sábado, 8 de maio de 2010

O susto

O ano era 1984. O André desfrutava de seu ano sabático em Volta Redonda. Ele ficou exatos 365 dias coçando tão logo concluiu, no tempo mínimo de quatro anos, o curso de engenharia agronômica, em Viçosa, Minas.

André odiava Viçosa e passara os quatro anos da faculdade arrumando pretexto para ir para Volta Redonda. A greve que, em 1980, mobilizou milhares de alunos para o André significou dias de folga junto â família. Assim, tão logo se formou, André tratou de passar um ano sem fazer nada na casa dos pais.

Chico abandonara a UFRJ, onde cursava matemática. Foram dois anos de tola insistência. Voltou para a casa do pai e para a caixa registradora da padaria da família. Um ano trabalhando de manhã e à tarde. Até resolver fazer concurso público e estudar para valer. Ficava na padaria das 8h ao meio-dia, quando ia para casa, se trancava no quarto e estudava como um tarado.

O terceiro personagem desta história sou eu. Ex-aluno de engenharia agronômica em Viçosa, onde estudara com André, estava no terceiro ano de jornalismo numa faculdade que mais parecia uma boate na Zona Sul do Rio. Estava em Volta por causa de uma semana de recesso nos estudos.


Foi numa tarde de um dia útil que André me ligou, combinando de passar lá em casa. Chegando lá, fomos até uma loja de sucos, perto do cinema Nove de Abril. Nada tínhamos para fazer naquela tarde de sol ainda cálido de agosto, quando André propôs uma incursão abrupta.

-- E se a gente fosse na casa do Chico? São quatro e meia Se dermos sorte, pegamos ele na academia, onde ele faz aulas de jazz – André pronunciou as últimas palavras entre risos abafados.

-- Tem certeza que num vamos perder a viagem? Cê sabe onde fica a academia dele? Cê já viu ele malhando? – perguntei, vislumbrando o Chico, um sujeito cabeçudo e de ombros e pernas curtas e grossas, todo desproporcional, fazendo ginástica entre beldades de malha que abundam as academias de ginástica, seja em Volta, Rio ou Foz do Iguaçu.
Foi uma imagem medonha, dessas que, de noite, a gente baba na fronha, se urina todo e já não tem paz, parafraseando Chico Buarque.
Chicão nunca dera o mole de deixá-lo flagrar malhando. André desconfiava onde era a academia, mas certeza, certeza, ele não tinha.

Mas entre passar a tarde vagabundeando na Vila e ir de ônibus ao Aterrado e termos a chance de flagramos o “verme” – como André, volta e meia, carinhosamente, chamava Chico – malhando, preferimos a segunda hipótese.

Chegando na casa do Chico, tocamos a campainha na expectativa de ouvirmos de sua mãe ou de uma prima, que na época morava com a família – Seu Zé Alfredo era o chefe da casa, que, por sinal, era alugada do Zé Alberto, o JALB – que o Chico estava na academia. Se Chico tivesse mesmo ido malhar, ela era capaz de nos levar lá para assistir a cena. Achava nossas brincadeiras inofensivas e realmente eram.

-- Oi – dissemos em uníssimo para a prima, que foi quem atendera a porta.

-- Chico está tomando banho. Acabou de chegar da academia -- disse-nos.

André pediu silêncio a ela, com o dedo em riste sobre os lábios para em seguida lhe sussurrar:

-- Podemos esperá-lo no quarto dele? Mas não avisa a ele, não, ta?

-- Claro que podem – respondeu ela, com ares de cumplicidade, sabendo que faríamos alguma sacanagem com o primo dela.


Chico morava na parte superior de uma casa de dois andares. Havia um lance de escadas para a casa dele e em frente um terreno coberto de brita e uma garagem encimada por folhas de zinco com capacidade para quatro carros. Ao fim da escadaria, havia vasos e xaxins com antúrios, avencas, samambaias e comigo-ninguém-podes(?), uma espécie de varanda-selva ou vice-versa. Duas portas: uma para a sala de casa; outra para a cozinha.
A prima do Chico nos recebeu pela porta dos fundos. Correndo, silenciosamente, passamos pela cozinha e fomos direto para o quarto dele, o primeiro do corredor, vindo da cozinha.

Entramos no quarto vazio, e excitados com a possibilidade de sacanearmos o Chicão, batemos cabeça, rindo. Penamos em dar-lhe um susto, permanecendo atrás da porta. Isso, quando entramos. Mas imediatamente mudamos de idéia: nos escondemos nas cortinas do quarto.
Foi quando André ditou a última forma. Sussurou para mim:

-- Fica debaixo da cama. Quando ele se aproximar e estiver com os pezinhos ao alcance das suas mãos eu dou um berro e você puxa-lhes os tornozelos.

Me joguei rapidamente no chão e, em dois segundos, estava debaixo da cama de Chico, a postos para lhes chacoalhar
os calcanhares.

Ficamos pouco mais de um minuto esperando-o chegar, numa excitação de criança, rindo nervoso.

Enfim, o sujeito saiu do banho, indo tranquilamente para seu quarto. Vinha com o dorso, pouco, mas pouco mesmo, menos peludo que o do Tony Ramos. Uma toalha enrolada na cintura. Todo fresquinho.

