três quartos amplos, uma sala imensa, que se subdivide em três, um cômodo grande demais para servir como corredor, mas era o que dividia quartos, banheiro, lavabo, cozinha e sala. As dependências é que são muito ruins: a área mal cabe dois secadores de roupa e o banheiro é quase inexistente. O quarto é ok, mas sem qualquer ventilação.

O que incomoda mesmo é o esporro que vem da rua. Um trânsito infernal durante o dia e a noite, batidas de carros no cruzamento de madrugada, freadas ríspidas e barulhentas de ônibus a qualquer hora, vândalos depredando tudo e todos no caminho a partir de uma da manhã...

Só fui ver o apartamento porque tinha me comprometido com o proprietário, que por telefone, me pareceu ser um cara legal. Foi honesto, falou que o apartamento era baixo (3º andar) e de frente. Não queria perder tempo com subterfúgios. Só queria lá gente que, de fato, estivesse a fim de encarar estes desconfortos. Era sábado, Claudia com o trio em casa – antes de nos mudarmos, morávamos no Leme, num apartamento maravilhoso na Roberto Dias Lopes, de fundos para uma encosta verde. Barulho? Nenhum. Éramos felizes moradores e sabíamos disso! Até chegamos a pensar em comprar ali no Leme mesmo, mas não tínhamos cacife. A prestação da Caixa ia ficar alta demais.

Bem, mas era um sábado. E era eu quem estava à caça de um apto. Combináramos o seguinte: nós dois nos revezávamos nas idas aos imóveis anunciados. Um gostando, os dois iriam checar condições. Bem, tinha acabado de olhar um apartamento insólito na Rua Barata Ribeiro (no anúncio dizia “com ampla vista para o verde”). Bah! O apartamento era colado ao túnel que transforma a Barata Ribeiro na Raul Pompéia e a “ampla vista para o verde” limitava-se aos tufos de capim e uma esquálida palmeira que insistiam em crescer em cima do túnel.
Já era uma da tarde e não queria me decepcionar mais. Quase voltei para casa, onde Claudia e os moleques, nascidos há nove meses, me esperavam para o almoço. Definitivamente, não tinha mais intenção alguma de morar numa rua movimentada e
Só fui mesmo por desencargo. Assim que toquei a campainha e me apresentei ao Marcos, filho dos donos do apartamento e responsável pela venda do imóvel,ouvi uma pessoa sentada numa mesinha, único móvel na enorme sala, o que aumentava significativamente a impressão de imensidão.
-- Eros querido – demonstrava toda a casualidade daquele encontro Ana, acho que Paula, divulgadora de uma grande gravadora e namorada do cara.

Bem, gostei do apartamento, Claudia também deu o seu aval. E graças a um despachante (de grátis não, foi pago pelo serviço) conseguimos agendar a grana que o sujeito pedia pelo apartamento dia 28 de dezembro (não tenho certeza quanto à data, sei que foi nos últimos dias de 1998). Senão, teríamos que esperar mais de um mês de recesso dos funcionários da CEF.

Bem, compramos, pintamos o apartamento e nos mudamos. Na primeira noite dormindo no novo apartamento, um calor de matar, um barulho ensurdecedor e uma convicção nada convicta no peito insone. “Eu não vou me arrepender de termos comprado a este apartamento; eu não vou me arrepender de termos comprado a este apartamento”, repetia, como um mantra, entre uma freada mais brusca de ônibus e o farol alto & buzinaço de um táxi. Algum tempo depois, instalamos um aparelho de ar-condicionado e uma janela anti-ruído – que conseguiu reduzir o barulho em 30%, 40%.

O prédio tinha quatro funcionários: o porteiro-chefe, que mandava em Deus e o mundo abaixo dele – contingente não muito vasto - outro porteiro, que ficava até as dez da noite, um faxineiro, que fazia às vezes de porteiro, e um vigia noturno, que ficava insone, sério, das dez da noite às seis da manhã do dia seguinte.

Soube do que vou lhes contar há pouco tempo, uns três, quatro meses. Mas aconteceu há, pelo menos, nove anos.
Na época, quem cozinhava e arrumava para nós era Esmeralda, uma senhora negra. Rose e, primeiro Derli, depois Priscila – mais tarde Rose ficou sozinha -- se revezavam tomando conta dos molequinhos.

Esmeralda é uma mulher “sacudida” para os seus 60 e lá vai fumaça. Fala muito e tem uma voz estridente. É uma pessoa maravilhosa, gosto demais dela. Ainda hoje ela nos visita, sempre quando Cremilda, nossa diarista de sempre (começou a fazer faxina para mim na Glória, em 1986, quando comecei a namorar a Claudia) está aqui em casa.

Sempre que chegava na portaria do prédio, me sentia aliviado. Eram breves instantes de uma paz, que sabia fugidia, mas que valia para respirar e relaxar.

Assim que eu entrasse em casa, a luta iria continuar, só mudaria o cenário da guerra: desde cedo no trabalho, não demoraria nada a ter pela frente um tufão que atendia por três nomes: Caio, Clara e João.

Então, quando cruzava a porta do prédio, vindo do trabalho, era como se todo aquele esforço que fizera para me manter equilibrado terminasse subitamente e eu pudesse relaxar. Subia o lance de escada que separava a entrada predial do elevador social quase me dissolvendo. E minha voz, já pastosa, em nada contribuía para consolidar minha figura:

- Oi, Zé. E aí, Antônio? – cumprimentava sempre informalmente o faxineiro, nordestino, e o segundo porteiro, acho que carioca, respectivamente.

Antônio era botafoguense doente – mas diferente de mim, que sou botafoguense e tenho uma doença. Ele era fanático, lia tudo nos jornais sobre o time. Sempre que eu chegava, entabulava uma conversa sobre o Fogão. Eu gostava de trocar idéias com ele, enquanto subia, trôpego, o lance de degraus.

E Zé atento à minha fala...

