Depois de passada a roleta, ficamos uma meia hora reconhecendo o lugar, enquanto esperávamos a chegada de nossos objetos de desejo. O hall de entrada, os imensos decks ao ar livre, com vista para o escuro e fétido mar que margeava a cidade de Angra (mas que assim, à distância, era uma imensidão aprazível, cujo único cheiro bafejado pelo vento era o de uma tênue maresia).
Onde ficavam os banheiros – tanto os masculinos quanto os femininos, estes, embora vedada nossa entrada, eram os mais importantes - os lugares mais barulhentos e mais sossegados, isto dentro do salão, porque se buscássemos algum resquício de paz, só lá embaixo, com os pés na areia. Enfim, esquadrilhamos o Aquibadã.
É lógico que fuçamos os dois bares do lugar e até tomamos umas cervejas. Eu fiquei numa latinha só. Ainda me revirava o estômago o porre que tomara no carnaval retrasado. A título de “aquecermos as turbinas” e cometermos haraquiri em nossa timidez, nos reunimos na casa do Pedro Moustache e tomamos todas antes do primeiro baile de carnaval no Clube dos Funcionários, em Volta. Apaguei e fui levado semiconsciente pra casa, antes do grito de abertura do carnaval. Desde este trágico evento, carnaval e porre nunca mais foram conjugados (executados) por mim numa mesma sentença.
Enfim, eram 11h e meia, mais ou menos, quando as gatas de Barra Mansa pintaram no Iate Clube. Eram 13 meninas – algumas realmente lindas. Nós as avistamos do segundo andar – a entrada e o salão onde rolava o baile ficavam no térreo. Estávamos apreciando e contando a bela legião, quando Aurélio, escandaloso que só, começa a berrar, ou melhor, a falar mais alto, frases desencontradas:
-- Caralho! A Suicídio taí!! É aquela de flor amarela presa nos cabelos. Já te falei dela, Eros. Viu, Gugu? É ela!!!!
Explica-se: a menina a quem Aurélio referia-se, pela alcunha de Suicídio – “por ela, o cara até se mata”, exagerava o capetinha de Volta Redonda – era a mais recente “descoberta” dele, que a achava lindíssima. Menos, Aurélio, menos. A menina, cujo nome não me lembro, era bonita, verdade. Esguia, elegante, bela pele e belos olhos amendoados. Mas não tinha qualquer traço de sensualidade.
Quando viu que Suicídio – depois entronizada como Suicídio 1, quando apareceu outra da mesma estirpe – era uma das meninas de Volta que foram convidadas para se juntar às barramansenses, Al ficou eufórico. Parecia uma ave-do-paraíso macho – até onde poderia ir a macheza travestida de diabinho de cetim vermelho.
Aurélio tinha (ainda deve ter) o raro hábito de lascar um apelido em alguém e consagrá-lo como definitivo, ainda que fosse o único a repeti-lo.
-- então venham você, Alexandre e o Verrugão (ao referir-se a um amigo que tem uma protuberância íntima, digamos, assustadora).
Ou: -- Fala para o Porno-man (este não me lembro da justificativa, nem a quem ele chama quando sai com esta) me ligar.
Mas Suicídio colou porque nós não a conhecíamos. Eu, Enéas e Gugu sequer sabíamos seu nome de batismo. É lógico que antes mesmo de a encontrarmos em Angra, Al tinha a ficha completa da menina: nome, idade, quem namorou, por quem suspirava, escolaridade, tipo sanguíneo, etc.
Mas fora Aurélio, ignorávamos seu nome, e ainda que soubéssemos, subreptilinarmente não queríamos dar este crédito a ela. Imagine eu falando:
- Olha que graça aquela baixinha, a terceira à esquerda da Maria Eduarda (nome hipotético da Suicídio).
Então para gáudio do inventor de apelidos, sempre nos referíamos à ela como Suicídio.
Enquanto isso, tentava me manter o mais confiante possível. Dei umas voltas no salão sozinho; depois fui falar com Andréa e Nazareth, isso na companhia de Enéas, Aurélio e Gugu. Pulei com Andréa, depois com a irmã dela; nunca investindo nelas. Era como se fossem vitrines móveis, que me permitiam vislumbrar possíveis flertes.
Vislumbrei algumas chances – tinha uma Mulher-Gato chapadaça e a mercê, primeiro de um grupo de centuriões romanos, depois de um trio de pierrôs. Dei um tchauzinho de longe para a Eliane, que pulava num canto do salão. Ela trajava meias-arrastão que me causaram uma ponta de arrependimento.
Enéas também deu voltas despretensiosas com as duas irmãs. Gugu manteve o profile discretíssimo e sequer se aventurou pelo salão; Aurélio marcava passo no mesmo lugar, sempre atento às movimentações de Suicídio, enquanto desenvolvia, displicentemente, o hábito de botar o rabo que saia dos fundilhos de sua fantasia de Belzebu entre as pernas.
Bem, a primeira noite passara em branco. As mais dadivosas e espevitadas de Barra Mansa já ficaram com sujeitos ignóbis – algumas com maurícios; outras com notórios sacripantas; uma sétima com um boiolinha metido a homem.
Meu Deus!!! E eu era tão gente boa ... Feio, mas gente boa. Bocó, mas gente boa. Duro, mas gente boa. E a Natália ficou com aquele troglodiata que sequer deveria saber falar, pois desde que eles se atracaram, tão logo ela chegou, não vi trocarem palavra, apesar da intensa movimentação labial. Mas não me abati. Mantive o moral em alta. Tínhamos mais três noites pela frente.
Segunda noite. Resultado parecido com a primeira, com uma baixa na minha auto-estima, que eu estava vendo minguar a passos largos: Eliane ficou com um bem comportado pirata, a julgar pela perfeita combinação do tênis – branco, com detalhes em vermelho e tiras pretas - com o resto da fantasia – bermuda preta, camisa acetinada branca e lenço vermelho amarrado na cabeça.
Terceira noite. Começou a me bater o choque de realidade: eu era tímido demais, cioso em excesso de minhas limitações – sequer tentei ficar com uma viking loura, bonita, que bêbada feito um gambá, bastava ouvir uma senha (acho que era “Aiôôô, Silver”) que saia trotando pelo salão agarrada ao moleque que pronunciasse as palavras mágicas. Quando o galope já ia avançado, a loura se rendia aos apelos do rapaz que por, em média, dois minutos -- tempo suficiente para dar duas voltas no salão -- podia sapecar quantos beijos e agarrões conseguisse.
A bêbada viking surgiu evoluindo ainda sóbria perto de nós, mas antes das duas da manhã já estava chamando “urubu de meu louro”. E fez-se fila de interessados em dar duas voltinhas pelo salão com ela. Nenhum de nós quatro demonstrou interesse na loura, com exceção o Enéas. Só que quando ele entrou na fila para dar uns catrancos na viking, contava-se mais de 18, mas cê sabe como é carnaval....De 18 para 180, basta um estalar de dedos. Eu sei que o Enéas não deu os pinotes com a loura, porque ela fora resgatada por um casal de primos ou por dois amigos, sei lá. Já não tinha mais o chapéu chifrudo e estava prestes a ficar sem a bata. A machadinha de plástico, para se defender de possíveis inimigos e predadores, sumira óóóóóó, fazia tempo.
Sei que minha auto-confiança estava indo para o brejo. Ficava junto do Aurélio e do Gugu, que limitavam-se a comentar, entre copos de cerveja, o quanto a odalisca, a feiticeira eram gostosas. Mas eram comentários para ninguém ouvir. Imagina se aquela desenibida fantasiada de modelo e atriz escuta a gente falando dela?!! Peraí, existe fantasia de modelo e atriz?
Parecíamos integrantes do bloco carioca “Concentra, mas não sai”: na beirada do salão com copos de cerveja na mão e a ginga típica de quem é natural de Volta Redonda. Vez por outra, dávamos juntos ou separados voltas no salão, para assegurarmo-nos que não tínhamos morrido (pelo menos era essa a minha sensação).
Aurélio, no começo da terceira noite no Aquidabã, chegou a ficar preocupado com a ausência de Suicídio. Mas logo Andréa, que era prima da dona da casa de praia onde as belas de Barra Mansa e de Volta estavam hospedadas, tratou de tranquilizá-lo:
-- A Isabel (poderia ser Suelen, ignoro solenemente o nome da moça)? Ela não veio porque está um pouquinho febril, resfriada. Amanhã vem até na matinê, de tarde.
Mas Aurélio só sossegou quando avistou o mauricinho com quem trocou bem-comportados beijos na véspera. Usava uma desconfortável, porque calorenta, pólo La Coste, bermuda cargo e tênis Adidas, vestimenta semelhante à que ele usara na noite anterior. Só que na ausência de Suicídio, ele jogava uma conversa numa ruiva gostosona sentados na mesa dela.
Descobri que tem gente que vai aos bailes só para pular mesmo. Que consegue se divertir com batalhas de confete e serpentina ou simplesmente com a música estridente e repetitiva tocada por uma bandinha safada. Gente diferente de mim (que ia aos bailes cheio de segundas, terceiras, quartas e quintas, principalmente quintas, intenções). Andréa e Nazareth eram assim. Cansei de ver caras - alguns limpinhos, outros mamados que só – tentarem pular com elas e serem refutados imediatamente. E sobrava alegria e sobriedade naquelas marujas que se fartavam de água ou, muito eventualmente, de um refrigerante – na época, não tinha diet.
A mim, cheio de más intenções, restava-me o consolo de mirar o mar, um pouco afastado daquela algazarra. Definitivamente, eu não tinha o mínimo de competência para concretizar meus ideais devassos. Mas a pá de cal naquele que seria o carnaval redentor viria num sutil e macio tapinha nas costas.
-- Cê tá bem? – perguntava-me Eliane, que se afastou do pirata arrumadinho alguns metros para me perguntar isso.
Caraí!!! E o pior é que sua preocupação era sincera; preferia mil vezes que soasse como vingança, que ela viesse tripudiar do meu fracasso. Mas não.
-- Você está se sentindo bem? Bebeu muito? – perguntava, com devotamento sincero.
-- Que nada, Eliane!! Só vim tomar um ar. Já tô voltando para lá. Afinal, a gente tem que aproveitar, já ta acabando.... – dei um pinote de alegria convicta e voltei para o tumulto do salão. No fundo, e no raso mesmo, queria que ela me abraçasse, me beijasse e esquecesse aquela frase imbecil e imprevidente “Quero terminar” e aquele gentil pirata. Mas me restava um tiquinho de dignidade e saí dali do deck deixando o casal à vontade para os derradeiros amassos daquela noite.
De volta aos bêbados, às devassas, aos foliões sinceros e aquele som horroroso tocado pela bandinha, me baixou o banzo quando ouvi pela décima-quarta vez os vocalistas (dois negões, uma mulata magra e uma senhora branca, gorducha e baixinha) entoarem “Oh, quanto riso/ Oh, quanta alegria/ Mais de mil palhaços no salão...”. Que saudades do meu quarto, do meu pijama, da minha cama.
Nem preciso dizer que me recusei terminantemente a ir na matinê de terça-feira. Preferi ficar jogando tarrafa no rio que desembocava na baía do Pontal, próximo ao condomínio de casa vizinho ao I.C.A.R. Enéas também preferiu ficar dormindo na casinha do Pontal. Mas estava só se poupando para a noite. Ele estava às voltas com uma tal de Adriana, nativa de Angra mesmo.
Aurélio e Gugu foram sozinhos à matinê de onde voltam umas seis e meia, três horas e meia depois de terem deixado o Pontal. Al vestiu uma roupa de “civil”. A fantasia ficara guardada para a última noite.
Eu não queria saber mais de carnaval. Eu era um crítico incorrigível e não conseguia me ver, lépido e faceiro, investindo em um amor de carnaval, que duraria, no máximo, algumas horas. Tinha senso de ridículo. Sabia que precisava conhecer bem a menina para chegar. Aparência e indiferença a tocos não eram meu forte.
- Devia ter te ouvido, Aurélio – reconhecia. – Não devia ter despachado a Eliane.
Caralho!! Admitir que o Al estava certo, era o cúmulo do erro. Ir ao Aquidabã para quê? Para mim, o carnaval acabou, mesmo antes de ser reconfortado pela Eliane.