Trancou a porta e imaginei que ia tirar a toalha. Mas com ela enrolada na cintura, veio caminhando em direção da cama. De barriga para cima, preparei-me para o berro do André. Mas eis que a meio metro da cama, Chico parou. Achei que tinha descoberto o André. Mas não. O súbito breque foi seguido de uma guinada tranquila rumo ao armário que ficava na parede oposta à cama.

Pegou bermuda e camiseta, deu uma última olhadela no espelho, como a constatar que sua (feia) imagem conservava-se intacta. Voltou para a cama e seus tornozelos ficaram ao alcance das minhas mãos, mas esperava o berro do André, que parecia adivinhar que Chico viraria de costas para a janela e se sentaria na cama. Pronto! Ele se posicionara de maneira ideal. E ainda ficara pensativo, de costas para a cama. Mais mamão que isso, era impossível.

Justo quando Chico ia sentar-se, André solta um urro irreproduzível. Quase simultaneamente ao berro, minhas mãos apertaram firmemente os tornozelos de Chico.

O cara ficou lívido; não tivesse o sangue galego de seu pai (forte como um touro, embora o Chico estivesse mais para um javali) correndo nas veias, acho que ele teria um troço. Por troço, subentendesse um ataque cardíaco, um desfalecimento (uma reação bichosa) ou um piti chiliquento (idem). Mas como bom filho de portuga, só tremeu nas bases, quietando por três ou quatro segundos – tempo mais do que suficiente para que André saísse de trás das cortinas às gargalhadas e puxasse a toalha que protegia as partes pudendas do verme. Ah, decepção!! Uma cueca crivada de ursinhos Poou evitou o grand finale daquela estratégica peça.

-- Puta que o pariu – foram as primeiras palavras de Chico depois do susto, tratando de arrancar a toalha das mãos do André. – Aposta que foi a imbecil da Lena que deixou vocês entrarem. Lena! Lena!!.

Ele berrava, já com a toalha em torno da cintura, enquanto abria a porta do quarto. Flagrou Lena e sua mãe se escangalhando de rir, imediatamente atrás da porta. E elas não viram minha participação, personificando o terrível monstro que guinchava atrás da cortina. Mas com ouvidos colados à porta e prenunciando que faríamos alguma sacanagem com o Chicão, não se assustaram quanto aquele berro horrível quebrou o silêncio da dormente casa.

-- Lena, sua idiota! Tá mancomunada com eles, né? – Chico ralhava rindo e ameaçando a prima nordestina. –- O´, que eu te boto no próximo pau-de-arara de volta pra Natal.

Deu um xispa na mãe e retornou para o quarto, onde eu e André deitávamos na cama e ligávamos a TV de 21’, sem qualquer cerimônia. Rindo, Chico admitiu que aquele susto fora um dos mais fortes que tomara em toda sua vida.

Mas nossa presença ali era raridade. Desconcertantes eram as visitas semanais feitas por Magno e Alexandre, em 1976, no 1º ano colegial.

Na época, unha-e-carne, a dupla (com um estilo de humor que ora lembrava a sofisticação do Monty Python, ora assemelhava-se à grossura encardida da série “Jackass”) invadia sempre o quarto do Chico. E fuçava o armário sem qualquer constrangimento.

Espalhavam cuecas e meias pelo quarto inteiro. Até as quatro primeiras “visitas”, Chico ainda tentava impedir que deixassem o quarto como devastado depois da passagem de um furacão. Mas já na quinta vez, resignava-se a cobrir o rosto com uma almofada do Vasco.

-- O pior é que eles não diziam palavra. Era como se fosse um trabalho que tinham que executar. Como vinham, partiam. Já na terceira vez que vieram, deixaram até de falar com a toupeira da Lena, que insistia em abrir a porta para a dupla – ria-se a valer Chicâo.

Uma investida das mais engraçadas foi quando, tacando uma a uma as cuecas no chão, Alexandre deparou-se com uma que tinha a Cruz de Malta. Alex não hesitou: botou a cueca vascaína na cabeça, acabou de espalhar as tralhas no quarto e foi-se embora, usando na cabeça a cueca do Vasco.

Coisa de maluco. Coisa do Alexandre.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Bebum, eu?

Em 1999, eu ainda andava sem ajuda de aparelho algum. Andava meio trôpego, arrastando os pés e volta e meia me amparava em paredes. Era efeito da Machado Joseph, que tornava mais penoso o meu dia-a-dia – não muito mais penoso, um tiquinho só.

Não podia passar em frente a um botequim impunemente. Os pinguços me olhavam como quem diz: “O que é isso, companheiro? Num pode beber, num bebe”. E de nada adiantava meus olhares mais irritados, que evidenciavam uma lucidez que só calava em mim.

Teve um cara que chegou a mexer comigo:

-- Tá ruim, hein, camarada?

Eu tropicava no nada, em frente a um pé-sujo na Barata Ribeiro, no caminho de casa, quando ainda morava na Nossa Senhora de Copacabana. É óbvio que nada respondi. Ia falar o que para o bebum?

-- Meu senhor, não estou alcoolizado. É que sofro de uma doença rara, uma ataxia spino-cerebelar, conhecida como Machado Joseph...

E diria isso com a voz pastosa, pois este cocô de doença também atinge a fala. Tá, o cara me entenderia e até se desculparia pelo comentário. Pois sim! Fiz a minha cara mais feia (o que não era nenhuma dificuldade), encarei o cara, tratei de buscar o prumo – ainda tinha prumo, naquela época -- e seguia adiante para ouvir outro comentário jocoso, noutro boteco mais à frente.