O horário do Arnaldo, o porteiro-chefe, era das seis da manhã às duas da tarde. Antônio pegava de duas às dez da noite, Eventualmente, muito eventualmente, eles trocavam. E também me dava bem com Arnaldo.

- E como vai a família, Arnaldo? – perguntava, repetindo o ritual – subia as escadas me dissolvendo, palavras saindo sonolentas da boca.

E Zé atento aos meus passos tortuosos...

O faxineiro pegava meio-dia e largava às oito da noite. Ou seja, só quando tinha “pescoção” no jornal – um tour de force para fechar a edição de um caderno ou determinada editoria – eu não me encontrava com ele.

Eis que num belo dia, Esmeralda chegava em casa para mais uma jornada de trabalho. E cumprimentou o Zé, que como sempre retribuiu e falava (mal) de algum condômino. Era uma briga de marido e mulher no 903 ou uma sova que o pai dera no filho mais velho no 401. Só que o assunto em questão não era outro senão eu.
-- Me explica uma coisa, d. Esmeralda: como a d. Claudia agüenta o seu Eros?
Esmeralda fez ares de avestruz, de completo desentendimento.
-- Hum??? - limitou-se a grunhir sua ignorância sobre o que Zé sugeria.
-- O cara chega mamado todo santo dia. Chega em casa trocando as pernas. E ainda tem as três crianças. Num entendo como ela num dá um pau no cara...

Foi aí que Esmeralda entendeu. E faltou pouco para ela dar uma porrada no Zé.

-- Seu infeliz. O Eros tem uma doença muito séria. Volta e meia, ele cai aqui dentro de casa – disse Esmeralda, que quanto mais nervosa, mais esganiçada falava. – E eu ainda dando papo para um imbecil como você.

Fechou a porta do elevador na cara feia e descomposta do Zé.

Hummmm!! Deve ser por isso que o cara, de repente, passou a carregar sacolas para mim em vez de apenas ficar torcendo para eu me esborrachar no chão.

Bem, eu e ele deixamos o número 960 da Nossa Senhora de Copacabana. Nunca mais o vi e imagino que ele também não mais viu este bebum que vós (hic!) escreve.

domingo, 4 de abril de 2010

T.S. 4.4

Além do despotismo com que administrou o C.I.V.R. e de sua boca exageradamente aberta, ao botar um violento chute a escanteio, guardo poucas recordações de Osvaldo. A que mais me lateja as têmporas é de seu desempenho não em “Dr. Jekill and Mr. Hide”, mas sim em “O médico e o monstro”, como a trama foi traduzida em português.
Foi este arremedo de montagem que inflou o ego do sujeito. Foi imediatamente antes de assumir a presidência do clubinho que ele encarnou o médico que descobre uma droga que o transforma no mais abominável dos homens.

Na TV Globo, o protagonista era vivido por Sérgio Cardoso, ator que morreria no mesmo ano em que o especial foi exibido, 1972. Não foi difícil para ele nos convencer quanto a sua predisposição para viver o protagonista. Era de longe o mais teatral da turma.

Engraçado...Eu não me lembro de qualquer outra montagem. Ou seja, não posso garantir que encenássemos sempre para fazer caixa. Mas lembro-me de flashes da encenação (encenação?? feita por moleques de 11, 12 anos?) de ”O médico e o monstro”.
A gente se empenhou para caramba. Montamos bancos com tábuas e formas cilíndricas de concreto. O quintal ficou cheio de gente, faturamos uma fortuna (dinheiro mais do que suficiente para comprarmos mariolas e marias-moles até num poder). Na única cena em que eu aparecia era dentro da casinha da Nora. Eu era o padre que ouvia as confissões terríveis do médico, que diferentemente do texto original, lembrava-se de todos os crimes cometidos enquanto monstro. Subitamente, quando o padre (eu) ficava aterrorizado com as barbáries cometidas e preparava-se para dar no pé, o médico, já sem conseguir controlar a bizarra transmutaçãa, avançava sobre ele (o padre,eu) e o (me) esganava.
Mas quem roubou olhares e risadas do público foi um primo de Wilkens e Nem, conhecido como Baianinho. Era imagem e semelhança do Cascão, personagem de Maurício de Souza, só que mais nanico. Como não tínhamos mulher na nossa confraria – menina alguma se interessou em fazer parte do C.I.V.R. e nunca imaginamos uma entre nós – um guri tinha que encarnar algum personagem feminino. Como achávamos ridículo se pintar e vestir de mulher, passamos o papel para o Baianinho, – que resmungou um pouco, mas aceitou. Ele -- que não era membro efetivo e só se juntava à gente nas férias -- interpretava a vítima que escapara de um ataque do médico/monstro e detonava uma caçada frenética ao protagonista.

“Montado” – nosso figurino tinha até uma peruca, gentilmente cedida por minha mãe – o moleque era ainda mais feio. Além de um batom que lhe esboçava a boca, lápis preto acentuavam seus feios traços. Usava uma blusa rosa, descombinando com sapatos altos vermelhos. Saia preta e meias-arrastão de igual cor completavam o figurino de Baianinho.
A cena -- ensaiada uma ou duas vezes – era a seguinte: o médico tentava seduzir a personagem de Baianinho. Quando enfim conseguia, cambaleava, e possuído por um ser maligno preparava-se para estrangular a “moça”, que conseguia se desvencilhar dos baços do monstro. E fugia, alertando perseguidores que no fim, davam cabo da criatura.

Assim foi no(s) ensaio(s). Nossa apresentação, marcada para às 19h, começara com uns dez minutos de atraso. Afinal, alguns de nós, atores, tínhamos que fazer às vezes de bilheteiros e lanterninhas, acomodando o público nas arquibancadas de tábua.
Na hora do ”vamo ver”, o Baianinho perdeu a peruca e aquele tufo de cabelos crespos encimava aquela figura grotesca, de batom, saia preta e meias-arrastão que esquecera a fala. Perdido em cena, ele fez uma cara de pavor e correu rumo às arquibancadas e seu desespero arrancou genuínas gargalhadas. Só que a nossa idéia era fazer um espetáculo que deixasse as meninas de cabelo em pé, medonho mesmo.