Bem, tanto insistiram que fui demovido da idéia de dormir cedo e fomos, os quatro, para o Aquibadã. Chegamos lá, meia-noite e meia. Eu sentia os esforços de jogar rede no rio parte da tarde e só dei três voltas no salão. Com Andréa, com Nazareth e uma terceira sozinho, só para comprovar que o pirata da Eliane não era tão gentil assim. Empenhavasse em sufocá-la com um tremendo e vil chupão. Só não investi contra o sujeito, porque ela parecia estar gostando e muito.
De resto, fiquei “concentrado mas não saí”, ao lado de Aurélio e Gugu. Enéas sumiu. Na companhia de Adriana, é claro. Gugu só tinha olhos para uma angrense amiga da Andréa. Mas só olhos, porque coragem para falar com ela, ele não tinha.
Al seguia obcecado na Suicídio. Quando ela e mais três amigas, de narizes igualmente empinados, deram três voltas pelo salão, Aurélio ficou eufórico. Convenceu Gugu a segui-las. Como recém-descidas de um pedestal, lançavam olhares reprovadores àquela plebe ignata. O mauricinho que sapecara-lhe umas bitoquinhas no domingo e agora entretinha-se com a ruiva, bem mais fornida do que ela, também foi fulminado pelo olhar de desdém de Suicídio.
Na segunda volta, Gugu parou próximo a um grupo de meninas, entre as quais Andréa e a menina de Angra. E não é que ele puxou papo com a guria?! Através da
Andréa, mas puxou.
Enquanto isso, Al acompanhava, embevecido, o “desfile” altivo da sua princesa entre os plebeus. Quando completou a terceira volta, ela e as três asseclas subiram as escadas e se refugiaram, enojadas, numa das muitas mesas reservadas para as meninas de Barra Mansa.
Faltava meia hora para o fim do baile. Se eu não dependesse do Aurélio, já tinha ido dormir no Pontal há séculos. Já passava de cinco e meia da manhã, quando a bandinha entoou pela última vez, naquele carnaval, “Ai, ai, ai, aiaiai/Tá chegando a hora/ O dia já vem raiando, meu bem/ Eu tenho que ir embora”. No salão, restos da batalha carnavalesca travada há pouco: confete, serpentina, garrafas plásticas de refrigerante, a viking louraça, que voltou a encharcar-se de vodca, os primos que foram resgatá-la de uma tribo indígena canibal, nós quatro – Enéas reaparecera – e outros desconhecidos que esperavam os outros foliões saírem.
Havia um espírito nostálgico entre os casais e grupos que iam se deixando ficar. Até o Aurélio, que a ninguém abateu, respirava esta atmosfera idílica. Eu só queria esquecer mais aquele trágico carnaval, as cagadas que fizera antes de pisar no Aquidabã e... aiiii!!! Quem eu vejo sentada de mãos dadas e rostinho colado na entrada do salão? Eliane! Trocando beijos bem mais que protocolares com o pirata tricolor. Se arrependimento matasse...
Não posso dizer que estava sozinho na merda. Enquanto esperávamos o salão esvaziar, Aurélio seguia encarando de longe Suicídio. Botar o rabo entre as pernas havia virado um hábito arraigado. Eis que Suicídio põe-se a olhar em nossa direção. Aurélio sustenta o olhar e diz, eufórico, baixinho:
-- Olha!! Olha!! A menina tá me encarando!
Com a ar blasé de sempre, Suicídio pergunta a uma menina que desce as escadas ao seu lado sustentando o olhar e abrindo espaço para uma pergunta, no mínimo, vulgar e capciosa:
-- Olha aquele bigodudo fantasiado de capeta. Será que é viado?
segunda-feira, 28 de dezembro de 2009
sábado, 19 de dezembro de 2009
Carnaval em angra - 3
Passamos mais três dias em casa, e vrrumm...Já estávamos no caminho de Angra novamente. Três dias antes do primeiro baile de carnaval no Aquidabã. Tempo mais que suficiente para tomar decisões apropriadas para o maior (o primeiro do novo Eros, garanhão, pegador) carnaval de minha vida.
Na noite do mesmo dia que chegamos ao Pontal, fomos para Angra.
Antes de encontrarmos com as meninas, já na Rua do Commercio, a principal da cidade, anunciei, resoluto, aos meus companheiros, ainda no Fiat
do Al.
-- Hoje vou terminar meu namoro com a Eliane. Carnaval tá chegando, vai ter um monte de gostosas de Barra Mansa, e eu não quero saber de compromisso - afirmei, com ares do mais novo boçal do pedaço.
Aurélio ainda me advertira, solícito:
-- Não faz merda, Eritos. Vai que num arruma ninguém nos bailes. Vai fazer o quê? Ficar com cara de bunda, chupando o dedo? Melhor você ficar com a Eliane...
-- Acha que sou louco? Eliane vai pular no Aquidabã também... Quero é distância... Com Bárbara, Renatinha, Natália (é claro que são nomes fictícios, não me lembraria de ninguém, a não ser de uma, a preferida do Aurélio) no baile, cê acha que eu entraria de mãos dadas com a Eliane? – justificava, canalhamente, minha opção por terminar o namorico de verão.
E eu falava das meninas de Barra Mansa como se as conhecesse. Sabia seus nomes – eram famosas para parúaras como nós - mas nunca trocara palavra com elas. Mas neste carnaval queria ver alguma resistir ao meu charme e à minha virilidade. Naquele momento, eu realmente acreditava que era charmoso e viril.
Encontramos as meninas. E eu queria me livrar de qualquer compromisso com a bonitinha de olhos azuis.
-- Oi, Eliane. Tenho que te dizer uma coisa – comecei, depois de um beijo não mais do que protocolar, num banco da praça que fica em frente ao cais. – Quero terminar.
Era evidente a surpresa da menina. Titubiou:
-- Mas, mas o que que houve? Tava tudo bem com a gente até você ir para Volta Redonda...
-- É... Mas o carnaval taí. E num gosto de manter namoro durante o carnaval – esnobei eu, como que gabaritado por muita experiência, antes de proferir o chavão impronunciável – Acho melhor ir cada um pro seu lado.
Era visível a decepção de Eliane, mas ela foi elegante e prática.
-- Certo, você é quem sabe. Tudo bem, então. Amigos? – propôs ela, me dando um abraço fraternal.
Pronto. Dissipei um problema, sem criar outro: a inimizade de Eliane.
Na quinta-feira, antevéspera de sábado de carnaval, um encontro aumentou significativamente nossas chances com as beldades de Barra Mansa. Trocamos a manhã no Pontal por boas horas em Angra. E fomos a uma das únicas praias razoáveis de Angra. A Praia das Gordas, vizinha ao Iate Clube do Rio de Janeiro (não me perguntam a razão dos nomes; ignoro totalmente).
Lá, graças ao estilo “entrão” do Aurélio, ficamos conhecendo Andréa, sua irmã, Nazareth (não, não são nomes fictícios) e mais três meninas de Barra Mansa. Longe de “abalarem Bangu”, elas eram ótimos canais até as iguarias barramansenses (ou “barramansuínas”, se o assunto fosse alguma querela envolvendo habitantes da cidade vizinha a Volta Redonda). Ainda mais que estavam hospedadas na mesma casa (uma mansão) que “nossas” meninas. Elas nos contaram que durante o carnaval deveriam ter umas 15 meninas, algumas de Volta Redonda.
Andréa e Nazareth eram gurias legais e bonitas – mas naquele verão, só tínhamos olhos para as outras, as sebosas e metidas que sequer sabiam da nossa existência – quanto mais de nossas pretensões.
Chegou o grande dia e eis que pontualmente às 11 da noite adentramos o Aquibadã, cheios de ímpeto juvenil.
Antes, porém, sacaneamos muito, eu e o Enéas, principalmente, o Aurélio e sua fantasia de diabo.
Aurélio vestido, fizemos alusões à masculinidade do traje. Mas a fantasia do Gugu?
-- Ih, Aurélio, me esqueci de trazer – disse Gugu, entre sorrisos que denunciavam que a frase soava como “me lembrei de esquecer”.
Foi aí que o Enéas instigou o demônio, de cetim rubro, enquanto o Melão (me lembrei neste minuto que também chamávamos o cabeçudo do Gugu por este apelido), já vestia seu traje de “civil”.
-- Que sacanagem, Gugu!! A d. Geralda passa noite em claro fazendo a tua fantasia e você sequer a traz para cá – disse Enéas, esperando uma reação do Al.
O esporro do Aurélio veio quase imediatamente – só não veio contíguo a incitação do Enéas porque o Aurélio, naquele momento, fazia uma barbichinha com lápis preto que ele pegara com sua irmã, Celeste.
-- Pó, cê num esqueceu. Não trouxe porque não quis. Putaria com a Geraldinha... Ela deu um duro danado... –disse Al, botando, pela primeira vez, o rabo do capeta entre as pernas, como um pinto.
Este gesto, ele repetiria, displicentemente durante todas as quatro noites de carnaval.
Sei que entre cobranças de Aurélio, desculpas esfarrapadas de Gugu e muitas risadas minhas e do Enéas, partimos para o clube.
Na noite do mesmo dia que chegamos ao Pontal, fomos para Angra.
Antes de encontrarmos com as meninas, já na Rua do Commercio, a principal da cidade, anunciei, resoluto, aos meus companheiros, ainda no Fiat
do Al.
-- Hoje vou terminar meu namoro com a Eliane. Carnaval tá chegando, vai ter um monte de gostosas de Barra Mansa, e eu não quero saber de compromisso - afirmei, com ares do mais novo boçal do pedaço.
Aurélio ainda me advertira, solícito:
-- Não faz merda, Eritos. Vai que num arruma ninguém nos bailes. Vai fazer o quê? Ficar com cara de bunda, chupando o dedo? Melhor você ficar com a Eliane...
-- Acha que sou louco? Eliane vai pular no Aquidabã também... Quero é distância... Com Bárbara, Renatinha, Natália (é claro que são nomes fictícios, não me lembraria de ninguém, a não ser de uma, a preferida do Aurélio) no baile, cê acha que eu entraria de mãos dadas com a Eliane? – justificava, canalhamente, minha opção por terminar o namorico de verão.
E eu falava das meninas de Barra Mansa como se as conhecesse. Sabia seus nomes – eram famosas para parúaras como nós - mas nunca trocara palavra com elas. Mas neste carnaval queria ver alguma resistir ao meu charme e à minha virilidade. Naquele momento, eu realmente acreditava que era charmoso e viril.
Encontramos as meninas. E eu queria me livrar de qualquer compromisso com a bonitinha de olhos azuis.
-- Oi, Eliane. Tenho que te dizer uma coisa – comecei, depois de um beijo não mais do que protocolar, num banco da praça que fica em frente ao cais. – Quero terminar.
Era evidente a surpresa da menina. Titubiou:
-- Mas, mas o que que houve? Tava tudo bem com a gente até você ir para Volta Redonda...
-- É... Mas o carnaval taí. E num gosto de manter namoro durante o carnaval – esnobei eu, como que gabaritado por muita experiência, antes de proferir o chavão impronunciável – Acho melhor ir cada um pro seu lado.
Era visível a decepção de Eliane, mas ela foi elegante e prática.
-- Certo, você é quem sabe. Tudo bem, então. Amigos? – propôs ela, me dando um abraço fraternal.
Pronto. Dissipei um problema, sem criar outro: a inimizade de Eliane.
Na quinta-feira, antevéspera de sábado de carnaval, um encontro aumentou significativamente nossas chances com as beldades de Barra Mansa. Trocamos a manhã no Pontal por boas horas em Angra. E fomos a uma das únicas praias razoáveis de Angra. A Praia das Gordas, vizinha ao Iate Clube do Rio de Janeiro (não me perguntam a razão dos nomes; ignoro totalmente).
Lá, graças ao estilo “entrão” do Aurélio, ficamos conhecendo Andréa, sua irmã, Nazareth (não, não são nomes fictícios) e mais três meninas de Barra Mansa. Longe de “abalarem Bangu”, elas eram ótimos canais até as iguarias barramansenses (ou “barramansuínas”, se o assunto fosse alguma querela envolvendo habitantes da cidade vizinha a Volta Redonda). Ainda mais que estavam hospedadas na mesma casa (uma mansão) que “nossas” meninas. Elas nos contaram que durante o carnaval deveriam ter umas 15 meninas, algumas de Volta Redonda.