O prédio onde moramos até 2005 fica quase na esquina com Bolívar. Em cima de uma Bagaggio, uma loja de malas. De frente para a ruidosa Avenida Nossa
Senhora de Copacabana.

As crianças não tinham feito um ano ainda, quando, inconformados com o aluguel, resolvemos (eu e Claudia) comprar um apartamento, juntando o nosso fundo de garantia como entrada e financiando o resto a perder de vista. Bem, o apartamento da Nossa Senhora é enorme: três quartos amplos, uma sala imensa, que se subdivide em três, um cômodo grande demais para servir como corredor, mas era o que dividia quartos, banheiro, lavabo, cozinha e sala. As dependências é que são muito ruins: a área mal cabe dois secadores de roupa e o banheiro é quase inexistente. O quarto é ok, mas sem qualquer ventilação.

O que incomoda mesmo é o esporro que vem da rua. Um trânsito infernal durante o dia e a noite, batidas de carros no cruzamento de madrugada, freadas ríspidas e barulhentas de ônibus a qualquer hora, vândalos depredando tudo e todos no caminho a partir de uma da manhã...

Só fui ver o apartamento porque tinha me comprometido com o proprietário, que por telefone, me pareceu ser um cara legal. Foi honesto, falou que o apartamento era baixo (3º andar) e de frente. Não queria perder tempo com subterfúgios. Só queria lá gente que, de fato, estivesse a fim de encarar estes desconfortos. Era sábado, Claudia com o trio em casa – antes de nos mudarmos, morávamos no Leme, num apartamento maravilhoso na Roberto Dias Lopes, de fundos para uma encosta verde. Barulho? Nenhum. Éramos felizes moradores e sabíamos disso! Até chegamos a pensar em comprar ali no Leme mesmo, mas não tínhamos cacife. A prestação da Caixa ia ficar alta demais.

Bem, mas era um sábado. E era eu quem estava à caça de um apto. Combináramos o seguinte: nós dois nos revezávamos nas idas aos imóveis anunciados. Um gostando, os dois iriam checar condições. Bem, tinha acabado de olhar um apartamento insólito na Rua Barata Ribeiro (no anúncio dizia “com ampla vista para o verde”). Bah! O apartamento era colado ao túnel que transforma a Barata Ribeiro na Raul Pompéia e a “ampla vista para o verde” limitava-se aos tufos de capim e uma esquálida palmeira que insistiam em crescer em cima do túnel.
Já era uma da tarde e não queria me decepcionar mais. Quase voltei para casa, onde Claudia e os moleques, nascidos há nove meses, me esperavam para o almoço. Definitivamente, não tinha mais intenção alguma de morar numa rua movimentada e
Só fui mesmo por desencargo. Assim que toquei a campainha e me apresentei ao Marcos, filho dos donos do apartamento e responsável pela venda do imóvel,ouvi uma pessoa sentada numa mesinha, único móvel na enorme sala, o que aumentava significativamente a impressão de imensidão.
-- Eros querido – demonstrava toda a casualidade daquele encontro Ana, acho que Paula, divulgadora de uma grande gravadora e namorada do cara.

Bem, gostei do apartamento, Claudia também deu o seu aval. E graças a um despachante (de grátis não, foi pago pelo serviço) conseguimos agendar a grana que o sujeito pedia pelo apartamento dia 28 de dezembro (não tenho certeza quanto à data, sei que foi nos últimos dias de 1998). Senão, teríamos que esperar mais de um mês de recesso dos funcionários da CEF.

Bem, compramos, pintamos o apartamento e nos mudamos. Na primeira noite dormindo no novo apartamento, um calor de matar, um barulho ensurdecedor e uma convicção nada convicta no peito insone. “Eu não vou me arrepender de termos comprado a este apartamento; eu não vou me arrepender de termos comprado a este apartamento”, repetia, como um mantra, entre uma freada mais brusca de ônibus e o farol alto & buzinaço de um táxi. Algum tempo depois, instalamos um aparelho de ar-condicionado e uma janela anti-ruído – que conseguiu reduzir o barulho em 30%, 40%.

O prédio tinha quatro funcionários: o porteiro-chefe, que mandava em Deus e o mundo abaixo dele – contingente não muito vasto - outro porteiro, que ficava até as dez da noite, um faxineiro, que fazia às vezes de porteiro, e um vigia noturno, que ficava insone, sério, das dez da noite às seis da manhã do dia seguinte.

Soube do que vou lhes contar há pouco tempo, uns três, quatro meses. Mas aconteceu há, pelo menos, nove anos.
Na época, quem cozinhava e arrumava para nós era Esmeralda, uma senhora negra. Rose e, primeiro Derli, depois Priscila – mais tarde Rose ficou sozinha -- se revezavam tomando conta dos molequinhos.

Esmeralda é uma mulher “sacudida” para os seus 60 e lá vai fumaça. Fala muito e tem uma voz estridente. É uma pessoa maravilhosa, gosto demais dela. Ainda hoje ela nos visita, sempre quando Cremilda, nossa diarista de sempre (começou a fazer faxina para mim na Glória, em 1986, quando comecei a namorar a Claudia) está aqui em casa.

Sempre que chegava na portaria do prédio, me sentia aliviado. Eram breves instantes de uma paz, que sabia fugidia, mas que valia para respirar e relaxar.