Mas quando nós, “atores”, voltamos à cena para os agradecimentos de praxe, o mais aplaudido, de longe, foi o Baianinho.


Outra recordação que guardo do Osvaldo não é propriamente dele, mas de Wilkens. Depois que Osvaldo e Paulinho foram para casa deles irreversivelmente
brigados conosco, Vito cismou que ia dar porrada nele e já no dia seguinte. Para isso, iria cercá-lo no campinho de capim em frente ao Recreio do Trabalhador, por onde Osvaldo tinha que passar rumo ao Macedo Soares. Osvaldo ia para o colégio de manhã cedo; saía de casa sete e meia, mais ou menos. Ou seja, Vito ia ter que acordar bem cedinho se quisesse dar uns catiripapos no Osvaldo.
-- Num tem problema. Acordo até de madrugada para dar um cacete naquele bostinha – dizia, convicto, Vito.
Wilkens era bem mais forte que Osvaldo. Mas era muito, muito, muito, muito mais feio. Sabe a morte? Pois ela rivalizaria em feiúra com Wilkens!! O cara tinha umas olheiras de zumbi, um nariz torto, uma boca feia, com dentes tortos e incivilizados. Era o....(pera, estou contando) sexto numa família de dez filhos. Valmir, Valdir, Valter. Wilson, Vilma, Wilkens, Aluísio, Maria de Fátima, Rosangela e Marcos. Escrevendo os nomes é que me toquei que todos até Wilkens deviam ser grafados com W. Quando o Nem chegou, os pais deviam estar de saco cheio de botar nome de filho começando com W e aí botaram os nomes que mais gostavam...a menos que...Nada, não. Por breves instantes, imaginei as certidões dos quatro últimos filhos de Seu Wilkens (sim, acho que Vito era Júnior) e dona Coisa (ela era a responsável pelas olheiras dos filhos). Waloísio, Waria de Wátima, Wosângela e Warcos. Exagero...
Mas Vito cumpria a ameaça e cedinho estava de tocaia no campinho por onde Osvaldo passava para ir para o colégio.
Quando viu Wilkens, deu sebo nas canelas; já devia prever um acerto de contas com o troglodita, que acho, também estudava de manhã, na Escola Pandiá Calógeras, que formava mão-de-obra especializada para a Companhia Siderúrgica Nacional. Vito ficou só nos xingamentos:
-- Foge não, viadim.
-- Arrombado. Vou te dar porrada.
Sabedor da tenacidade jumenta de Vito, Osvaldo dava uma volta muito maior atéo colégio, subindo a rua 31, onde ficava a igreja de Santa Cecília. O caminho era paralelo ao caminho original, só que mas cansativo e mais demorado.

Mais demorou apenas três dias para que Vito percebesse o estrategema de Osvaldo e preparar-se para, entocado perto da ponte na rua 26, quase na rua 31, surpreender Osvaldo.
O ex-presidente do C.I.V.R. vinha ressabiado e atento com tudo à sua volta. Percebeu que havia alguma coisa errada na ponte. Parou, como um antílope ao farejar o leão. Vito acreditou que poderia alcançar Osvaldo na corrida. Besteira. Osvaldo fugiu correndo de volta para casa.
Vito , mais corpulento, ficou muito atrás e teve que se contentar novamente em xingar o desafeto:
-- Covarde, bundão.
-- Osvaldicha!!
Não sei o que o Osvaldo contou ao pai, mas o Seu Lionel passou a levar – antes de ir para o Escritório Central, no coração da Vila -- e trazer Osvaldo a bordo do Simca. Como tudo era muito perto, Seu Lionel almoçava em casa com a família. Bem, Wilkens desistiu de dar um pau no Osvaldo.

Seguramente, há mais de 36 anos que não o vejo. A última notícia que tive do ex-presidente do C.I.V.R. foi que virara modelo.

domingo, 21 de março de 2010

T.S. 3.4

No encontro seguinte com Osvaldo e Paulinho, estavam todos reunidos: eu, Marcos, David, Samuel, Vito e Nem.
Pela primeira vez, eu estava batendo de frente com o Osvaldo. Questionava tudo: a TS, seu modo soberbo de tratar as pessoas, o clima de rivalidade entre os irmãos mais eu e os demais membros do C.I.V.R..
No que ponderei, uma infinidade de reclamações explodiu.
-- Você e o Paulinho são dois metidos – David, o mais franzino de todos, metia o dedo no nariz do então presidente do C.I.V.R.
-- Num sei o que viram aqui. Voltem lá para os lados da rua 24 – disse, já no auge da cizânia, Vito.
Encurralado e prestes a ser tirado na marra do grupo, Osvaldo, como era de seu feitio, dramatizou ao máximo seu gingado rumo ao cadafalso.

Entre olhares arregalados e boca exageradamente aberta, como Peter Lorre em “M., o vampiro de Düsseldorf” – jóia expressionista do cinema
alemão – Osvaldo sentia-se e demonstrava-se acuado. Ainda tentou um último apoio.

-- Depois de tudo o que fiz, vocês estão me enxotando? É isso, Eros? – Osvaldo buscava a mim, não que eu tivesse ascendência sobre os outros; mas tudo funcionava lá em casa, do C.I.V.R. às exposições de tranqueiras usadas.