Andréa e Nazareth eram gurias legais e bonitas – mas naquele verão, só tínhamos olhos para as outras, as sebosas e metidas que sequer sabiam da nossa existência – quanto mais de nossas pretensões.
Chegou o grande dia e eis que pontualmente às 11 da noite adentramos o Aquibadã, cheios de ímpeto juvenil.
Antes, porém, sacaneamos muito, eu e o Enéas, principalmente, o Aurélio e sua fantasia de diabo.
Aurélio vestido, fizemos alusões à masculinidade do traje. Mas a fantasia do Gugu?
-- Ih, Aurélio, me esqueci de trazer – disse Gugu, entre sorrisos que denunciavam que a frase soava como “me lembrei de esquecer”.
Foi aí que o Enéas instigou o demônio, de cetim rubro, enquanto o Melão (me lembrei neste minuto que também chamávamos o cabeçudo do Gugu por este apelido), já vestia seu traje de “civil”.
-- Que sacanagem, Gugu!! A d. Geralda passa noite em claro fazendo a tua fantasia e você sequer a traz para cá – disse Enéas, esperando uma reação do Al.
O esporro do Aurélio veio quase imediatamente – só não veio contíguo a incitação do Enéas porque o Aurélio, naquele momento, fazia uma barbichinha com lápis preto que ele pegara com sua irmã, Celeste.
-- Pó, cê num esqueceu. Não trouxe porque não quis. Putaria com a Geraldinha... Ela deu um duro danado... –disse Al, botando, pela primeira vez, o rabo do capeta entre as pernas, como um pinto.
Este gesto, ele repetiria, displicentemente durante todas as quatro noites de carnaval.
Sei que entre cobranças de Aurélio, desculpas esfarrapadas de Gugu e muitas risadas minhas e do Enéas, partimos para o clube.
Carnaval em Angra - 2
Eu, Enéas, Aurélio e Gugu compráramos ingressos para todas as noites de carnaval no Aquibadã, na praia do Anil (Isso! Me lembrei do nome da praia mais popular e poluída de Angra!). De quebra, ganhamos entradas para as duas matinês.
Minha performance em carnavais era indigna de nota. Com a manemolência de um norueguês e a desinibição de um coroinha de igrejinha do interior, era um zero à esquerda com meninas (fossem lindas ou canhões, minha incompetência era bem democrática) nos salões carnavalescos - e também fora deles. Eu era tímido demais. Achava uma falsidade quatro dias de devassidão para um sujeito bocó os outros 361. Só porque era carnaval? E cerveja e toda a sorte de bebidas alcoólicas estavam liberadas? Isso para ficar no teor etílico e lícito da “embriaguez”...
Cada vez que a bandinha entoava “Bandeira branca, amor/ Não posso mais/ Pela saudade/ Que me invade/ Eu peço paz” – mote para o cara lascar um beijão na boca da menina que pulou a música anterior com ele, independentemente de se conhecerem há 20 segundos – eu só queria estar de pijamas, dormindo no meu quarto.
Mas “este carnaval não vai ser igual àqueleS que passarAM” apropriava-me eu, confiante como nunca, da letra de outra marchinha conhecida.
Incrível o que uma namorada, ainda que de verão, não faz na alma espinhenta de um adolescente...
Eu e Eliane nunca passávamos de uns amassos junto ao muro de uma das muitas igrejas de Angra, ou de beijinhos mais comportados numa lanchonete onde sempre pedíamos sorvete – tinha um de maracujá que era um sonho.
Mas aquele namorico me encheu de moral. Comecei até – sortilégio dos sortilégios, equívoco dos equívocos – a me achar bonito. Bom papo. Irresistível mesmo.
Faltavam sete dias para o carnaval e depois de duas semanas direto no Pontal, voltamos ao Voltaço, no Fiat 147 do Al. Mais para pegar grana para passar o carnaval do que por qualquer outro motivo. Não, minto. Aurélio e Gugu foram
buscar fantasias que d. Geralda, mãe de Al, fizera exclusivamente para a ocasião.Tinha perdido noite de sono para confeccionar tudo a tempo.
-- Anda, Gugu. Vem aqui pra casa. As fantasias estão prontas. Vamos experimentar que a Geraldinha ainda pode dar um jeito, caso não estejam boas – Aurélio convocara Gugu por telefone, no dia seguinte à nossa chegada em Volta.
Em dois tempos, Carlos Alberto Barenco Pinto, o Gugu, estava na sala do apartamento do Aurélio. Eram vizinhos no Aterrado, bairro onde morava boa parte dos nossos companheiros de Macedo Soares.
Sem muito alarde, d. Geralda tirou, cuidadosamente, as fantasias de uma sacola plástica.
-- A sua, Aurélio...E a sua, Gugu... – anunciava, orgulhosa, Geraldinha, assim chamada pelo filho pela pouca estatura. -- Não tinha outro pano. Este era o mais fresco que achei.
Quando Aurélio viu a sua e põe-se de cuecas – afinal, em casa só estavam sua mãe e um amigo – exclamou, enquanto vestia a fantasia:
-- Pô, Geraldinha, muito maneiro!!! Cê caprichou!!
D. Geralda caprichara mesmo. Ficou muito legal. Não sei se para um homenzarrão como o Aurélio.
Tratava-se de um macaquinho – um macacão sem calças compridas – num tecido que lembrava cetim, todo vermelho, cujo peito era aberto para melhor ventilação. Do short, a roupa subia pelas costas e terminava num capuz, de onde saíam dois chifres escuros. Ah, nos fundilhos também foi costurado um tecido preto, que graças a um enchimento, tinha consistência mais dura, como os chifres. Era uma versão menos calorenta do capeta.
Al era um júbilo só, feliz da vida com sua fantasia de Coisa-ruim rubro-negro (Pleonasmo? Todo rubro-negro é Coisa-ruim?), abraçava d. Geralda, beijava-a e a tirava do chão aos berros de “Geraldinha é campeã”.
D. Geralda tentava manter a sobriedade diante da felicidade do filho que tanto amava e mimava.
-- Me põe no chão, Luís Aurélio. Pára com isso – dizia, no fundo, radiante com os rodopios nos braços de Al.
Gugu mal disfarçou a decepção. O Aurélio vestido de capeta, peito e pança à mostra, com aquele capuz com chifrinhos e aquele rabo preto no meio da bunda era a própria visão do inferno!!
-- Maravilha, d. Geralda. Puxa, brigadão mesmo. Ficou muito bacana -- disse Gugu, já se encaminhando para a porta de casa
do apartamento de Aurélio.
¬¬-- Ei, ei, Espera aí, cara. Cê num vai experimentar não? Este seu cabeção pode num caber no capuz e aí? Aproveita que a Geraldinha pode arrumar isso... – disse Aurélio, já ressabiado com o pouco entusiasmo demonstrado pelo companheiro.
Imediatamente, Gugu sacou sua fantasia do saco plástico e vestiu só o capuz enchifrado, e mostrou que sua cabeçora cabia no capuz de sua fantasia.
-- Viu, Aurélio? Perfeito, perfeito – afirmou Gugu, retirando o capuz da cabeça e socando a fantasia de volta à sacola. -- O resto nem precisa experimentar... A senhora num fez com as minhas medidas? Então, num tem erro.
Até mais, Aurélio. Brigado, d. Geralda.
A mãe do Aurélio mal teve a chance de balbuciar um “mas” e contestar a saída intempestuosa de Gugu.
Minha performance em carnavais era indigna de nota. Com a manemolência de um norueguês e a desinibição de um coroinha de igrejinha do interior, era um zero à esquerda com meninas (fossem lindas ou canhões, minha incompetência era bem democrática) nos salões carnavalescos - e também fora deles. Eu era tímido demais. Achava uma falsidade quatro dias de devassidão para um sujeito bocó os outros 361. Só porque era carnaval? E cerveja e toda a sorte de bebidas alcoólicas estavam liberadas? Isso para ficar no teor etílico e lícito da “embriaguez”...
Cada vez que a bandinha entoava “Bandeira branca, amor/ Não posso mais/ Pela saudade/ Que me invade/ Eu peço paz” – mote para o cara lascar um beijão na boca da menina que pulou a música anterior com ele, independentemente de se conhecerem há 20 segundos – eu só queria estar de pijamas, dormindo no meu quarto.
Mas “este carnaval não vai ser igual àqueleS que passarAM” apropriava-me eu, confiante como nunca, da letra de outra marchinha conhecida.
Incrível o que uma namorada, ainda que de verão, não faz na alma espinhenta de um adolescente...
Eu e Eliane nunca passávamos de uns amassos junto ao muro de uma das muitas igrejas de Angra, ou de beijinhos mais comportados numa lanchonete onde sempre pedíamos sorvete – tinha um de maracujá que era um sonho.
Mas aquele namorico me encheu de moral. Comecei até – sortilégio dos sortilégios, equívoco dos equívocos – a me achar bonito. Bom papo. Irresistível mesmo.
Faltavam sete dias para o carnaval e depois de duas semanas direto no Pontal, voltamos ao Voltaço, no Fiat 147 do Al. Mais para pegar grana para passar o carnaval do que por qualquer outro motivo. Não, minto. Aurélio e Gugu foram
buscar fantasias que d. Geralda, mãe de Al, fizera exclusivamente para a ocasião.Tinha perdido noite de sono para confeccionar tudo a tempo.
-- Anda, Gugu. Vem aqui pra casa. As fantasias estão prontas. Vamos experimentar que a Geraldinha ainda pode dar um jeito, caso não estejam boas – Aurélio convocara Gugu por telefone, no dia seguinte à nossa chegada em Volta.
Em dois tempos, Carlos Alberto Barenco Pinto, o Gugu, estava na sala do apartamento do Aurélio. Eram vizinhos no Aterrado, bairro onde morava boa parte dos nossos companheiros de Macedo Soares.
Sem muito alarde, d. Geralda tirou, cuidadosamente, as fantasias de uma sacola plástica.
-- A sua, Aurélio...E a sua, Gugu... – anunciava, orgulhosa, Geraldinha, assim chamada pelo filho pela pouca estatura. -- Não tinha outro pano. Este era o mais fresco que achei.
Quando Aurélio viu a sua e põe-se de cuecas – afinal, em casa só estavam sua mãe e um amigo – exclamou, enquanto vestia a fantasia:
-- Pô, Geraldinha, muito maneiro!!! Cê caprichou!!
D. Geralda caprichara mesmo. Ficou muito legal. Não sei se para um homenzarrão como o Aurélio.
Tratava-se de um macaquinho – um macacão sem calças compridas – num tecido que lembrava cetim, todo vermelho, cujo peito era aberto para melhor ventilação. Do short, a roupa subia pelas costas e terminava num capuz, de onde saíam dois chifres escuros. Ah, nos fundilhos também foi costurado um tecido preto, que graças a um enchimento, tinha consistência mais dura, como os chifres. Era uma versão menos calorenta do capeta.
Al era um júbilo só, feliz da vida com sua fantasia de Coisa-ruim rubro-negro (Pleonasmo? Todo rubro-negro é Coisa-ruim?), abraçava d. Geralda, beijava-a e a tirava do chão aos berros de “Geraldinha é campeã”.
D. Geralda tentava manter a sobriedade diante da felicidade do filho que tanto amava e mimava.
-- Me põe no chão, Luís Aurélio. Pára com isso – dizia, no fundo, radiante com os rodopios nos braços de Al.
Gugu mal disfarçou a decepção. O Aurélio vestido de capeta, peito e pança à mostra, com aquele capuz com chifrinhos e aquele rabo preto no meio da bunda era a própria visão do inferno!!
-- Maravilha, d. Geralda. Puxa, brigadão mesmo. Ficou muito bacana -- disse Gugu, já se encaminhando para a porta de casa
do apartamento de Aurélio.
¬¬-- Ei, ei, Espera aí, cara. Cê num vai experimentar não? Este seu cabeção pode num caber no capuz e aí? Aproveita que a Geraldinha pode arrumar isso... – disse Aurélio, já ressabiado com o pouco entusiasmo demonstrado pelo companheiro.
Imediatamente, Gugu sacou sua fantasia do saco plástico e vestiu só o capuz enchifrado, e mostrou que sua cabeçora cabia no capuz de sua fantasia.
-- Viu, Aurélio? Perfeito, perfeito – afirmou Gugu, retirando o capuz da cabeça e socando a fantasia de volta à sacola. -- O resto nem precisa experimentar... A senhora num fez com as minhas medidas? Então, num tem erro.