Assim que eu entrasse em casa, a luta iria continuar, só mudaria o cenário da guerra: desde cedo no trabalho, não demoraria nada a ter pela frente um tufão que atendia por três nomes: Caio, Clara e João.

Então, quando cruzava a porta do prédio, vindo do trabalho, era como se todo aquele esforço que fizera para me manter equilibrado terminasse subitamente e eu pudesse relaxar. Subia o lance de escada que separava a entrada predial do elevador social quase me dissolvendo. E minha voz, já pastosa, em nada contribuía para consolidar minha figura:

- Oi, Zé. E aí, Antônio? – cumprimentava sempre informalmente o faxineiro, nordestino, e o segundo porteiro, acho que carioca, respectivamente.

Antônio era botafoguense doente – mas diferente de mim, que sou botafoguense e tenho uma doença. Ele era fanático, lia tudo nos jornais sobre o time. Sempre que eu chegava, entabulava uma conversa sobre o Fogão. Eu gostava de trocar idéias com ele, enquanto subia, trôpego, o lance de degraus.

E Zé atento à minha fala...

O horário do Arnaldo, o porteiro-chefe, era das seis da manhã às duas da tarde. Antônio pegava de duas às dez da noite, Eventualmente, muito eventualmente, eles trocavam. E também me dava bem com Arnaldo.

- E como vai a família, Arnaldo? – perguntava, repetindo o ritual – subia as escadas me dissolvendo, palavras saindo sonolentas da boca.

E Zé atento aos meus passos tortuosos...

O faxineiro pegava meio-dia e largava às oito da noite. Ou seja, só quando tinha “pescoção” no jornal – um tour de force para fechar a edição de um caderno ou determinada editoria – eu não me encontrava com ele.

Eis que num belo dia, Esmeralda chegava em casa para mais uma jornada de trabalho. E cumprimentou o Zé, que como sempre retribuiu e falava (mal) de algum condômino. Era uma briga de marido e mulher no 903 ou uma sova que o pai dera no filho mais velho no 401. Só que o assunto em questão não era outro senão eu.
-- Me explica uma coisa, d. Esmeralda: como a d. Claudia agüenta o seu Eros?
Esmeralda fez ares de avestruz, de completo desentendimento.
-- Hum??? - limitou-se a grunhir sua ignorância sobre o que Zé sugeria.
-- O cara chega mamado todo santo dia. Chega em casa trocando as pernas. E ainda tem as três crianças. Num entendo como ela num dá um pau no cara...

Foi aí que Esmeralda entendeu. E faltou pouco para ela dar uma porrada no Zé.

-- Seu infeliz. O Eros tem uma doença muito séria. Volta e meia, ele cai aqui dentro de casa – disse Esmeralda, que quanto mais nervosa, mais esganiçada falava. – E eu ainda dando papo para um imbecil como você.

Fechou a porta do elevador na cara feia e descomposta do Zé.

Hummmm!! Deve ser por isso que o cara, de repente, passou a carregar sacolas para mim em vez de apenas ficar torcendo para eu me esborrachar no chão.

Bem, eu e ele deixamos o número 960 da Nossa Senhora de Copacabana. Nunca mais o vi e imagino que ele também não mais viu este bebum que vós (hic!) escreve.

domingo, 4 de abril de 2010

T.S. 4.4

Além do despotismo com que administrou o C.I.V.R. e de sua boca exageradamente aberta, ao botar um violento chute a escanteio, guardo poucas recordações de Osvaldo. A que mais me lateja as têmporas é de seu desempenho não em “Dr. Jekill and Mr. Hide”, mas sim em “O médico e o monstro”, como a trama foi traduzida em português.
Foi este arremedo de montagem que inflou o ego do sujeito. Foi imediatamente antes de assumir a presidência do clubinho que ele encarnou o médico que descobre uma droga que o transforma no mais abominável dos homens.

Na TV Globo, o protagonista era vivido por Sérgio Cardoso, ator que morreria no mesmo ano em que o especial foi exibido, 1972. Não foi difícil para ele nos convencer quanto a sua predisposição para viver o protagonista. Era de longe o mais teatral da turma.

Engraçado...Eu não me lembro de qualquer outra montagem. Ou seja, não posso garantir que encenássemos sempre para fazer caixa. Mas lembro-me de flashes da encenação (encenação?? feita por moleques de 11, 12 anos?) de ”O médico e o monstro”.
A gente se empenhou para caramba. Montamos bancos com tábuas e formas cilíndricas de concreto. O quintal ficou cheio de gente, faturamos uma fortuna (dinheiro mais do que suficiente para comprarmos mariolas e marias-moles até num poder). Na única cena em que eu aparecia era dentro da casinha da Nora. Eu era o padre que ouvia as confissões terríveis do médico, que diferentemente do texto original, lembrava-se de todos os crimes cometidos enquanto monstro. Subitamente, quando o padre (eu) ficava aterrorizado com as barbáries cometidas e preparava-se para dar no pé, o médico, já sem conseguir controlar a bizarra transmutaçãa, avançava sobre ele (o padre,eu) e o (me) esganava.
Mas quem roubou olhares e risadas do público foi um primo de Wilkens e Nem, conhecido como Baianinho. Era imagem e semelhança do Cascão, personagem de Maurício de Souza, só que mais nanico. Como não tínhamos mulher na nossa confraria – menina alguma se interessou em fazer parte do C.I.V.R. e nunca imaginamos uma entre nós – um guri tinha que encarnar algum personagem feminino. Como achávamos ridículo se pintar e vestir de mulher, passamos o papel para o Baianinho, – que resmungou um pouco, mas aceitou. Ele -- que não era membro efetivo e só se juntava à gente nas férias -- interpretava a vítima que escapara de um ataque do médico/monstro e detonava uma caçada frenética ao protagonista.