-- E o que você fez, Osvaldo? – interpelava Marcos. – Nada, só trouxe briga.
Sabendo que perdera a guerra, o ex-goleiro do Topo Giggio, ainda tentou uma saída dramática. Com os olhos verdes quase pulando das órbitas, entrou no meu quintal seguido por todos agora ex-TSs.
Entrou na sede do Clube Infantil e pegou um porquinho de plástico, onde estavam todas nossas economias.
-- Então vamos jogar fora o que conseguimos juntos – disse ele, caminhando até o Jardim dos Inocentes. – A gente taca foge nas notas e no cofre, que é de plástico e joga aos ventos todas as moedas – propôs, filosoficamente, Osvaldo.
-- Uma ova!! – contestou Vito, matando a poesia que Osvaldo pretendia dar ao seu último ato como nosso líder. – Vamos é dividir o dinheiro.
Vito foi apoiado por todos nós, quer por olhares ou por exclamações.
Wilkens prontamente tomou o cofre das mãos de Osvaldo e com a ajuda de um canivete – não sei de onde surgiu – rasgou o porquinho de plástico. Deu uma mixaria para cada um de nós, Prontamente gasta com balas e chocolates pelos mais afoitos, como Muel, Nem e David – sinceramente teria tido destino mais digno fosse incinerado.

O quê fizera Osvaldo sair das imediações da rua 24 e se misturar cam moleques como nós? É que nesta fase de idade a gente costuma fazer amizade com quem mora perto. E embora moradores da mesma rua 27, ele e Paulinho vinham de outra vizinhança.

Eu, Marcos, David, Samuel, Nem, Wilkens e Cláudio – que não participou do episódio do Osvaldo, mas era do grupo – diferíamos das outras turmas por uma pseudo-organização. Pirralhos de dez, 11 anos já fazíamos exposições de raridades
.. -- como uma moeda de 1 peso chileno, de 1961 – ou insetos invocados que pegávamos em incursões feitas ao morro do Bela Vista, onde fica o melhor hotel da cidade. Lagartas multicoloridas, gafanhotos e grilos irados se juntavam a objetos raríssimos e exibíamos no meu quarto, o da frente. Cobrávamos de outras crianças, moleques mais novos ainda e meninas. Várias vezes tivemos que negociar o preço do ingresso pois o visitante achava tudo muito ruim. Aí em vez do valor ínfimo de cinco balas, cobrávamos o equivalente a um chiclete mastigado.

Embora fossem no meu quarto, as exposições eram eventos do C.I.V.R. (Clube Infantil de Volta Redonda). O clube, cujo nome foi invenção do Marcos, disparado o mais criativo e gente boa da turma. Funcionava fisicamente na casinha (casona) da minha irmã, que diferentemente das outras irmãs era, já, maravilhosa. Sempre me dei muito bem com a Norinha que, quatro anos mais velha, incentivava tudo o que eu fazia. Devia ser remorso, pois dela era a culpa d’eu carregar o Ricardo logo depois do Eros. Eros Ricardo é nome de cantor de zona! Tenho um amigo, defensor intransigente da breguice nominal, que não entendia porque não assinava o segundo nome, como faziam Bernardo Guilherme e Décio Manoel.

Voltando ao C.I.V.R., minha irmã deixava que partilhássemos da casinha desde que não atrapalhássemos ela e as amigas. Não tinha atritos. Ainda mais que o quintal

lá de casa era grande o suficiente para abrigar duas turmas, aparentemente incompatíveis, já que as amigas da minha irmã eram mais velhas que nós, membros do clube.

A tal casinha era enorme. Feita com esmero com compensados agregados. Tinha mais ou menos nove metros quadrados e uns 1,80m de altura. Não tinha divisões internas; me lembro de uma mesinha e cadeiras de criança. Tinha telhado de zinco, duas janelinhas e uma porta com chave, que prontamente sumiu – minha mãe tratou de desaparecer com ela. A porta tinha uma pequena abertura em forma de coração na altura dos olhos. Era azul. Minha irmã deixou que escrevêssemos em tinta rosa (rosa?) as inscrições do clube na entrada da casona.

Foi um pusta presente de Natal. A casa chegou rebocada por um caminhão numa noite de 24 de dezembro. Não faço idéia de como entraram com a casinha, nem como a botaram no fundo do quintal. Fui uma baita surpresa e minha irmã ficou esfuziante. Não sei se chegamos a dormir na casa, mas nós insistimos muito com nossa mãe.

Os integrantes do C.I.V.R. pagavam uma mensalidade, uma ninharia, só para termos algum dinheiro para contabilizar. E arriscávamos na música também “Com cocares na cabeça são/Os caciques tremendão”. Tudo por uma rima. É bem verdade que todos no “The tigers” (eu, Marcos, David e Cláudio Esperança) tocavam um único instrumento. O maior instrumentista era aquele que conseguisse fazer mais esporro, fosse batucando uma panela, um penico ou qualquer coisa de metal. E tínhamos uma sanha politicamente correta, que era o supra-sumo da babaquice. Uma vez, instituímos uma cota de palavrões que poderia ser proferida: quem falasse mais de 20 era banido. Houve algum problema e Muel, o mais reprimido de nós todos – seus pais eram batistas ferrenhos – danou a xingar.
-- Puta merda – xingava ele, na reta final.
-- 18...– enumerávamos.
-- Caralho.
--19...
-- Cu.
-- 20. Fechou!! Muel, você está expulso do C.I.V.R.
Ainda bem que este e outros afastamentos não duravam mais que dois dias.
Mas foi esta suposta organização, tão rara, em moleques de 11,12 anos que encantou Osvaldo. Autoritário, decidiu pleitear a presidência do C.I.V.R. depois de protagonizar uma montagem de “Dr. Jekill and Mr. Hide”, de Robert L. Stevenson, adaptada por Domingos de Oliveira para a TV Globo. Ééééé, também montávamos peças para conseguir mais alguma mixaria em caixa.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Tênis no toró 2.2

Ei!!Ei!! Dêem um rewind (aquela teclinha do DVD-player que volta a cena do filme) até “só me restou dormir mais furibundo ainda.” O Artur, testemunha ocular da história e dono de uma memória muito mais preservada que a minha, lembrou-me algo que julguei acontecer no dia seguinte.
Deram o rewind? Então vamos à versão do Artur.
Inconformado com a merda que acabara de fazer, parti em direção a um saco de goiabas e, como um louco ensandecido, comecei a sapecar as frutas nos meus inimigos de ocasião.
-- Ce tá maluco, Eritos? – berrou o Artur, cuidando de guardar o violão na capa de napa.