Até mais, Aurélio. Brigado, d. Geralda.
A mãe do Aurélio mal teve a chance de balbuciar um “mas” e contestar a saída intempestuosa de Gugu.
Carnaval em Angra 1.1
Em fevereiro de 1979, passei o carnaval em Angra. Aquele era o último ano antes de ir para a universidade. Foi também o último verão passado na meia-água que tínhamos no Pontal, a 14 quilômetros de Angra – mas isso só saberia muito mais tarde.
Pela primeira vez e passados muitos anos – uns quatro, desde que me tornara adolescente, uma eternidade na época – arranjei uma namorada na cidade. O nome da moça era Eliane – e não era nenhum bagre não.
Dezesseis anos, bonitinha, tinha olhos azuis, talvez um tico rechonchudinha. Tinha uma irmã que era mais nova, uns 14, cujo nome não me lembro.
Sei que nós ficamos amigos dessas e acho que de mais duas meninas. E isso em Angra dos Reis, na cidade mesmo, para onde íamos todas as noites daquela temporada.
Tínhamos decidido passar o carnaval lá, já que em Volta nós não pegávamos ninguém. Ainda mais que soubemos que uma legião de ninfetas de Barra Mansa iria pular no Iate Clube Aquidabã, cuja praia, como todas da cidade, era horrível.
Meus companheiros de aventura eram o famigerado Enéas, que protagonizou outras histórias já descritas, o Aurélio e o Gugu.
O Enéas tinha cabelo liso num corte curto. Olheiras, um nariz um pouco acima da média. Um rosto comum. Tinha 1,75m mais ou menos. Sempre esteve mais para gordo do que para magro. Quando criança, “mamava” uma lata inteira de leite condensado, e gordinho, era delicadamente chamado pelos colegas da rua 40, onde morou, de “Banha”.
Aurélio era (ainda é, graças a Deus!) um figuraço!! Narigudo, um bigode quase ruivo, cabelos muito finos, uma calva (na época) que logo se transformou em fulgurante careca. Tem mais de 1,80m e, na época, uma pancinha de chope. Ganhara o apelido de Pastoso, pelas consistência de sua voz e morosidade de concluir um raciocínio.Certa vez me contou em duas horas e meia um filme que tinha duas. Depois daquele massacre narrativo, virou-se para mim e disse:
Que bosta de filme, hein, Eritos?
Não era um sujeito dos mais responsáveis – eventualmente fazia merdas inomináveis - mas em sua rudeza prezava como poucos a amizade sincera.
Gugu era a sombra do Aurélio. Unha e carne, tinha lugar cativo no banco de carona do Fiat 147, azul bebê, placa de Volta Redonda (só me lembro dos números: 3333) do amigo. Cabelos curtos, enroladinhos e castanhos-escuro pontuavam sua cabeça -– maior que a média. Tem (isso é imutável; bótox só aumentaria a circunferência) um rosto redondo, é troncudo e pouco mais baixo que Al (sei que o certo seria grafar o apelido com u, mas Au? Ninguém merece...).
Pela primeira vez e passados muitos anos – uns quatro, desde que me tornara adolescente, uma eternidade na época – arranjei uma namorada na cidade. O nome da moça era Eliane – e não era nenhum bagre não.
Dezesseis anos, bonitinha, tinha olhos azuis, talvez um tico rechonchudinha. Tinha uma irmã que era mais nova, uns 14, cujo nome não me lembro.
Sei que nós ficamos amigos dessas e acho que de mais duas meninas. E isso em Angra dos Reis, na cidade mesmo, para onde íamos todas as noites daquela temporada.
Tínhamos decidido passar o carnaval lá, já que em Volta nós não pegávamos ninguém. Ainda mais que soubemos que uma legião de ninfetas de Barra Mansa iria pular no Iate Clube Aquidabã, cuja praia, como todas da cidade, era horrível.
Meus companheiros de aventura eram o famigerado Enéas, que protagonizou outras histórias já descritas, o Aurélio e o Gugu.
O Enéas tinha cabelo liso num corte curto. Olheiras, um nariz um pouco acima da média. Um rosto comum. Tinha 1,75m mais ou menos. Sempre esteve mais para gordo do que para magro. Quando criança, “mamava” uma lata inteira de leite condensado, e gordinho, era delicadamente chamado pelos colegas da rua 40, onde morou, de “Banha”.
Aurélio era (ainda é, graças a Deus!) um figuraço!! Narigudo, um bigode quase ruivo, cabelos muito finos, uma calva (na época) que logo se transformou em fulgurante careca. Tem mais de 1,80m e, na época, uma pancinha de chope. Ganhara o apelido de Pastoso, pelas consistência de sua voz e morosidade de concluir um raciocínio.Certa vez me contou em duas horas e meia um filme que tinha duas. Depois daquele massacre narrativo, virou-se para mim e disse:
Que bosta de filme, hein, Eritos?
Não era um sujeito dos mais responsáveis – eventualmente fazia merdas inomináveis - mas em sua rudeza prezava como poucos a amizade sincera.
Gugu era a sombra do Aurélio. Unha e carne, tinha lugar cativo no banco de carona do Fiat 147, azul bebê, placa de Volta Redonda (só me lembro dos números: 3333) do amigo. Cabelos curtos, enroladinhos e castanhos-escuro pontuavam sua cabeça -– maior que a média. Tem (isso é imutável; bótox só aumentaria a circunferência) um rosto redondo, é troncudo e pouco mais baixo que Al (sei que o certo seria grafar o apelido com u, mas Au? Ninguém merece...).
justificativa
Como os textos são grandes demais – além de prolixo, me deixo guiar pelos desvãos da memória, como um gato guia-se pelo cheiro de peixe – resolvi dividir a crônica em capítulos.
De nada adianta, pois estão linkados irreversivelmente. Você precisa ler em ordem para encontrar algum sentido. Mas tem o efeito psicológico: “Oba, quatro textos SÓ gigantescos”.
Meus parcos leitores (só não os cito nominalmente porque posso ter perdido o poder de cativá-los e aí seria um erro grotesco arrolá-los como testemunhas), por favor, opinem.
Saibam que o que me importa é qualidade, não quantidade.
Observação: quando escrevi isso ainda não tinha concluído o quarto e último capítulo da saga “Carnaval em Angra”. Ou seja, tô mais vagaroso que cagado, isto é, cágado.
De nada adianta, pois estão linkados irreversivelmente. Você precisa ler em ordem para encontrar algum sentido. Mas tem o efeito psicológico: “Oba, quatro textos SÓ gigantescos”.
Meus parcos leitores (só não os cito nominalmente porque posso ter perdido o poder de cativá-los e aí seria um erro grotesco arrolá-los como testemunhas), por favor, opinem.
Saibam que o que me importa é qualidade, não quantidade.
Observação: quando escrevi isso ainda não tinha concluído o quarto e último capítulo da saga “Carnaval em Angra”. Ou seja, tô mais vagaroso que cagado, isto é, cágado.
domingo, 29 de novembro de 2009
blitz da PM
O André sempre foi (acho que ainda é) o melhor amigo do Enéas. Mas houve uma época, acho que pela proximidade de nossas casas – o André mudara-se da rua 40, na Vila, para um bairro mais afastado, o Jardim Amália -- em que fui lugar-tenente do Enéas. Lugar-tenente é ótimo, excelente eufemismo para coadjuvante. Raramente fui protagonista. Mas esta falta de luz própria jamais me incomodou. Presenciei cenas impagáveis por conta disso.
Uma delas aconteceu numa das muitas noites em que rodamos pela cidade a bordo da Brasília bege do Capitão Enéas. O Juninho, como era tratado pela mãe, d. Aída, estacionou o carro em frente à minha casa, na rua 27, e conversávamos com as portas (as da frente) escancaradas. Passava pouco de uma da manhã, quando cruzou por nós uma patrulha da Polícia Militar, numa veraneio azul claro e branca.
Rondas feitas pela PM nas áreas nobres da cidade -- sim, o Voltaço tem áreas nobres -- eram comuns. Naquela época, meados de 1970, Volta Redonda era considerada área de Segurança Nacional por sediar a C.S.N. A Companhia Siderúrgica Nacional fabrica aço e ferro, considerados material estratégico na visão belicista-boitatá dos militares que chefiavam o país.
Voltando à vaca fria, a veraneio com cinco mal-encarados policiais a bordo, parou na frente da Brasília, depois de passar por nós à velocidade de cágado. Descem quatro PMs da viatura. Só fica o motorista. Dois deles vão até o Enéas; os outros dois vêm até minha porta, escopetas em punho. O cara que chefiava a patrulha, sargento Antunes, disse, curvando-se e apoiando os antebraços na porta do Enéas:
-- Boa noite, cavalheiros. Identidade dos dois, documentos do carro e sua carteira de motorista -- exigiu o sujeito, magro, não muito alto e barba feita.
-- Boa noite -- respondeu Enéas, pronunciando as duas únicas palavras ditas amistosamente aos policiais. -- Cê sabe com quem está falando?
Sargento Antunes tomara um susto com a petulância do moleque -- se bem que filhinhos-de-papai eram figurinhas fáceis numa sociedade de castas, como era Volta Redonda - mas recompôs-se num átimo:
_ Você pode ser o presidente da República, estou me lixando. Seus documentos, os documentos do carro e sua carteira de motorista.
- -- Sou filho do Capitão Enéas -- arrotava Enéas, com uma empáfia desmedida. – Moro na rua 26, quase esquina com a 31. Os documentos estão lá em casa. Sai só para trazer meu amigo.
Morava a uns 350 metros do Enéas, embora de minha casa não avistássemos a dele.
Sugeri que chamássemos o Celinho, meu pai, que dormia ali em casa .
-- Não, não, não, Eros. Deixa o Celinho dormir. Aliás, vai dormir você também. São quase duas da manhã. Vou até lá em casa preu provar pra estes brucutus (o adjetivo é meu, não me lembro do que Enéas chamou os PMs, mas era algo que tinha a ver com a truculência e a ignorância deles... meganhas, talvez fosse este o termo que Enéas usara) que sou filho do Capitão -- disse Enéas, fechando os vidros do carro antes de trancá-lo.
Não preciso dizer que vetei imediatamente a idéia de abandonar o barco.
Então Juninho, virou-se para o sargento, e disse, entre impaciente e autoritário:
--Vamos lá. Cês seguem a gente...
-- Seria mais rápido se vocês entrassem no carro e fossem com a gente. O cabo França e um outro praça iriam com a Brasília -- sugeriu, cavalheirescamente, o sargento.
-- Nem fodendo eu entro no carro de vocês. E nunca, nunca deixaria algum de vocês botar as patas no volante do carro de meu pai – devolveu, cavalgaduramente, Enéas.
Assim, lado a lado, fomos andando rumo à casa do Enéas com a Patamo nos seguindo.
Perguntei, quase segredando ao Enéas:
-- E agora? Você num tem carteira de motorista...Que merda!
-- E porque cê acha que eu tô levando estes imbecis lá pra casa? Quando o capita aparecer, eles vão se cagar todos, pedir desculpas e ir embora, de fininho. Quer apostar? – respondeu Juninho, resoluto.
Em três minutos, estávamos na casa do Enéas. As casas não ostentavam as grades que são obrigatórias na Vila atualmente, e a luz da varanda ainda estava acesa, o que significava que ainda faltava chegar alguém.
Pois este “alguém” acabara de entrar em casa. Antes, Enéas pediu, ou melhor, comunicou aos PMs que esperassem, no carro ou na varanda. Ele ia buscar o pai.
Assim que nós entramos na sala, os PMs iniciaram uma breve conferência na patamo.
-- E aí, vocês conhecem esse “Capitão Enéas”? – perguntou o sargento Antunes.
-- Um primo meu foi ordenança na casa do capitão. Ele só falava bem do cara e da família – afirmou o soldado Flores.
Ordenança era um empregado sem salário. Um soldado raso que era cedido pelo Exército para trabalhar na casa de um oficial. Na maioria dos casos, fazia a faxina pesada, como limpar latrinas.
-- Eu conheço, ou melhor, sei quem é. Ele, na verdade, entrou para a reserva como major. Agora manda num departamento da C.S.N.. É gente boa demais...— garantia o cabo França.
Outro praça também sabia da (boa) fama do capitão.
Só Antunes e um soldado nada sabiam a respeito do Capitão Enéas.