“Montado” – nosso figurino tinha até uma peruca, gentilmente cedida por minha mãe – o moleque era ainda mais feio. Além de um batom que lhe esboçava a boca, lápis preto acentuavam seus feios traços. Usava uma blusa rosa, descombinando com sapatos altos vermelhos. Saia preta e meias-arrastão de igual cor completavam o figurino de Baianinho.
A cena -- ensaiada uma ou duas vezes – era a seguinte: o médico tentava seduzir a personagem de Baianinho. Quando enfim conseguia, cambaleava, e possuído por um ser maligno preparava-se para estrangular a “moça”, que conseguia se desvencilhar dos baços do monstro. E fugia, alertando perseguidores que no fim, davam cabo da criatura.

Assim foi no(s) ensaio(s). Nossa apresentação, marcada para às 19h, começara com uns dez minutos de atraso. Afinal, alguns de nós, atores, tínhamos que fazer às vezes de bilheteiros e lanterninhas, acomodando o público nas arquibancadas de tábua.
Na hora do ”vamo ver”, o Baianinho perdeu a peruca e aquele tufo de cabelos crespos encimava aquela figura grotesca, de batom, saia preta e meias-arrastão que esquecera a fala. Perdido em cena, ele fez uma cara de pavor e correu rumo às arquibancadas e seu desespero arrancou genuínas gargalhadas. Só que a nossa idéia era fazer um espetáculo que deixasse as meninas de cabelo em pé, medonho mesmo.

Mas quando nós, “atores”, voltamos à cena para os agradecimentos de praxe, o mais aplaudido, de longe, foi o Baianinho.


Outra recordação que guardo do Osvaldo não é propriamente dele, mas de Wilkens. Depois que Osvaldo e Paulinho foram para casa deles irreversivelmente
brigados conosco, Vito cismou que ia dar porrada nele e já no dia seguinte. Para isso, iria cercá-lo no campinho de capim em frente ao Recreio do Trabalhador, por onde Osvaldo tinha que passar rumo ao Macedo Soares. Osvaldo ia para o colégio de manhã cedo; saía de casa sete e meia, mais ou menos. Ou seja, Vito ia ter que acordar bem cedinho se quisesse dar uns catiripapos no Osvaldo.
-- Num tem problema. Acordo até de madrugada para dar um cacete naquele bostinha – dizia, convicto, Vito.
Wilkens era bem mais forte que Osvaldo. Mas era muito, muito, muito, muito mais feio. Sabe a morte? Pois ela rivalizaria em feiúra com Wilkens!! O cara tinha umas olheiras de zumbi, um nariz torto, uma boca feia, com dentes tortos e incivilizados. Era o....(pera, estou contando) sexto numa família de dez filhos. Valmir, Valdir, Valter. Wilson, Vilma, Wilkens, Aluísio, Maria de Fátima, Rosangela e Marcos. Escrevendo os nomes é que me toquei que todos até Wilkens deviam ser grafados com W. Quando o Nem chegou, os pais deviam estar de saco cheio de botar nome de filho começando com W e aí botaram os nomes que mais gostavam...a menos que...Nada, não. Por breves instantes, imaginei as certidões dos quatro últimos filhos de Seu Wilkens (sim, acho que Vito era Júnior) e dona Coisa (ela era a responsável pelas olheiras dos filhos). Waloísio, Waria de Wátima, Wosângela e Warcos. Exagero...
Mas Vito cumpria a ameaça e cedinho estava de tocaia no campinho por onde Osvaldo passava para ir para o colégio.
Quando viu Wilkens, deu sebo nas canelas; já devia prever um acerto de contas com o troglodita, que acho, também estudava de manhã, na Escola Pandiá Calógeras, que formava mão-de-obra especializada para a Companhia Siderúrgica Nacional. Vito ficou só nos xingamentos:
-- Foge não, viadim.
-- Arrombado. Vou te dar porrada.
Sabedor da tenacidade jumenta de Vito, Osvaldo dava uma volta muito maior atéo colégio, subindo a rua 31, onde ficava a igreja de Santa Cecília. O caminho era paralelo ao caminho original, só que mas cansativo e mais demorado.

Mais demorou apenas três dias para que Vito percebesse o estrategema de Osvaldo e preparar-se para, entocado perto da ponte na rua 26, quase na rua 31, surpreender Osvaldo.
O ex-presidente do C.I.V.R. vinha ressabiado e atento com tudo à sua volta. Percebeu que havia alguma coisa errada na ponte. Parou, como um antílope ao farejar o leão. Vito acreditou que poderia alcançar Osvaldo na corrida. Besteira. Osvaldo fugiu correndo de volta para casa.
Vito , mais corpulento, ficou muito atrás e teve que se contentar novamente em xingar o desafeto:
-- Covarde, bundão.
-- Osvaldicha!!
Não sei o que o Osvaldo contou ao pai, mas o Seu Lionel passou a levar – antes de ir para o Escritório Central, no coração da Vila -- e trazer Osvaldo a bordo do Simca. Como tudo era muito perto, Seu Lionel almoçava em casa com a família. Bem, Wilkens desistiu de dar um pau no Osvaldo.