Sim, eu estava possesso!!! E aquela cagada de atirar o meu próprio tênis lá fora com aquele dilúvio, foi a gota d’água!!
Furibundo, mirava e acertava, à queima-roupa, nos corpos e nas cabeças de Lair, Enéas e Artur.
Meu ataque maciço durou 20 segundos, se tanto. Este foi o tempo que eles demoraram entre a surpresa e o contra-ataque.
No dia anterior catamos todas as goiabas maduras dos muitos pés que circundavam a casa. Era daquela goiaba que tem gosto e bicho. Branca, porque a nobre é a vermelha. Enchemos dois sacos de linhagem, enormes.

E eram dois sacos. Rapidamente os três lançaram mão do outro saco de goiabas. E aí tomei uma chuva dos frutos, que de tão maduros, estavam azedando. Tomei nas fuças, na cabeça, no peito esquálido, nu e suado. Tive que tirar os óculos para evitar estragos maiores. Quando estava em vias de perder o sacão de goiabas, Claudio me acudiu, levando para longge dos três o saco de goiaba e atirando contra Enéas, Lair e Artur. Rapidamente me juntei a ele e a luta das goiabas passou para o quarto, com lençóis e colchões sendo pisoteados e paredes alvejadas com os frutos. Sei que o contato corporal era inevitável e em pouco tempo Enéas e Lair estavam me imobilizando.
-- Calma, calma – gritava Enéas, apaziguador, notando que eu realmente perdera as estribeiras.
-- Calma? Como você quer que eu fique calmo? Vocês me enchem o saco, não me deixam dormir e a casa ainda é invadida por um penetra – a última frase disse olhando para o Lair.

Pronto. Melei a situação tanto quanto a guerra de goiabas. A coisa ficara séria. Enéas e Lair imediatamente me soltaram e o último estampido daquela guerra foi uma goiaba atirada pelo Cláudio que resvalou na cabeça do Enéas antes de se despedaçar em cima do sofá. Obtida através de um decreto de guerra, a paz se fez presente instantaneamente. Iluminados pela fraca luz do lampião, arrumamos nossas cantos de dormir em silêncio. Imundos, colchões, sofá e lençóis estavam coalhados e grãos de goiaba. Fomos tomar banho de chuva para limparmos um pouco dos restos de goiaba nas cabeças, e o tantão de suor com os quais encharcávamos os peitos nus. Acho que Artur e Enéas preferiram tomar uma ducha no banheiro. Não havia diferença: a água era igualmente gélida. Calados tomamos banho, calados fomos dormir. Somente o mal-estar pesava sobre nossas cabeças. Ainda imagino alguém cuspindo sementes de goiaba no breu.


O dia amanheceu esplendoroso. O quarto exalava a cheiro de goiaba; havia restos de goiaba em todo canto. As paredes, chapiscadas e brancas, estavam imundas, assim como o chão do quarto e da varanda. Tão logo tomamos café, Lair pegou as coisas dele, se despediu e partiu pela curta estradinha de terra até a Rio-Santos, que passava em frente a meia-água. Ia pegar o Pontal-Angra, de onde pegaria um ônibus para Volta Redonda.
Fui atrás ele, óbvio.
-- Lair, Lair – berrei.
Ele parou e virando, me esperou chegar até ele.
-- Cara, me desculpe pelo que falei ontem – comecei. – Tava puto com a zona que vocês estavam fazendo e disse besteira. Me perdoa.
Lair, um cabeludo, que hoje imagino imagem e semelhança do pai, careca e com um bigode colossal na época, foi polido:
--Não tem nada que pedir desculpas, Eros. Tá tudo bem. Tchau.

Lair deu uns quatro passos em direção à estrada antes de ouvir meu pedido.
-- Se está tudo bem, então porque você não fica? O fim de semana vai dar um praião... – era o convite que acho que teria que ser feito por mim ao novo integrante da trupe.
Lair cedeu e voltamos pelo caminho de terra até a casinha no Pontal.
Chegando lá rindo, fui dar buscar meu par de tênis que jazia numa poça perto do muro. Completamente esbagaçado. Tinha manchas daquela terra marrom e infértil com que aterraram o terreno onde foi erguida a casa. Eu o mostrei para a rapaziada, rindo, e segui para o tanque, onde o lavei.

Apesar do sol cáustico e convidativo, só fomos para a praia poluída por óleo e gasolina de barcos do hangar do I.C.A.R. de tarde. Passamos a manhã limpando a sala e a varanda das sementes e dos bichos de goiaba.
Cacete!! Tinha resto de goiaba até no teto. O cheiro de azedo foi atenuado com litros de Pinho Sol usados para limpar chão, móveis, paredes e bibelôs atingidos na guerra goiabal. E foi uma manhã alegre, descontraída, cheia de risadas e gozações de parte à parte, sendo eu o alvo preferido e óbvio da rapaziada.
Lá pelas 15h, fomos correndo para o clube, retornando para casa quase às 18h. Depois de um banho gelado e embebidos de litros de repelente, fomos degustar um maravilhoso miojo com molho de sardinha e tomates e matamos o resto do garrafão de Sangue de Boi, o pior vinho que já bebi na vida. O bom humor voltava a imperar e voltamos a ser um grupo.
Na mesa da cozinha, antes de sentarmos para o último jantar na meia-água daquele verão, alguém botara um copo de geléia improvisado como vaso de flor. Comovente e realmente reconciliador.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

ts.2.4

A T.S. foi uma das últimas iniciativas de Osvaldo como nosso líder. Eram muito ridículos nossos ensaios de vandalismo. Algumas vezes, lá pelas oito da noite, executávamos um bailado estranho às margens do riacho que, idilicamente, separava (ainda separa) a 27 da rua 31.

O riacho ficava a uns seis metros abaixo do nível das ruas, que só tinham um lado de casas. Em frente a elas havia um jardim gramado, com eventuais canteiros de plantas que adornavam o longo jardim – uns 2.000 metros quadrados.
Até as vertentes do rio eram gramadas. Às margens dos dois vórtices, árvores grandes (acácias) separadas a cada 10 metros, distância igual para românticos banquinhos de madeira.