– Caralho, é melhor eu pôr meu galho dentro...
Ainda na sala, d. Aída, que ouve o barulho do filho chegando, sai do quarto do casal, envolta num roupão que combinava com a cor, bege, do creme que passara no rosto.
-- Juninho!! -- grita abafadamente ela. – Por onde você andava?
Cacei você por tudo quanto é lugar. Liguei para o Eros, o André... e nada!
Enéas esquivou-se dela, com um ”tá bom, depois a gente conversa” e já ia entrando no quarto, atrás do capitão, quando d. Aída, indignada com a indiferença do Juninho, alterou a voz:
-- Moleque!! Olha aqui, me respeita – olhos injetados, expressão irritada.
Enéas olhou-a e respondeu, se desvencilhando das mãos da mãe:
-- Num é nada disso, Aída. É que agora papai precisa conversar com uns guardinhas aí.
Estressada que só, d. Aída já imaginava o pior.
-- Deus do Céu!!Bateu com o carro!!! Machucou alguém?? Eros??
E eu me fazendo de jarro de planta.
-- Não, num aconteceu nada, tia Aída – disse eu, que diferentemente de meus amigos, costumava chamá-la de dona, não de tia.
E enquanto d. Aída vistoriava Juninho à cata de algum caco de vidro espatifado, o filho contou-lhe o que acontecera.
Foi o suficiente para ela mudar de atitude. E da busca dos resquícios de vidro passou aos tapas e cascudos no filho.
-- Peste!! E eu sem conseguir dormir até agora – disse d. Aída. – Não vai ser fácil acordar teu pai. Tava te procurando para que você o buscasse na casa do Jader, onde tinha um enterro dos ossos de um churrasco de carneiro. Encheu a cara de cerveja e tava cochilando com o seu tio na mesa, quando Aída me ligou. Dudu poderia ter ido buscá-lo, mas você saiu com a Brasília...Ainda bem que o Jader Jr. chegou e o trouxe para casa agorinha há pouco.
Dr. Jader era médico respeitado e primo do Capita. Os dois moravam na mesma rua, separados por umas oito casas, se tanto. Aída era a mulher do Dr. Jader, homônima da mãe do Juninho, e Jader Jr., obviamente, era sobrinho do capitão.
Os dois entram no quarto. Imagino o que não fizeram para acordar o Capitão. Eis que d. Aída sai do quarto e grita para o Enéas:
-- Juninho, pega umas pedras de gelo.
Vira-se para mim, que acompanhava a movimentação do lado da porta de entrada.
-- Eros, chama os policiais até a varanda – disse-me. – Vou pedir que eles esperem um pouco. O Enéas já vem.
Eu fiz o que ela pediu, não sem antes sinalizar que ela tinha creme no rosto.
Quando os PMs chegaram à varanda, o Capitão já estava de pé, graças aos cubos de gelo que Juninho buscara no congelador. Ficou a par da situação e encaminhou-se para a varanda, acompanhado de d. Aída, robe fechado da cabeça aos pés.
O Capitão foi falar com os PMs da maneira que dormia, sem camisa, apenas com um calção surrado. Capitão Enéas tinha fisionomia tão única como seu caráter – um cara simples, que sempre buscava o bom da vida, um dos meus heróis. Usava um bigode farto encimado por uma imensa nareba – herança que deixou para os três filhos homens; Eneida escapou dessa. As sobrancelhas grossas cobriam olhos castanho-escuros e tranqüilos e tinha uma pança típica de todo bom bebedor de cerveja. Sacam o Abracurcix, chefe da aldeia gaulesa de “Asterix & Obelix”? Já d. Aída me lembra a Eva Vilma.
Bem, a cena foi muito engraçada, hilária mesmo. Estavam ali perfilados os cinco policiais, quepes devidamente nas mãos e os cinco batem continência e juntam os calcanhares quando o Capitão, olhos e nariz vermelhos, pança saliente e gambitos à mostra, surge na varanda e devolve o cumprimento juntando os calcanhares nus.
-- Desculpe, capitão. Mas estávamos fazendo nossa ronda de praxe na Vila, e na rua 27, encontramos uma Brasília bege e dois rapazes. Um deles disse ser seu filho. Era nosso dever checar – argumentou, se desculpando, o sargento Antunes.
-- Cumpriu o seu dever, sargento.... –embora o Capita espremesse os olhos, não conseguia ler o nome do PM, gravado na camisa.
-- Antunes, senhor – apressou-se em ajudar o sargento.
-- Cumpriu bem o seu dever, sargento Antunes. Ele é meu filho, sim.
-- Desculpe tirá-lo da cama, senhor – bateram continência, despedindo-se.
No entanto, antes que começassem a marchar em retirada, o capitão perguntou com voz pastosa:
-- Sargento Antunes, o meu filho não lhe faltou com o respeito não, né?
Senti um frio na espinha, mesma sensação que imagino que Enéas deva ter sentido.
Porém, o sargento foi magnânimo, acho que mais pelo estado do Capitão.
-- Em absoluto, Capitão. O senhor tem um filho bem educado – Antunes disse a última frase olhando fixamente para o Juninho.
Mais não disse o Capitão, retornando, cambaleante, para a cama e o seu sono tão bruscamente interrompido.
D. Aída fez menção de dar uns tapas no filho, mas Juninho imobilizou-a, segurando as mãos dela. Lascou-lhe um beijo, afirmando-lhe:
-- Volto já, Aídão. Só vou buscar o carro na casa do Eros.
D. Aída ainda resistiu aos carinhos do filho, mas quando conseguiu livrar-se do abraço, o Enéas já ia longe.
-- Boa noite, d. Aída – gritei, já em frente ao jardim.
Fomos até minha casa, entrei e o Enéas pegou o carro. Chegou em casa um minuto mais tarde. Enfim, a luz da varanda foi apagada.
Uma delas aconteceu numa das muitas noites em que rodamos pela cidade a bordo da Brasília bege do Capitão Enéas. O Juninho, como era tratado pela mãe, d. Aída, estacionou o carro em frente à minha casa, na rua 27, e conversávamos com as portas (as da frente) escancaradas. Passava pouco de uma da manhã, quando cruzou por nós uma patrulha da Polícia Militar, numa veraneio azul claro e branca.
Rondas feitas pela PM nas áreas nobres da cidade -- sim, o Voltaço tem áreas nobres -- eram comuns. Naquela época, meados de 1970, Volta Redonda era considerada área de Segurança Nacional por sediar a C.S.N. A Companhia Siderúrgica Nacional fabrica aço e ferro, considerados material estratégico na visão belicista-boitatá dos militares que chefiavam o país.
Voltando à vaca fria, a veraneio com cinco mal-encarados policiais a bordo, parou na frente da Brasília, depois de passar por nós à velocidade de cágado. Descem quatro PMs da viatura. Só fica o motorista. Dois deles vão até o Enéas; os outros dois vêm até minha porta, escopetas em punho. O cara que chefiava a patrulha, sargento Antunes, disse, curvando-se e apoiando os antebraços na porta do Enéas:
-- Boa noite, cavalheiros. Identidade dos dois, documentos do carro e sua carteira de motorista -- exigiu o sujeito, magro, não muito alto e barba feita.
-- Boa noite -- respondeu Enéas, pronunciando as duas únicas palavras ditas amistosamente aos policiais. -- Cê sabe com quem está falando?
Sargento Antunes tomara um susto com a petulância do moleque -- se bem que filhinhos-de-papai eram figurinhas fáceis numa sociedade de castas, como era Volta Redonda - mas recompôs-se num átimo:
_ Você pode ser o presidente da República, estou me lixando. Seus documentos, os documentos do carro e sua carteira de motorista.
- -- Sou filho do Capitão Enéas -- arrotava Enéas, com uma empáfia desmedida. – Moro na rua 26, quase esquina com a 31. Os documentos estão lá em casa. Sai só para trazer meu amigo.
Morava a uns 350 metros do Enéas, embora de minha casa não avistássemos a dele.
Sugeri que chamássemos o Celinho, meu pai, que dormia ali em casa .
-- Não, não, não, Eros. Deixa o Celinho dormir. Aliás, vai dormir você também. São quase duas da manhã. Vou até lá em casa preu provar pra estes brucutus (o adjetivo é meu, não me lembro do que Enéas chamou os PMs, mas era algo que tinha a ver com a truculência e a ignorância deles... meganhas, talvez fosse este o termo que Enéas usara) que sou filho do Capitão -- disse Enéas, fechando os vidros do carro antes de trancá-lo.
Não preciso dizer que vetei imediatamente a idéia de abandonar o barco.
Então Juninho, virou-se para o sargento, e disse, entre impaciente e autoritário:
--Vamos lá. Cês seguem a gente...
-- Seria mais rápido se vocês entrassem no carro e fossem com a gente. O cabo França e um outro praça iriam com a Brasília -- sugeriu, cavalheirescamente, o sargento.
-- Nem fodendo eu entro no carro de vocês. E nunca, nunca deixaria algum de vocês botar as patas no volante do carro de meu pai – devolveu, cavalgaduramente, Enéas.
Assim, lado a lado, fomos andando rumo à casa do Enéas com a Patamo nos seguindo.
Perguntei, quase segredando ao Enéas:
-- E agora? Você num tem carteira de motorista...Que merda!
-- E porque cê acha que eu tô levando estes imbecis lá pra casa? Quando o capita aparecer, eles vão se cagar todos, pedir desculpas e ir embora, de fininho. Quer apostar? – respondeu Juninho, resoluto.
Em três minutos, estávamos na casa do Enéas. As casas não ostentavam as grades que são obrigatórias na Vila atualmente, e a luz da varanda ainda estava acesa, o que significava que ainda faltava chegar alguém.
Pois este “alguém” acabara de entrar em casa. Antes, Enéas pediu, ou melhor, comunicou aos PMs que esperassem, no carro ou na varanda. Ele ia buscar o pai.
Assim que nós entramos na sala, os PMs iniciaram uma breve conferência na patamo.
-- E aí, vocês conhecem esse “Capitão Enéas”? – perguntou o sargento Antunes.
-- Um primo meu foi ordenança na casa do capitão. Ele só falava bem do cara e da família – afirmou o soldado Flores.
Ordenança era um empregado sem salário. Um soldado raso que era cedido pelo Exército para trabalhar na casa de um oficial. Na maioria dos casos, fazia a faxina pesada, como limpar latrinas.
-- Eu conheço, ou melhor, sei quem é. Ele, na verdade, entrou para a reserva como major. Agora manda num departamento da C.S.N.. É gente boa demais...— garantia o cabo França.
Outro praça também sabia da (boa) fama do capitão.
Só Antunes e um soldado nada sabiam a respeito do Capitão Enéas.
– Caralho, é melhor eu pôr meu galho dentro...
Ainda na sala, d. Aída, que ouve o barulho do filho chegando, sai do quarto do casal, envolta num roupão que combinava com a cor, bege, do creme que passara no rosto.
-- Juninho!! -- grita abafadamente ela. – Por onde você andava?
Cacei você por tudo quanto é lugar. Liguei para o Eros, o André... e nada!
Enéas esquivou-se dela, com um ”tá bom, depois a gente conversa” e já ia entrando no quarto, atrás do capitão, quando d. Aída, indignada com a indiferença do Juninho, alterou a voz:
-- Moleque!! Olha aqui, me respeita – olhos injetados, expressão irritada.
Enéas olhou-a e respondeu, se desvencilhando das mãos da mãe:
-- Num é nada disso, Aída. É que agora papai precisa conversar com uns guardinhas aí.
Estressada que só, d. Aída já imaginava o pior.
-- Deus do Céu!!Bateu com o carro!!! Machucou alguém?? Eros??
E eu me fazendo de jarro de planta.
-- Não, num aconteceu nada, tia Aída – disse eu, que diferentemente de meus amigos, costumava chamá-la de dona, não de tia.
E enquanto d. Aída vistoriava Juninho à cata de algum caco de vidro espatifado, o filho contou-lhe o que acontecera.
Foi o suficiente para ela mudar de atitude. E da busca dos resquícios de vidro passou aos tapas e cascudos no filho.
-- Peste!! E eu sem conseguir dormir até agora – disse d. Aída. – Não vai ser fácil acordar teu pai. Tava te procurando para que você o buscasse na casa do Jader, onde tinha um enterro dos ossos de um churrasco de carneiro. Encheu a cara de cerveja e tava cochilando com o seu tio na mesa, quando Aída me ligou. Dudu poderia ter ido buscá-lo, mas você saiu com a Brasília...Ainda bem que o Jader Jr. chegou e o trouxe para casa agorinha há pouco.