Seguramente, há mais de 36 anos que não o vejo. A última notícia que tive do ex-presidente do C.I.V.R. foi que virara modelo.

domingo, 21 de março de 2010

T.S. 3.4

No encontro seguinte com Osvaldo e Paulinho, estavam todos reunidos: eu, Marcos, David, Samuel, Vito e Nem.
Pela primeira vez, eu estava batendo de frente com o Osvaldo. Questionava tudo: a TS, seu modo soberbo de tratar as pessoas, o clima de rivalidade entre os irmãos mais eu e os demais membros do C.I.V.R..
No que ponderei, uma infinidade de reclamações explodiu.
-- Você e o Paulinho são dois metidos – David, o mais franzino de todos, metia o dedo no nariz do então presidente do C.I.V.R.
-- Num sei o que viram aqui. Voltem lá para os lados da rua 24 – disse, já no auge da cizânia, Vito.
Encurralado e prestes a ser tirado na marra do grupo, Osvaldo, como era de seu feitio, dramatizou ao máximo seu gingado rumo ao cadafalso.

Entre olhares arregalados e boca exageradamente aberta, como Peter Lorre em “M., o vampiro de Düsseldorf” – jóia expressionista do cinema
alemão – Osvaldo sentia-se e demonstrava-se acuado. Ainda tentou um último apoio.

-- Depois de tudo o que fiz, vocês estão me enxotando? É isso, Eros? – Osvaldo buscava a mim, não que eu tivesse ascendência sobre os outros; mas tudo funcionava lá em casa, do C.I.V.R. às exposições de tranqueiras usadas.

-- E o que você fez, Osvaldo? – interpelava Marcos. – Nada, só trouxe briga.
Sabendo que perdera a guerra, o ex-goleiro do Topo Giggio, ainda tentou uma saída dramática. Com os olhos verdes quase pulando das órbitas, entrou no meu quintal seguido por todos agora ex-TSs.
Entrou na sede do Clube Infantil e pegou um porquinho de plástico, onde estavam todas nossas economias.
-- Então vamos jogar fora o que conseguimos juntos – disse ele, caminhando até o Jardim dos Inocentes. – A gente taca foge nas notas e no cofre, que é de plástico e joga aos ventos todas as moedas – propôs, filosoficamente, Osvaldo.
-- Uma ova!! – contestou Vito, matando a poesia que Osvaldo pretendia dar ao seu último ato como nosso líder. – Vamos é dividir o dinheiro.
Vito foi apoiado por todos nós, quer por olhares ou por exclamações.
Wilkens prontamente tomou o cofre das mãos de Osvaldo e com a ajuda de um canivete – não sei de onde surgiu – rasgou o porquinho de plástico. Deu uma mixaria para cada um de nós, Prontamente gasta com balas e chocolates pelos mais afoitos, como Muel, Nem e David – sinceramente teria tido destino mais digno fosse incinerado.

O quê fizera Osvaldo sair das imediações da rua 24 e se misturar cam moleques como nós? É que nesta fase de idade a gente costuma fazer amizade com quem mora perto. E embora moradores da mesma rua 27, ele e Paulinho vinham de outra vizinhança.

Eu, Marcos, David, Samuel, Nem, Wilkens e Cláudio – que não participou do episódio do Osvaldo, mas era do grupo – diferíamos das outras turmas por uma pseudo-organização. Pirralhos de dez, 11 anos já fazíamos exposições de raridades
.. -- como uma moeda de 1 peso chileno, de 1961 – ou insetos invocados que pegávamos em incursões feitas ao morro do Bela Vista, onde fica o melhor hotel da cidade. Lagartas multicoloridas, gafanhotos e grilos irados se juntavam a objetos raríssimos e exibíamos no meu quarto, o da frente. Cobrávamos de outras crianças, moleques mais novos ainda e meninas. Várias vezes tivemos que negociar o preço do ingresso pois o visitante achava tudo muito ruim. Aí em vez do valor ínfimo de cinco balas, cobrávamos o equivalente a um chiclete mastigado.

Embora fossem no meu quarto, as exposições eram eventos do C.I.V.R. (Clube Infantil de Volta Redonda). O clube, cujo nome foi invenção do Marcos, disparado o mais criativo e gente boa da turma. Funcionava fisicamente na casinha (casona) da minha irmã, que diferentemente das outras irmãs era, já, maravilhosa. Sempre me dei muito bem com a Norinha que, quatro anos mais velha, incentivava tudo o que eu fazia. Devia ser remorso, pois dela era a culpa d’eu carregar o Ricardo logo depois do Eros. Eros Ricardo é nome de cantor de zona! Tenho um amigo, defensor intransigente da breguice nominal, que não entendia porque não assinava o segundo nome, como faziam Bernardo Guilherme e Décio Manoel.

Voltando ao C.I.V.R., minha irmã deixava que partilhássemos da casinha desde que não atrapalhássemos ela e as amigas. Não tinha atritos. Ainda mais que o quintal

lá de casa era grande o suficiente para abrigar duas turmas, aparentemente incompatíveis, já que as amigas da minha irmã eram mais velhas que nós, membros do clube.