De tempos em tempos, quando cruzava com ruas como a 33 e a 26, o regato corria sobre pontes. A única pinguela que existia além das trafegadas por carros, ficava em frente à minha casa, e mais tarde, uns cinco ou seis anos depois, nos a chamávamos de “Ponte das Anharips”-- Piranha + s, no dialeto popular “de-trás-para-frente”. Casaizinhos se apertavam até num poder nos bancos à noite, sob a luz bruxuleante de postes que acendiam pontualmente às 6 e meia. A área foi, por um muito breve instante, apropriadamente batizada pela Prefeitura de “Jardim dos Inocentes”. Quando os casais descobriram o potencial, digamos, “romântico” do lugar, o título virou ironia.

E os casais de namorados viraram o nosso alvo preferencial em potencial, sempre em potencial. O inusitado bailado que praticamos algumas vezes consistia em simularmos ataques com sacos de água em casais agarrados nos banquinhos. Um descia para o vale onde ficava o rio ao lado da pontezinha, munido de quatro sacos d’água, até o degrau mais alto e amplo dos três que margeavam diretamente o riacho, e abastecia moleques diretamente postados em frente aos bancos que tinham namorados. Ia o mais rápido e furtivamente possível. Treinamos esta ação umas quatro vezes, sem efetivamente molharmos um casal sequer.
-- Uai, se já estamos lá embaixo com os sacos d’água porque simplesmente não os tacamos nos namoradinhos? – perguntava, entre rude e óbvio, Vito, o Wilkens.
-- Premeditação – responderia, com ar cansado, Osvaldo, tivéssemos este vocábulo em nosso limitado léxico de criança.

Pois toda graça vinha do ataque-surpresa e da ação coordenada.

Assim, o único ato de sacanagem do qual participei, junto com o Paulinho Cabeção, foi uma pedra grande, meio-tijolo, atirada contra a porta da última casa do lado ímpar da rua 20.

Eu e Paulinho atrás da árvore a uns dez metros da entrada da casa de uma senhora, que assustada com o barulhão, abriu a porta para checar o que tinha acontecido. Entre assustada e atônita com o pedrão e a tintura da porta agredida pela mesma, resignou-se a balançar a cabeça, desaprovando aquela ação de vândalos. Antes de entrar, pegou no colo uma criança que imergiu da sala em seu encalço.
Assim que a mulher fechou a porta, Paulinho deu um soco na outra mão estendida e aberta
e caprichou no berro surdo:
--Yes! (Não, não, não. Naquela época não havia esta expressão e Paulinho Cabeção estava longe de ser “um filósofo de depois de amamhã”, como acreditava, muito apropriadamente, Niestzche em vida). Mas Paulinho ficou exultante com nosso ato de guerrilha urbana.

Já eu, não. Me arrependi antes mesmo do pedregulho tocar a porta da mãe do menininho.


Eu tinha alma de coroinha, embora cedo, começasse a simpatizar com o espiritismo. Tinha uma necessidade quase mórbida de partilhar com os outros os meus erros. Assim, enquanto Paulinho deve ter repousado seu cabeção no travesseiro e dormido o sono dos justos, minha noite de sono foi horrível. Demorei a dormir,dormi pouco e quando despertei, estava tomada a decisão: ia me desculpar pelo calhau na porta.

Quando comuniquei isso para a rapaziada, foi um “Deus nos acuda”.
-- Caralho!! Não faz isso não. Você vai botar toda a nossa operação em risco – argumentou Paulinho, com anuência vibrante de Osvaldo.

-- Que operação? Que risco? – perguntava eu o óbvio.

Paulinho Cabeção mais parecia um fósforo por acender. Era um moleque baixo, magricela e cabeludo, um cabelo liso, cortado na altura dos ombros. Acho que muito de sua notória cabeça, que lhe rendera o apelido, devia-se às suas mechas. Tinha hábitos estranhos: conversava com formigas e dizia ter poder sobre elas. Puras ilusão ou cascata.
--- Vamos, minha nêga. Vá até aquela árvore e me traga aquele raminho – ordenava Paulinho a uma formiga preta, grande, com ferrão e bunda amarela, dona de uma picada doída pra caramba, equilibrando-a sobre o dedo indicador.
Geralmente a formiga ia para a árvore, se escapasse do ataque furioso de Paulinho, em revide a uma ferroada tão logo caminhasse o primeiro centímetro de dedo.
Como ele vivia com os dedos inchados devido à desobediência dos insetos, acho que ele acreditava ter mesmo algum poder sobre os bichos. Ou então era um noviço masoquista.

Sei que estava resoluto em minha decisão (quase um ato religioso) apesar das muitas advertências em contrário, argumentadas por Paulinho e Osvaldo. O resto da turma só achava ridícula e desproporcional minha obsessão em esclarecer o episódio com a dona da casa.
-- Não machucou ninguém – afirmava, inapelavelmente, Marcos.

Mas minha decisão já estava tomada. Foi falar com a dona da última casa do lado ímpar da 20.

Constrangedor. Eu me desculpava por um acidente que não houve, mas que poderia ter havido. A mulher, que trazia o filho no colo quando atendeu a campainha, demorou um pouco a entender o que eu queria, tamanhas eram as hesitações e o gagejar em meu discurso.
Isentei o Paulinho de qualquer culpa, isto é, não toquei no nome dele. Tomei para mim toda a responsabilidade pelo “terrível” ato terrorista. E aí ela me fez uma pergunta que não tinha resposta e significou o início da derrocada do império osvaldino: “Por quê”?