Dr. Jader era médico respeitado e primo do Capita. Os dois moravam na mesma rua, separados por umas oito casas, se tanto. Aída era a mulher do Dr. Jader, homônima da mãe do Juninho, e Jader Jr., obviamente, era sobrinho do capitão.
Os dois entram no quarto. Imagino o que não fizeram para acordar o Capitão. Eis que d. Aída sai do quarto e grita para o Enéas:
-- Juninho, pega umas pedras de gelo.
Vira-se para mim, que acompanhava a movimentação do lado da porta de entrada.
-- Eros, chama os policiais até a varanda – disse-me. – Vou pedir que eles esperem um pouco. O Enéas já vem.
Eu fiz o que ela pediu, não sem antes sinalizar que ela tinha creme no rosto.
Quando os PMs chegaram à varanda, o Capitão já estava de pé, graças aos cubos de gelo que Juninho buscara no congelador. Ficou a par da situação e encaminhou-se para a varanda, acompanhado de d. Aída, robe fechado da cabeça aos pés.
O Capitão foi falar com os PMs da maneira que dormia, sem camisa, apenas com um calção surrado. Capitão Enéas tinha fisionomia tão única como seu caráter – um cara simples, que sempre buscava o bom da vida, um dos meus heróis. Usava um bigode farto encimado por uma imensa nareba – herança que deixou para os três filhos homens; Eneida escapou dessa. As sobrancelhas grossas cobriam olhos castanho-escuros e tranqüilos e tinha uma pança típica de todo bom bebedor de cerveja. Sacam o Abracurcix, chefe da aldeia gaulesa de “Asterix & Obelix”? Já d. Aída me lembra a Eva Vilma.
Bem, a cena foi muito engraçada, hilária mesmo. Estavam ali perfilados os cinco policiais, quepes devidamente nas mãos e os cinco batem continência e juntam os calcanhares quando o Capitão, olhos e nariz vermelhos, pança saliente e gambitos à mostra, surge na varanda e devolve o cumprimento juntando os calcanhares nus.
-- Desculpe, capitão. Mas estávamos fazendo nossa ronda de praxe na Vila, e na rua 27, encontramos uma Brasília bege e dois rapazes. Um deles disse ser seu filho. Era nosso dever checar – argumentou, se desculpando, o sargento Antunes.
-- Cumpriu o seu dever, sargento.... –embora o Capita espremesse os olhos, não conseguia ler o nome do PM, gravado na camisa.
-- Antunes, senhor – apressou-se em ajudar o sargento.
-- Cumpriu bem o seu dever, sargento Antunes. Ele é meu filho, sim.
-- Desculpe tirá-lo da cama, senhor – bateram continência, despedindo-se.
No entanto, antes que começassem a marchar em retirada, o capitão perguntou com voz pastosa:
-- Sargento Antunes, o meu filho não lhe faltou com o respeito não, né?
Senti um frio na espinha, mesma sensação que imagino que Enéas deva ter sentido.
Porém, o sargento foi magnânimo, acho que mais pelo estado do Capitão.
-- Em absoluto, Capitão. O senhor tem um filho bem educado – Antunes disse a última frase olhando fixamente para o Juninho.
Mais não disse o Capitão, retornando, cambaleante, para a cama e o seu sono tão bruscamente interrompido.
D. Aída fez menção de dar uns tapas no filho, mas Juninho imobilizou-a, segurando as mãos dela. Lascou-lhe um beijo, afirmando-lhe:
-- Volto já, Aídão. Só vou buscar o carro na casa do Eros.
D. Aída ainda resistiu aos carinhos do filho, mas quando conseguiu livrar-se do abraço, o Enéas já ia longe.
-- Boa noite, d. Aída – gritei, já em frente ao jardim.
Fomos até minha casa, entrei e o Enéas pegou o carro. Chegou em casa um minuto mais tarde. Enfim, a luz da varanda foi apagada.
domingo, 22 de novembro de 2009
a viagem
Quando eu tinha 3 anos, meu pai e minha mãe construíram uma casinha a 14 quilômetros de Angra, num lugar chamado Pontal. Era uma meia-água mesmo: quarto, banheiro, cozinha e um varandão imenso, que servia como garagem. Já o terreno que circundava a casa era grande.
Na minha infância, quase todo fim de semana era para lá que íamos. Quando cresci, continuei a ir com muita freqüência para lá. Sempre com os amigos: Cláudio, Enéas, Cozido, Aurélio e Gugu eram figuras constantes na maison do Celinho (Célio era meu pai).
Estranho que André e Chico (meus dois melhores amigos) nunca tivessem ido à Angra. Decidi que iríamos para lá, os três mais Marco Antônio Guerrero, outro amigo do Macedo Soares (colégio onde cursei da 5ª série ao cursinho pré-vestibular) e Renatinho, camarada que estudou os dois primeiros anos do 2ª grau, e logo caiu nas graças de toda a turma.
Aqui cabe um longo, porém compreensivo parênteses, que tem a extensão de uma crônica.
O Guerrero é um clínico-geral, chefe da emergência do mais importante hospital da região, o Vita, que assim se chama desde que a C.S.N. privatizou seu hospital. Coube a ele a triste incumbência de comunicar a morte de meu pai, em 1993. Ontem, 21 de novembro de 2009 (aniversário do Celinho), ele fez um festão comemorando seus 50 anos.
Já do Renato César, pouco sei. Apenas que é engenheiro químico da Petrobras. Ou era. Há uns 18 anos o vi pela última vez. E é este encontro que justifica estas aspas no texto.
Tinha uns dois anos de casado e até a morte do meu pai, quase todo fim de semana passávamos em Volta. Imagina minha alegria quando Chico me liga, sábado à tarde, para contar de um velho amigo:
-- Eros, antes do almoço, encontrei com o Renatinho, cara!!
-- Renatinho...Caraí! E ele tá bem? Tá trabalhando? – perguntei, sinceramente interessado.
-- Tá ótimo. Casado, trabalhando na Petrobras...Ele, inclusive, quer se encontrar com a rapaziada. Falei pra ele que podíamos marcar aqui em casa. E que falaria com você e o André, que viriam com as respectivas esposas. Marcamos aqui às 8h, tá? – confirmou Chico, dando um breve briefing
do Renato.
Desliguei o telefone e falei pra Claudia do programa de logo mais.
Às 8h15m, estávamos, de carona, com André e Códia em frente à casa de Chicão e Áurea, então sua mulher.
Às 8h20m, chegava o convidado especial, Renato César. Conversamos amenidades, falamos do destino de alguns de nossos amigos.
Até que Renatinho nos convidou para irmos a uma sala onde Chico, a pedido feito à surdina por Renato assim que chegou, postara um quadro branco e um pilot azul.
Subitamente, depois de nos acomodarmos num longo sofá, Renato se põe ao lado do quadro, saca a pilot e inicia o discurso habitual:
-- Amigos, venho trazer para vocês uma oportunidade única...
-- Puta que pariu! É Anway...Caralho!!! -– eu, indignado, interrompera Renato
antes que ele concluísse a primeira frase.
E para minha total decepção, era realmente Anway, o que nos juntara, depois de tanto tempo, a Renatinho.
Amway, para quem não conhece, é uma espécie de pirâmide legalizada. O cara tem que convencer o maior número de pessoas a comprar o maior volume de produtos (de higiene pessoal, hidratantes e para limpeza doméstica) de marcas vinculadas à Amway. E tentam (acho até que acreditam, ao menos nas primeiras reuniões) provar que ser um vendedor Amway é certeza de independência financeira.
Estes encontros têm (e teve com o Renato protagonizando um dos momentos mais constrangedores da minha vida) a velha lenga-lenga. Exemplos de total mudança de vida, tipo “Ronaldo Calado era um humilde atendente de farmácia. Isso até se tornar um vendedor da Amway. A partir daí, sua vida mudou. Investiu todo o seu salário em produtos Amway e hoje Calado mora num condomínio de alto luxo em Key Biscayne, na Flórida, joga golfe uma vez por semana e vive vendendo os produtos Amway pelo mundo a fora. E isso porque, certo dia, Calado falou com convicção para si próprio: ‘Vou virar um vendedor da Amway e me tornarei um quaclionário (vide almanaque do Tio Patinhas).’”
Sei que a “minha” Claudia (a Códia do André também era Cláudia e Regina, como a minha) ficou uma arara. Com comentários desdenhosos à cada “veredicto empresarial” pregado por Renatinho,quase não o deixou demonstrar a eficiência da Amway, como ele se propusera a fazer. Não houve perguntas depois da explanação de Renato.
Ele percebeu a imensidão de sua cagada: a pretexto de rever amigos há muito afastados, promoveu
uma reunião para vender Amway!!
Chico também ficara irado. Estranhamente, André não ficou puto com o cara, considerando a atitude dele normal. Eu sei que antes das 10 da noite, acabou a reunião. Renatinho, muito constrangido, e, acredito, seriamente arrependido, foi para a casa de um primo. Nós fomos para casa. Eu, particularmente,
com uma péssima sensação: saudades não apaziguadas porque do que eu tinha saudades não existia mais.
Falência de uma amizade.
Fim do imenso parêntesis.
O sábado de nossa viagem amanheceu esplendoroso, sem nuvens no céu.
Oito e meia surgiam, na porta de casa, Guerrero, Renatinnho, Chico e André, devidamente instalados na Brasília amarela do Guerrero. Assim, antes das 9h estávamos pondo os pés na estrada.
A viagem foi tranqüila. Guerrero não chegava a 80km/h – preferia a morosidade do que o risco. Mas o dia estava tão pleno de sol que a velocidade – ou melhor, a falta de velocidade – não nos incomodava. Era outono e o céu tinha uma limpidez rara. A paisagem da estrada de Volta Redonda para Angra era – acho que ainda é – estonteante. A serra é úmida e a estrada, margeada por pequenas cachoeiras, samambaias, marias-sem-vergonha e avencas.
Pouco depois de Lídice – vilarejo que ganhara este nome em homenagem a uma cidade tcheca destruída na Segunda Guerra – o caminho estreitava-se para percorrer uma sucessão de três túneis. Ao cruzar o primeiro, uma surpresa inesquecível até mesmo para adolescentes insensíveis e com testosterona até a alma: uma visão de cartão postal da baía de Angra dos Reis. Aquele marzão todo lá embaixo, emoldurado por ipês roxos que salpicavam a serra verde. Uma das mais esplêndidas vistas de minha vida.
-- Agora, agora...Dêem uma olhada do lado direito, logo na saída do túnel...Caraí, num é demais? -- inquiria eu, entusiasmado com o que acreditava uma revelação .
O silêncio à pergunta seria mais enfático do que o menear de cabeças e o “hum, hum” que André e Chico limitaram-se a grunhir antes de retomar o papo em questão, algo de seriedade equivalente, nos dias de hoje, aos limites éticos dos excessos das cachorras do funk. Guerrero sequer respondera, sequer percebera que acabáramos de ser oficialmente apresentados à Angra. Só tinha olhos para o chão da estrada. Acho que foi a indiferença à beleza do mar que levou o tempo a se revoltar e dar o troco...
Quando chegamos em casa, pouco depois de 11h, o tempo já estava lusco-fusco. Meu pai comprara o lote uns dois anos antes de 1964, quando a casa ficou pronta.
Como descobrira o lugar, tão longe da civilização? A fazenda onde Celinho havia comprado o lote – os proprietários venderam uns poucos terrenos -- ficava em frente ao Iate Clube de Angra dos Reis (I.C.A.R.), clube cuja maior atração era mesmo o hangar que abrigava lanchinhas, lanchas e lanchões. Só isso explicava a existência de um clube a 14 quilômetros da cidade: a saída para o mar, o estonteante mar de Angra. O I.C.A.R. hospedava também sócios e convidados. Bem, uma vez meu pai e minha mãe passaram um fim de semana a convite de um casal de Barra Mansa. Adoraram o lugar. Tornaram-se sócios.
Houve uma época em que meu pai tinha pretensões a alcançar -- uma lancha e uma casa na praia eram duas delas. Tivemos uma lancha -- pequenininha, uns 15 pés, cinco metros – e um motor Johnson, cuja potência não me lembro nem me arrisco a chutar. Uma voadeira –lancha pequena com motor de popa com alguma potência.