A tal casinha era enorme. Feita com esmero com compensados agregados. Tinha mais ou menos nove metros quadrados e uns 1,80m de altura. Não tinha divisões internas; me lembro de uma mesinha e cadeiras de criança. Tinha telhado de zinco, duas janelinhas e uma porta com chave, que prontamente sumiu – minha mãe tratou de desaparecer com ela. A porta tinha uma pequena abertura em forma de coração na altura dos olhos. Era azul. Minha irmã deixou que escrevêssemos em tinta rosa (rosa?) as inscrições do clube na entrada da casona.

Foi um pusta presente de Natal. A casa chegou rebocada por um caminhão numa noite de 24 de dezembro. Não faço idéia de como entraram com a casinha, nem como a botaram no fundo do quintal. Fui uma baita surpresa e minha irmã ficou esfuziante. Não sei se chegamos a dormir na casa, mas nós insistimos muito com nossa mãe.

Os integrantes do C.I.V.R. pagavam uma mensalidade, uma ninharia, só para termos algum dinheiro para contabilizar. E arriscávamos na música também “Com cocares na cabeça são/Os caciques tremendão”. Tudo por uma rima. É bem verdade que todos no “The tigers” (eu, Marcos, David e Cláudio Esperança) tocavam um único instrumento. O maior instrumentista era aquele que conseguisse fazer mais esporro, fosse batucando uma panela, um penico ou qualquer coisa de metal. E tínhamos uma sanha politicamente correta, que era o supra-sumo da babaquice. Uma vez, instituímos uma cota de palavrões que poderia ser proferida: quem falasse mais de 20 era banido. Houve algum problema e Muel, o mais reprimido de nós todos – seus pais eram batistas ferrenhos – danou a xingar.
-- Puta merda – xingava ele, na reta final.
-- 18...– enumerávamos.
-- Caralho.
--19...
-- Cu.
-- 20. Fechou!! Muel, você está expulso do C.I.V.R.
Ainda bem que este e outros afastamentos não duravam mais que dois dias.
Mas foi esta suposta organização, tão rara, em moleques de 11,12 anos que encantou Osvaldo. Autoritário, decidiu pleitear a presidência do C.I.V.R. depois de protagonizar uma montagem de “Dr. Jekill and Mr. Hide”, de Robert L. Stevenson, adaptada por Domingos de Oliveira para a TV Globo. Ééééé, também montávamos peças para conseguir mais alguma mixaria em caixa.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Tênis no toró 2.2

Ei!!Ei!! Dêem um rewind (aquela teclinha do DVD-player que volta a cena do filme) até “só me restou dormir mais furibundo ainda.” O Artur, testemunha ocular da história e dono de uma memória muito mais preservada que a minha, lembrou-me algo que julguei acontecer no dia seguinte.
Deram o rewind? Então vamos à versão do Artur.
Inconformado com a merda que acabara de fazer, parti em direção a um saco de goiabas e, como um louco ensandecido, comecei a sapecar as frutas nos meus inimigos de ocasião.
-- Ce tá maluco, Eritos? – berrou o Artur, cuidando de guardar o violão na capa de napa.

Sim, eu estava possesso!!! E aquela cagada de atirar o meu próprio tênis lá fora com aquele dilúvio, foi a gota d’água!!
Furibundo, mirava e acertava, à queima-roupa, nos corpos e nas cabeças de Lair, Enéas e Artur.
Meu ataque maciço durou 20 segundos, se tanto. Este foi o tempo que eles demoraram entre a surpresa e o contra-ataque.
No dia anterior catamos todas as goiabas maduras dos muitos pés que circundavam a casa. Era daquela goiaba que tem gosto e bicho. Branca, porque a nobre é a vermelha. Enchemos dois sacos de linhagem, enormes.

E eram dois sacos. Rapidamente os três lançaram mão do outro saco de goiabas. E aí tomei uma chuva dos frutos, que de tão maduros, estavam azedando. Tomei nas fuças, na cabeça, no peito esquálido, nu e suado. Tive que tirar os óculos para evitar estragos maiores. Quando estava em vias de perder o sacão de goiabas, Claudio me acudiu, levando para longge dos três o saco de goiaba e atirando contra Enéas, Lair e Artur. Rapidamente me juntei a ele e a luta das goiabas passou para o quarto, com lençóis e colchões sendo pisoteados e paredes alvejadas com os frutos. Sei que o contato corporal era inevitável e em pouco tempo Enéas e Lair estavam me imobilizando.
-- Calma, calma – gritava Enéas, apaziguador, notando que eu realmente perdera as estribeiras.
-- Calma? Como você quer que eu fique calmo? Vocês me enchem o saco, não me deixam dormir e a casa ainda é invadida por um penetra – a última frase disse olhando para o Lair.

Pronto. Melei a situação tanto quanto a guerra de goiabas. A coisa ficara séria. Enéas e Lair imediatamente me soltaram e o último estampido daquela guerra foi uma goiaba atirada pelo Cláudio que resvalou na cabeça do Enéas antes de se despedaçar em cima do sofá. Obtida através de um decreto de guerra, a paz se fez presente instantaneamente. Iluminados pela fraca luz do lampião, arrumamos nossas cantos de dormir em silêncio. Imundos, colchões, sofá e lençóis estavam coalhados e grãos de goiaba. Fomos tomar banho de chuva para limparmos um pouco dos restos de goiaba nas cabeças, e o tantão de suor com os quais encharcávamos os peitos nus. Acho que Artur e Enéas preferiram tomar uma ducha no banheiro. Não havia diferença: a água era igualmente gélida. Calados tomamos banho, calados fomos dormir. Somente o mal-estar pesava sobre nossas cabeças. Ainda imagino alguém cuspindo sementes de goiaba no breu.