Saí da casa da mulher em paz com minha crônica culpa judaica (?)-cristã. Mas aquela dúvida me latejava na mente. Por quê? Por quê? Por quê aceitávamos aquele julgo idiota e --- embora nunca posto à prova – maligno do Osvaldo? Seria mais justo fazer a pergunta no singular. Era eu quem dava suporte à ascensão do Osvaldo. Afinal, era no quintal lá de casa que ficava a enorme casa de boneca da minha irmã, sede do Clube Infantil de Volta Redonda (C.I. V.R.), sempre gerenciado, talvez sem objetivos, mas sempre com gentileza. Na administração do Osvaldo, a volúpia tomou forma, assim como a ambição. Desavenças começaram a brotar no grupo, unido em tudo, principalmente nas tolices. E a T.S., que nos lançaria num mundo completamente diverso do nosso, naufragara antes de qualquer ação maquiavélica.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

TS 1.4

T.S. . Turma de Sacanagem. A gente nunca tinha ouvido falar, mas pareceu a todos uma idéia promissora. Quem veio com esta história foi o Osvaldo, irmão mais velho do Paulinho Cabeção, quando, “alemães” que eram, se infiltraram na nossa turma. Osvaldo, com minha ajuda – culpa já assumida e prontamente desculpada – chegou a tocar o apito de líder. Por pouco tempo, graças a Deus.


Uma T.S. seria um bando de moleques – nós, bocós por completo, sem o menor traquejo em investidas agressivas -- concentrado em ações terroristas a namorados, cachorros, vizinhos mais velhos e o que mais pudesse se tornar um alvo em potencial. E não haveria de ter alvos, prometia, exagerando o tom, o Osvaldo.

Nós, os bocós, éramos sete pacíficos garotos (tínhamos entre 11 e 14 anos): eu (morador da casa 30 da rua 27), Samuel (da casa 24), os irmãos Marco e David (do número 20) e mais três guris da rua 20, uma das quatro transversais da 27, que separava meu quarteirão do das casas do Muel e de Marco & David. Minto: na época do Osvaldo, estávamos brigados com o Cláudio Esperança. Os únicos da 20 a integrarem nossa turma era o Vito (o nome verdadeiro deve ser o mesmo de um clássico da literatura eslava, Wilkens) e o Nem (apelido mais plausível para um simplório Aloísio).

Irmãos com uns quatro anos de diferença, Osvaldo e Paulinho moravam na mesma 27. A exatas quatro casas e mais uma ruazinha transversal, a 22, da minha. Um continente de distância, hábitos e língua diferentes – não, não, língua não -- em nossa imaginação de criança.

Não me lembro do ponto de contato. Acho que o Osvaldo queria agarrar num time - desde que o Topo Gigio, mítico time no qual ele era goleiro, e Paulinho, reserva absoluto, pois era um zagueiro muito do perna-de-pau, fora extinto ele não mais jogara. E via potencial em nosso time, os Falcões – plágio descarado do Águia, equipe que só reunia gente da rua 22. O Águia media forças com o Topo Gigio pela hegemonia dos campinhos que pipocavam na 27, às margens de um afluente do rio Brandão.
Osvaldo era bom goleiro, embora se achasse muito melhor do que realmente era. Muito exagerado, tinha como hábito de abrir excessivamente a boca, como a salientar a importância do fato que protagonizara ou testemunhara. Valera-se de ser mais velho e suficientemente maduro para assumir o controle de nossa turma – que tinha dois moleques de 10 anos, David e Muel; eu tinha 11; e Marcos e Nem, 12. Vito ou Wilkens era da idade do Osvaldo, 14 para 15, mas intelecto e sensibilidade não eram nem Tico nem Teco na cachola dele.

Um exemplo da sagacidade do brutamontes. Certa vez, aflita com o destino das borboletas implacavelmente caçadas por Wilkens, Nora, minha irmã, pediu, chorosa:
-- Num mata elas não, Vito.
-- Num tô matando não, Norinha – tranqüilizou-a o toupeira, completando a sentença: -- Só estou arrancando as cabecinhas.
Nosso time tinha dois caras bons de bola: eu e o Nem, que éramos magros de ruim (eu ainda sou); o Vito, truculento e vigoroso zagueiro – do pescoço para baixo, bordoada não era falta; Marquinhos, David, Muel e Paulinho eram uma mulambada só.
Mas o Osvaldo viu em nós mais do que apenas um bando que jogava bola.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Tênis no toró 1.2 (lembrança do turteis)

Eis que me ergo do sofá-cama, puto, e aos primeiros acordes de “A volta do boêmio” (“Boemia, aqui me tens de regresso/e suplicante te peço a minha nova inscrição”), sucesso imortalizado por Nelson Gonçalves, nas vozes zombeteiras de Enéas e Artur, pego um par de tênis e isolo um por um pela janela da casa do Pontal, em Angra.

Chovia horrores, mas a janela estava escancarada por conta do calor e como não chovia de vento, a água não respingava no quarto.

Ao meu ato, bradei, silhueta iluminada por raios que a tempestade vomitava, intensificando o toró (de “silhueta” até “toró” foi só para conferir dramaticidade à ação):
-- Eu avisei! Agora quero ver neguinho ir buscar o tênis lá fora com esta chuva!!

Naquele dia de janeiro de 1977choveu pesado até às 6 da tarde, quando a chuva deu uma estiada boa e conseguimos ir ao I.C.A.R.

Éramos em cinco: eu, Cláudio Esperança, Enéas, Lair e Artur, este já um músico fabuloso (tem um dom raro mesmo entre os músicos consagrados – ouvido absoluto). E obviamente sempre o Artur levava consigo um instrumento -- naquela noite, um violão. Ele, hoje um maestro, naquele tempo já era o centro de qualquer rodinha: bastava alguém cantarolar um fraseado que ele tirava a música. Isso é ouvido absoluto.

Bem, sentamos numa mesa e logo começou a juntar gente. Artur tocou as indefectíveis e, por isso mesmo, insuportáveis “Andança” e “Travessia”, e mais umas dez músicas. Mas nos mandamos de volta para casa quando começou a ventar forte do mar para o continente, sinal de que chuva forte não tardaria a cair.

Estranhamente – não sou um cara mau-humorado – estava chateado. Um pouco pelo chuvaréu que fez daquele dia um tédio, muito pela presença do Lair passando dias lá em casa.