O fato é que nós cinco tínhamos objetivos bem mais simples. Queríamos apenas nos divertir e ir para Angra era o máximo para mim em termos de auto-suficiência: um fim de semana longe de casa, comendo miojo e atum em lata. E o que seria inadmissível nos dias de hoje, naquele tempo já era difícil de aceitar: a casinha do Pontal não tinha luz elétrica. Ou seja, banho, só frio. Geladeira, televisão eram apenas pequenos trastes que nunca couberam em meus sonhos de capitão de mim mesmo.
Acendíamos o lampião e não raro ficávamos jogando conversa fora e assistindo a noite chegar nos revezando na rede que cruzava o varandão, antes de irmos para o I.C.A.R.
Naquele fim de semana, logo depois que chegamos ao Pontal, o tempo fechou e às três da tarde já desabava uma chuva torrencial – o que era sinônimo de goteiras, uma vez que não havia laje cobrindo o varandão, era só telha. Saco!!!
Mais de uma vez eu, Enéas e Cozido encaramos chuva e mergulhamos no mar do I.C.A.R.. Mas naquele fim de semana estava frio e nos preparamos para ficar em casa mesmo, comendo um miojo com salsicha, brindando nossa independência com Sangue de Boi (o mais abominável vinho que alguém já bebeu) e suco de laranja (na época André era um abstêmio intragável) em copo de geléia. Driblamos o banho gelado que a falta de luz elétrica nos proporcionava e, conformados com o confinamento provocado pelo toró, já nos preparávamos para dormir às nove da noite quando a chuva arrefeceu. Agora apenas chuviscava. Catei dois baralhos, meti no bolso do casaco e lá, fomos nós, de carro – coisa que dificilmente fazia, já que o Iate Clube ficava a menos de 300 metros de casa.
Encontramos o clube vazio: tinha, entre visitantes e hóspedes, umas 20 pessoas. Não tinha viv’alma no salão de jogos – onde uma mesa de bilhar, tacos tortos e uma mesa de pingue-pongue eram muito disputadas, principalmente pelos cariocas que tinham casa de veraneio no condomínio vizinho ao clube.
A presença deles nunca era muito agradável. Eram adolescentes da Zona Norte do Rio que, longe de serem ricos, arrotavam arrogância e prepotência por passar o dia percorrendo de lancha o mar de Angra. À noite, sem ter muito o que fazer, iam para o I.C.A.R. esnobar os funcionários e eventuais duros como nós, cuja principal diversão durante o dia era irmos à praia ali no I.C.A.R. mesmo, mergulhar agarrados às correntes presas a âncoras, pescar no rio da fazenda ou de tarrafa no canal que desaguava na divisa entre o clube e o condomínio e fazer breves incursões às ilhas próximas ao continente.
Atividades de nenhuma relevância para as gatinhas queimadas de sol que não davam a menor para nós. No entanto, volta e meia nos iludíamos acreditando num flerte – nunca confirmado; sempre voltávamos para casa de mãos abanando.
Quando o clube estava cheio, limitávamo-nos a nos inscrever entre as duplas que se revezavam nas mesas de bilhar e de pingue-pongue. Não me lembro dos cariocas misturados a nós para poder jogar. Preferiam esperar um conhecido perder a jogar em parceria com algum de nós.
Como o salão estava vazio, primeiro jogamos sinuca, depois pingue-pongue. Eu nunca foi grande coisa mas André e Guerrero eram ainda piores e Chico uma nulidade em jogos que exigem alguma coordenação motora.
Em seguida, chegamos a sentar numa mesa no salão destinado a jogos de carta. Mas o tempo estava horrível, a chuva ameaçava apertar e voltamos para casa.
Eram 10 e meia da noite mas como não havia nada para fazer, fomos dormir. No quarto/sala eram só dois sofás. Quem perdia no sorteio, dormia em colchões espalhados pelo chão.
Ganhamos eu e o Guerero; Renatinho, Chico e André dormiram no chão. Em pouco tempo, após as besteiras habituais ditas por cinco adolescentes fechados num quarto sem luz, caímos em sono profundo, não sem antes ouvirmos os comentários muito pertinentes de André.
-- Puta que pariu! Tem mosquito pra caralho! – disparou André, untado de baldes de repelente como todos nós.
Apesar dos zunidos angustiantes de pernilongos, dormimos quase que imediatamente ao comentário de André.
Dia seguinte, André é o primeiro a acordar, Guerrero, eu e Chico pouco depois. Foi o André o primeiro a reparar, quando já estávamos na cozinha, prontos para o café da manhã:
-- Chico, caralho!! Cê tá com o lábio inferior inchadaço. Que maneiro!
Com ares de preocupação, Chico passou a língua no lábio e saiu correndo para o espelho do banheiro. Nós o seguimos.
-- Tá bonitaço, Chicão – disse, antes de cair na risada, junto com André e Guerrero.
Chico tivera o lábio picado por um mosquito e agora ostentava uma beiçola que o tornava ainda mais cômico.
Chico é um sujeito que traz na testa um luminoso no qual se lê, em letras garrafais: “Sou muito gente boa, pode se aproximar”. Não é um cara bonito. Tronco, pernas e braços curtos e musculosos fazem-no parecer mais baixo do que realmente é. Tem pêlos em volume semelhante ao de Tony Ramos.
Imaginem o que nós não o perturbamos com aqueles dois quilos de beiço. No entanto, antes do meio-dia, o lábio já estava desinchado.
E como a chuva dera lugar a um tempo nublado, quente e abafado pacas, fizemos um rápido périplo pelo I.C.A.R.. Fomos até o hangar, andamos pelos salões do clube e fui mostrar para os três o condomínio ao lado. Acabamos entrando na praia – que, naquela época, já tinha lodo – nadamos, comemos sanduíches frios no bar e fomos para casa. Tomamos uma ducha fria, arrumamos a bagagem e, antes das 4 da tarde, já estávamos rumo a Volta Redonda.
Ali começara o inferno do Guerrero. Mais do que na vinda, ele redobrara a atenção com a pista, molhada e escorregadia. Muito branco, cabelos louros dourados, feições finas, Guerrero ganhara o apelido de Robert Redford. Era caladão e tranqüilo.
Mas o cuidado com a direção e a conseqüente morosidade valera-lhe os achincalhes de André, Chico e Renato que o atormentaram a viagem inteira.
-- Guerrero! Guerrero! Tem uma lesma te ultrapassando pela direita. Cuidado! – advertira-o Chico, enquanto ria sua risada galopante, qual o Rabugento, o cão do Dick Vigarista, do desenho animado “Corrida maluca”.
-- Guerrero! Guerrero! Foi mal. Eu deixei cair meu chiclete na marcha. Por isso você num consegue passar a segunda – emendava André, se vergando de rir, ao lado de Chico e Renato, no banco de trás.
Eu ria de algumas piadas, mas não de todas. Minha criatividade era nenhuma. E bom samaritano, calei-me para não deixar o Guerrero ainda mais puto.
Depois de mais de uma hora ouvindo, calado, os gracejos dos dois, o motorista achou por bem responder. Mas o fez de maneira tão gutural que a frase ecoou ininteligível. O que só excitou ainda mais Chico, Renato e André, que choravam de tanto rir com o bordão emprestado da frase proferida por Guerrero. A partir da intervenção onomatopéica de nosso Robert Redford, toda frase dita pela dupla terminava com uma sucessão de vocábulos ininteligíveis ou um simulacro de cochilo. Assim foi o resto da viagem, com André e Chico enchendo o Guerrero até Volta.
O primeiro a descer em casa fui eu. O segundo foi o próprio motorista. Isso porque na altura da rodoviária, Guerrero obrigou Renato, André e Chico a desembarcarem.
-- Bem, cês me sacanearam a viagem toda, né? Então peguem um buzão para casa. Quem sabe vocês não vão mais rápido? – vingava-se.
Os três tentaram argumentar, apelando para um monte de garrafas de plástico duro que levaram para Angra. Mas Guerrero estava irredutível e começou a jogar as garrafas para fora da Brasília, junto com as malas deles.
Do retrovisor da Brasília que se afastava, Guerrero acompanhava os malabarismos de Renato, André e Chico para resgatar as muitas garrafas de plástico a salvo até a calçada. Pela primeira vez desde que saíramos de Angra, Guerrero sorria.
.
Na minha infância, quase todo fim de semana era para lá que íamos. Quando cresci, continuei a ir com muita freqüência para lá. Sempre com os amigos: Cláudio, Enéas, Cozido, Aurélio e Gugu eram figuras constantes na maison do Celinho (Célio era meu pai).
Estranho que André e Chico (meus dois melhores amigos) nunca tivessem ido à Angra. Decidi que iríamos para lá, os três mais Marco Antônio Guerrero, outro amigo do Macedo Soares (colégio onde cursei da 5ª série ao cursinho pré-vestibular) e Renatinho, camarada que estudou os dois primeiros anos do 2ª grau, e logo caiu nas graças de toda a turma.
Aqui cabe um longo, porém compreensivo parênteses, que tem a extensão de uma crônica.
O Guerrero é um clínico-geral, chefe da emergência do mais importante hospital da região, o Vita, que assim se chama desde que a C.S.N. privatizou seu hospital. Coube a ele a triste incumbência de comunicar a morte de meu pai, em 1993. Ontem, 21 de novembro de 2009 (aniversário do Celinho), ele fez um festão comemorando seus 50 anos.
Já do Renato César, pouco sei. Apenas que é engenheiro químico da Petrobras. Ou era. Há uns 18 anos o vi pela última vez. E é este encontro que justifica estas aspas no texto.
Tinha uns dois anos de casado e até a morte do meu pai, quase todo fim de semana passávamos em Volta. Imagina minha alegria quando Chico me liga, sábado à tarde, para contar de um velho amigo:
-- Eros, antes do almoço, encontrei com o Renatinho, cara!!
-- Renatinho...Caraí! E ele tá bem? Tá trabalhando? – perguntei, sinceramente interessado.
-- Tá ótimo. Casado, trabalhando na Petrobras...Ele, inclusive, quer se encontrar com a rapaziada. Falei pra ele que podíamos marcar aqui em casa. E que falaria com você e o André, que viriam com as respectivas esposas. Marcamos aqui às 8h, tá? – confirmou Chico, dando um breve briefing
do Renato.
Desliguei o telefone e falei pra Claudia do programa de logo mais.
Às 8h15m, estávamos, de carona, com André e Códia em frente à casa de Chicão e Áurea, então sua mulher.
Às 8h20m, chegava o convidado especial, Renato César. Conversamos amenidades, falamos do destino de alguns de nossos amigos.
Até que Renatinho nos convidou para irmos a uma sala onde Chico, a pedido feito à surdina por Renato assim que chegou, postara um quadro branco e um pilot azul.
Subitamente, depois de nos acomodarmos num longo sofá, Renato se põe ao lado do quadro, saca a pilot e inicia o discurso habitual:
-- Amigos, venho trazer para vocês uma oportunidade única...
-- Puta que pariu! É Anway...Caralho!!! -– eu, indignado, interrompera Renato
antes que ele concluísse a primeira frase.
E para minha total decepção, era realmente Anway, o que nos juntara, depois de tanto tempo, a Renatinho.
Amway, para quem não conhece, é uma espécie de pirâmide legalizada. O cara tem que convencer o maior número de pessoas a comprar o maior volume de produtos (de higiene pessoal, hidratantes e para limpeza doméstica) de marcas vinculadas à Amway. E tentam (acho até que acreditam, ao menos nas primeiras reuniões) provar que ser um vendedor Amway é certeza de independência financeira.
Estes encontros têm (e teve com o Renato protagonizando um dos momentos mais constrangedores da minha vida) a velha lenga-lenga. Exemplos de total mudança de vida, tipo “Ronaldo Calado era um humilde atendente de farmácia. Isso até se tornar um vendedor da Amway. A partir daí, sua vida mudou. Investiu todo o seu salário em produtos Amway e hoje Calado mora num condomínio de alto luxo em Key Biscayne, na Flórida, joga golfe uma vez por semana e vive vendendo os produtos Amway pelo mundo a fora. E isso porque, certo dia, Calado falou com convicção para si próprio: ‘Vou virar um vendedor da Amway e me tornarei um quaclionário (vide almanaque do Tio Patinhas).’”