Lair era um cara legal, jogava pelada com a gente, foi titular da primeira seleção de basquete do Clube Recreio do Trabalhador, formada pelo Paulinho Camargo. Nada contra, em absoluto.

Mas estava pau da vida, porque eu, o dono da casa, não o havia convidado para ficar lá com a gente. Íamos sempre a Angra e calhou de esbarrarmos com ele. Lair estava na casa de primos e dali a dois dias ia embora para Volta.

No dia seguinte, o encontramos novamente em frente a um supermercado. Até passamos um constrangimento juntos: entramos no mercado, três de nós – acho que o Cláudio e o Artur não fizeram a besteira – abrimos iogurtes, tomamos e jogamos no lixo do mercado, antes de irmos ao caixa pagar nossas compras: pão de forma, margarina, leite longa-vida, miojo, velas e outros itens de sobrevivência na meia-água sem luz.
A caixa cobrou-nos:
-- $ (não me lembro a moeda e o valor é chute) 28,80.
Tirei $30 do bolso e dei para ela.
Nisso ouvimos a voz possante de um segurança:
-- Cobra mais $ 2,40, Marta. $ 0,80 por cada iogurte que estes “senhores” tomaram no passeio pelo Epa (nome fictício do mercado).
Sequer tentamos uma desculpa esfarrapada. Rubros de vergonha, coletamos mais $1,20 e demos no pé, rapidinho.

Quando íamos para o terminal rodoviário pegar o ônibus para o Pontal, Lair veio atrás.
-- Ei, ei. Vou ficar com vocês --
disse ele, que só trazia uma mochila não muito cheia. – Tinha decidido ir embora hoje mesmo. Já ia para a rodoviária quando encontrei vocês. E já é sexta. Posso muito bem ficar com vocês até segunda.

Cabia a mim cortar a permanência dele conosco, Afinal, a casa era minha. Eu era o senhor do castelo. Sem luz, com água fria, calor, mosquitos, mas era o meu castelo. Sua decisão de ficar entre nós sem qualquer consulta me deixou puto. Mas como era de meu (péssimo) feitio, não fiz qualquer objeção.

Bem, uma vez explicada a razão do meu azedume, voltemos para o meu brado, naquela noite tenebrosa. Tínhamos, diante da ameaça de chuva, voltado para casa antes das 10 da noite.
Chegando em casa, estendemos as duas redes na varanda, Artur, de violão em punho, puxava músicas bacanas de Milton e Gonzaginha, mas esquecêramos que nenhum de nós tinha voz. Mesmo o Artur tinha uma voz de pequeno alcance. E rapidamente começaram as galhofas tocadas por Artur, interpretadas por Enéas e Lair. Sei que aquelas asneiras foram me enchendo o saco. Quando esboçaram “Mariazinha do bole-bole”, me levantei da rede.

-- Chega! Vou dormir, que é o melhor que eu faço. E vê se não fazem muito esporro, tá? – fui para o quarto, seguido pelo Cláudio, também puto com a cantoria.
Fechamos a porta, mas a cantoria desafinada prosseguia, agora mais alta. Berrei lá de dentro:
-- Podem diminuir o volume?
Pelo sorteio, o sofá-cama cabia a mim e ao Artur. Cláudio dormia num dos colchões num canto do quarto.
Por alguns segundos, a cantoria cessou. Mas deu lugar a risos abafados, sinal que a sacanagem continuaria.

A chuva era intensa em volume, mas nada de vento. Os caras – Enéas, Artur e Lair – foram miar debaixo da janela escancarada, já que tinha uma laje de uns 30 centímetros em torno de toda a casa. Cantaram uma besteira qualquer e, rindo, voltaram correndo para as redes.

Ainda dei uma de macho, saindo do quarto e ameaçando:

-- Porra, num dá pra sossegar o facho, não? Guarda um pouco deste humor para amanhã... Eu tô avisando, já estou cansado, quero dormir...

--Ah, ele tá cansadinho...Vamos fazer silêncio, gente – desdenhou Enéas.

Novo silêncio entrecortado por risadinhas. Bem próximo da porta, acordes, gargalhadas e cantoria rápida. Não mexi um músculo. Voltaram a cantarolar perto da porta, esperando que eu saísse do quarto. Como não saí, Enéas e Artur adentraram o quarto – Lair ficou na rede – cantarolando “Boêmio”.


Eis que me ergo do sofá-cama, puto, e diante de zombeteiros Enéas e Artur, pego um par de tênis e isolo um por um pela janela da casa do Pontal, em Angra.

Ao meu ato, bradei, silhueta iluminada por raios que a tempestade vomitava, intensificando o toró (de “silhueta” até “toró” foi só para conferir dramaticidade à ação):
-- Eu avisei! Agora quero ver neguinho ir buscar o tênis lá fora com esta chuva!! (Ei, ei, eu já vi isso antes. Será que foi no cinema? Observação: isto é ironia, claro. Este é um recurso relativamente comum no cinema. Narrar um fato, recorrer a flashbacks até chegar à tal ação novamente e continuar daí a narrativa.)
Imediatamente Enéas vai até onde estavam as coisas dele, tateia no breu e encontra seu par de tênis. Entre risadas dispara:
-- Meu tênis táqui.
Artur procura os seus, os encontra e também anuncia, intensificando as risadas:
-- Os meus também estão a salvo.
Como os do Lair estavam nos pés dele, e o Claudio, meu aliado, comentou, sem conter o sorriso – uma vez que a situação era engraçada pacas - que os dele também estavam livres da chuva, só me restou dormir mais furibundo ainda. Com aquele tiro no pé, minha moral caíra e escorria como a chuva que encharcava os meus tênis.
Os caras resolveram acabar com a cantoria e vieram dormir. Trocaram um monte de gracejos diante da minha hilariante vacilada, mas o que realmente me incomodava, até cair no sono, eram as risadinhas abafadas do Enéas deitado no colchão dele.