Sei que a “minha” Claudia (a Códia do André também era Cláudia e Regina, como a minha) ficou uma arara. Com comentários desdenhosos à cada “veredicto empresarial” pregado por Renatinho,quase não o deixou demonstrar a eficiência da Amway, como ele se propusera a fazer. Não houve perguntas depois da explanação de Renato.
Ele percebeu a imensidão de sua cagada: a pretexto de rever amigos há muito afastados, promoveu
uma reunião para vender Amway!!
Chico também ficara irado. Estranhamente, André não ficou puto com o cara, considerando a atitude dele normal. Eu sei que antes das 10 da noite, acabou a reunião. Renatinho, muito constrangido, e, acredito, seriamente arrependido, foi para a casa de um primo. Nós fomos para casa. Eu, particularmente,
com uma péssima sensação: saudades não apaziguadas porque do que eu tinha saudades não existia mais.
Falência de uma amizade.
Fim do imenso parêntesis.
O sábado de nossa viagem amanheceu esplendoroso, sem nuvens no céu.
Oito e meia surgiam, na porta de casa, Guerrero, Renatinnho, Chico e André, devidamente instalados na Brasília amarela do Guerrero. Assim, antes das 9h estávamos pondo os pés na estrada.
A viagem foi tranqüila. Guerrero não chegava a 80km/h – preferia a morosidade do que o risco. Mas o dia estava tão pleno de sol que a velocidade – ou melhor, a falta de velocidade – não nos incomodava. Era outono e o céu tinha uma limpidez rara. A paisagem da estrada de Volta Redonda para Angra era – acho que ainda é – estonteante. A serra é úmida e a estrada, margeada por pequenas cachoeiras, samambaias, marias-sem-vergonha e avencas.
Pouco depois de Lídice – vilarejo que ganhara este nome em homenagem a uma cidade tcheca destruída na Segunda Guerra – o caminho estreitava-se para percorrer uma sucessão de três túneis. Ao cruzar o primeiro, uma surpresa inesquecível até mesmo para adolescentes insensíveis e com testosterona até a alma: uma visão de cartão postal da baía de Angra dos Reis. Aquele marzão todo lá embaixo, emoldurado por ipês roxos que salpicavam a serra verde. Uma das mais esplêndidas vistas de minha vida.
-- Agora, agora...Dêem uma olhada do lado direito, logo na saída do túnel...Caraí, num é demais? -- inquiria eu, entusiasmado com o que acreditava uma revelação .
O silêncio à pergunta seria mais enfático do que o menear de cabeças e o “hum, hum” que André e Chico limitaram-se a grunhir antes de retomar o papo em questão, algo de seriedade equivalente, nos dias de hoje, aos limites éticos dos excessos das cachorras do funk. Guerrero sequer respondera, sequer percebera que acabáramos de ser oficialmente apresentados à Angra. Só tinha olhos para o chão da estrada. Acho que foi a indiferença à beleza do mar que levou o tempo a se revoltar e dar o troco...
Quando chegamos em casa, pouco depois de 11h, o tempo já estava lusco-fusco. Meu pai comprara o lote uns dois anos antes de 1964, quando a casa ficou pronta.
Como descobrira o lugar, tão longe da civilização? A fazenda onde Celinho havia comprado o lote – os proprietários venderam uns poucos terrenos -- ficava em frente ao Iate Clube de Angra dos Reis (I.C.A.R.), clube cuja maior atração era mesmo o hangar que abrigava lanchinhas, lanchas e lanchões. Só isso explicava a existência de um clube a 14 quilômetros da cidade: a saída para o mar, o estonteante mar de Angra. O I.C.A.R. hospedava também sócios e convidados. Bem, uma vez meu pai e minha mãe passaram um fim de semana a convite de um casal de Barra Mansa. Adoraram o lugar. Tornaram-se sócios.
Houve uma época em que meu pai tinha pretensões a alcançar -- uma lancha e uma casa na praia eram duas delas. Tivemos uma lancha -- pequenininha, uns 15 pés, cinco metros – e um motor Johnson, cuja potência não me lembro nem me arrisco a chutar. Uma voadeira –lancha pequena com motor de popa com alguma potência.
O fato é que nós cinco tínhamos objetivos bem mais simples. Queríamos apenas nos divertir e ir para Angra era o máximo para mim em termos de auto-suficiência: um fim de semana longe de casa, comendo miojo e atum em lata. E o que seria inadmissível nos dias de hoje, naquele tempo já era difícil de aceitar: a casinha do Pontal não tinha luz elétrica. Ou seja, banho, só frio. Geladeira, televisão eram apenas pequenos trastes que nunca couberam em meus sonhos de capitão de mim mesmo.
Acendíamos o lampião e não raro ficávamos jogando conversa fora e assistindo a noite chegar nos revezando na rede que cruzava o varandão, antes de irmos para o I.C.A.R.
Naquele fim de semana, logo depois que chegamos ao Pontal, o tempo fechou e às três da tarde já desabava uma chuva torrencial – o que era sinônimo de goteiras, uma vez que não havia laje cobrindo o varandão, era só telha. Saco!!!
Mais de uma vez eu, Enéas e Cozido encaramos chuva e mergulhamos no mar do I.C.A.R.. Mas naquele fim de semana estava frio e nos preparamos para ficar em casa mesmo, comendo um miojo com salsicha, brindando nossa independência com Sangue de Boi (o mais abominável vinho que alguém já bebeu) e suco de laranja (na época André era um abstêmio intragável) em copo de geléia. Driblamos o banho gelado que a falta de luz elétrica nos proporcionava e, conformados com o confinamento provocado pelo toró, já nos preparávamos para dormir às nove da noite quando a chuva arrefeceu. Agora apenas chuviscava. Catei dois baralhos, meti no bolso do casaco e lá, fomos nós, de carro – coisa que dificilmente fazia, já que o Iate Clube ficava a menos de 300 metros de casa.
Encontramos o clube vazio: tinha, entre visitantes e hóspedes, umas 20 pessoas. Não tinha viv’alma no salão de jogos – onde uma mesa de bilhar, tacos tortos e uma mesa de pingue-pongue eram muito disputadas, principalmente pelos cariocas que tinham casa de veraneio no condomínio vizinho ao clube.
A presença deles nunca era muito agradável. Eram adolescentes da Zona Norte do Rio que, longe de serem ricos, arrotavam arrogância e prepotência por passar o dia percorrendo de lancha o mar de Angra. À noite, sem ter muito o que fazer, iam para o I.C.A.R. esnobar os funcionários e eventuais duros como nós, cuja principal diversão durante o dia era irmos à praia ali no I.C.A.R. mesmo, mergulhar agarrados às correntes presas a âncoras, pescar no rio da fazenda ou de tarrafa no canal que desaguava na divisa entre o clube e o condomínio e fazer breves incursões às ilhas próximas ao continente.
Atividades de nenhuma relevância para as gatinhas queimadas de sol que não davam a menor para nós. No entanto, volta e meia nos iludíamos acreditando num flerte – nunca confirmado; sempre voltávamos para casa de mãos abanando.
Quando o clube estava cheio, limitávamo-nos a nos inscrever entre as duplas que se revezavam nas mesas de bilhar e de pingue-pongue. Não me lembro dos cariocas misturados a nós para poder jogar. Preferiam esperar um conhecido perder a jogar em parceria com algum de nós.
Como o salão estava vazio, primeiro jogamos sinuca, depois pingue-pongue. Eu nunca foi grande coisa mas André e Guerrero eram ainda piores e Chico uma nulidade em jogos que exigem alguma coordenação motora.
Em seguida, chegamos a sentar numa mesa no salão destinado a jogos de carta. Mas o tempo estava horrível, a chuva ameaçava apertar e voltamos para casa.
Eram 10 e meia da noite mas como não havia nada para fazer, fomos dormir. No quarto/sala eram só dois sofás. Quem perdia no sorteio, dormia em colchões espalhados pelo chão.
Ganhamos eu e o Guerero; Renatinho, Chico e André dormiram no chão. Em pouco tempo, após as besteiras habituais ditas por cinco adolescentes fechados num quarto sem luz, caímos em sono profundo, não sem antes ouvirmos os comentários muito pertinentes de André.
-- Puta que pariu! Tem mosquito pra caralho! – disparou André, untado de baldes de repelente como todos nós.
Apesar dos zunidos angustiantes de pernilongos, dormimos quase que imediatamente ao comentário de André.
Dia seguinte, André é o primeiro a acordar, Guerrero, eu e Chico pouco depois. Foi o André o primeiro a reparar, quando já estávamos na cozinha, prontos para o café da manhã:
-- Chico, caralho!! Cê tá com o lábio inferior inchadaço. Que maneiro!
Com ares de preocupação, Chico passou a língua no lábio e saiu correndo para o espelho do banheiro. Nós o seguimos.
-- Tá bonitaço, Chicão – disse, antes de cair na risada, junto com André e Guerrero.
Chico tivera o lábio picado por um mosquito e agora ostentava uma beiçola que o tornava ainda mais cômico.
Chico é um sujeito que traz na testa um luminoso no qual se lê, em letras garrafais: “Sou muito gente boa, pode se aproximar”. Não é um cara bonito. Tronco, pernas e braços curtos e musculosos fazem-no parecer mais baixo do que realmente é. Tem pêlos em volume semelhante ao de Tony Ramos.
Imaginem o que nós não o perturbamos com aqueles dois quilos de beiço. No entanto, antes do meio-dia, o lábio já estava desinchado.
E como a chuva dera lugar a um tempo nublado, quente e abafado pacas, fizemos um rápido périplo pelo I.C.A.R.. Fomos até o hangar, andamos pelos salões do clube e fui mostrar para os três o condomínio ao lado. Acabamos entrando na praia – que, naquela época, já tinha lodo – nadamos, comemos sanduíches frios no bar e fomos para casa. Tomamos uma ducha fria, arrumamos a bagagem e, antes das 4 da tarde, já estávamos rumo a Volta Redonda.
Ali começara o inferno do Guerrero. Mais do que na vinda, ele redobrara a atenção com a pista, molhada e escorregadia. Muito branco, cabelos louros dourados, feições finas, Guerrero ganhara o apelido de Robert Redford. Era caladão e tranqüilo.
Mas o cuidado com a direção e a conseqüente morosidade valera-lhe os achincalhes de André, Chico e Renato que o atormentaram a viagem inteira.
-- Guerrero! Guerrero! Tem uma lesma te ultrapassando pela direita. Cuidado! – advertira-o Chico, enquanto ria sua risada galopante, qual o Rabugento, o cão do Dick Vigarista, do desenho animado “Corrida maluca”.
-- Guerrero! Guerrero! Foi mal. Eu deixei cair meu chiclete na marcha. Por isso você num consegue passar a segunda – emendava André, se vergando de rir, ao lado de Chico e Renato, no banco de trás.
Eu ria de algumas piadas, mas não de todas. Minha criatividade era nenhuma. E bom samaritano, calei-me para não deixar o Guerrero ainda mais puto.
Depois de mais de uma hora ouvindo, calado, os gracejos dos dois, o motorista achou por bem responder. Mas o fez de maneira tão gutural que a frase ecoou ininteligível. O que só excitou ainda mais Chico, Renato e André, que choravam de tanto rir com o bordão emprestado da frase proferida por Guerrero. A partir da intervenção onomatopéica de nosso Robert Redford, toda frase dita pela dupla terminava com uma sucessão de vocábulos ininteligíveis ou um simulacro de cochilo. Assim foi o resto da viagem, com André e Chico enchendo o Guerrero até Volta.
O primeiro a descer em casa fui eu. O segundo foi o próprio motorista. Isso porque na altura da rodoviária, Guerrero obrigou Renato, André e Chico a desembarcarem.
-- Bem, cês me sacanearam a viagem toda, né? Então peguem um buzão para casa. Quem sabe vocês não vão mais rápido? – vingava-se.
Os três tentaram argumentar, apelando para um monte de garrafas de plástico duro que levaram para Angra. Mas Guerrero estava irredutível e começou a jogar as garrafas para fora da Brasília, junto com as malas deles.
Do retrovisor da Brasília que se afastava, Guerrero acompanhava os malabarismos de Renato, André e Chico para resgatar as muitas garrafas de plástico a salvo até a calçada. Pela primeira vez desde que saíramos de Angra, Guerrero sorria.
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