O dia amanheceu esplendoroso. O quarto exalava a cheiro de goiaba; havia restos de goiaba em todo canto. As paredes, chapiscadas e brancas, estavam imundas, assim como o chão do quarto e da varanda. Tão logo tomamos café, Lair pegou as coisas dele, se despediu e partiu pela curta estradinha de terra até a Rio-Santos, que passava em frente a meia-água. Ia pegar o Pontal-Angra, de onde pegaria um ônibus para Volta Redonda.
Fui atrás ele, óbvio.
-- Lair, Lair – berrei.
Ele parou e virando, me esperou chegar até ele.
-- Cara, me desculpe pelo que falei ontem – comecei. – Tava puto com a zona que vocês estavam fazendo e disse besteira. Me perdoa.
Lair, um cabeludo, que hoje imagino imagem e semelhança do pai, careca e com um bigode colossal na época, foi polido:
--Não tem nada que pedir desculpas, Eros. Tá tudo bem. Tchau.

Lair deu uns quatro passos em direção à estrada antes de ouvir meu pedido.
-- Se está tudo bem, então porque você não fica? O fim de semana vai dar um praião... – era o convite que acho que teria que ser feito por mim ao novo integrante da trupe.
Lair cedeu e voltamos pelo caminho de terra até a casinha no Pontal.
Chegando lá rindo, fui dar buscar meu par de tênis que jazia numa poça perto do muro. Completamente esbagaçado. Tinha manchas daquela terra marrom e infértil com que aterraram o terreno onde foi erguida a casa. Eu o mostrei para a rapaziada, rindo, e segui para o tanque, onde o lavei.

Apesar do sol cáustico e convidativo, só fomos para a praia poluída por óleo e gasolina de barcos do hangar do I.C.A.R. de tarde. Passamos a manhã limpando a sala e a varanda das sementes e dos bichos de goiaba.
Cacete!! Tinha resto de goiaba até no teto. O cheiro de azedo foi atenuado com litros de Pinho Sol usados para limpar chão, móveis, paredes e bibelôs atingidos na guerra goiabal. E foi uma manhã alegre, descontraída, cheia de risadas e gozações de parte à parte, sendo eu o alvo preferido e óbvio da rapaziada.
Lá pelas 15h, fomos correndo para o clube, retornando para casa quase às 18h. Depois de um banho gelado e embebidos de litros de repelente, fomos degustar um maravilhoso miojo com molho de sardinha e tomates e matamos o resto do garrafão de Sangue de Boi, o pior vinho que já bebi na vida. O bom humor voltava a imperar e voltamos a ser um grupo.
Na mesa da cozinha, antes de sentarmos para o último jantar na meia-água daquele verão, alguém botara um copo de geléia improvisado como vaso de flor. Comovente e realmente reconciliador.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

ts.2.4

A T.S. foi uma das últimas iniciativas de Osvaldo como nosso líder. Eram muito ridículos nossos ensaios de vandalismo. Algumas vezes, lá pelas oito da noite, executávamos um bailado estranho às margens do riacho que, idilicamente, separava (ainda separa) a 27 da rua 31.

O riacho ficava a uns seis metros abaixo do nível das ruas, que só tinham um lado de casas. Em frente a elas havia um jardim gramado, com eventuais canteiros de plantas que adornavam o longo jardim – uns 2.000 metros quadrados.
Até as vertentes do rio eram gramadas. Às margens dos dois vórtices, árvores grandes (acácias) separadas a cada 10 metros, distância igual para românticos banquinhos de madeira.

De tempos em tempos, quando cruzava com ruas como a 33 e a 26, o regato corria sobre pontes. A única pinguela que existia além das trafegadas por carros, ficava em frente à minha casa, e mais tarde, uns cinco ou seis anos depois, nos a chamávamos de “Ponte das Anharips”-- Piranha + s, no dialeto popular “de-trás-para-frente”. Casaizinhos se apertavam até num poder nos bancos à noite, sob a luz bruxuleante de postes que acendiam pontualmente às 6 e meia. A área foi, por um muito breve instante, apropriadamente batizada pela Prefeitura de “Jardim dos Inocentes”. Quando os casais descobriram o potencial, digamos, “romântico” do lugar, o título virou ironia.

E os casais de namorados viraram o nosso alvo preferencial em potencial, sempre em potencial. O inusitado bailado que praticamos algumas vezes consistia em simularmos ataques com sacos de água em casais agarrados nos banquinhos. Um descia para o vale onde ficava o rio ao lado da pontezinha, munido de quatro sacos d’água, até o degrau mais alto e amplo dos três que margeavam diretamente o riacho, e abastecia moleques diretamente postados em frente aos bancos que tinham namorados. Ia o mais rápido e furtivamente possível. Treinamos esta ação umas quatro vezes, sem efetivamente molharmos um casal sequer.
-- Uai, se já estamos lá embaixo com os sacos d’água porque simplesmente não os tacamos nos namoradinhos? – perguntava, entre rude e óbvio, Vito, o Wilkens.
-- Premeditação – responderia, com ar cansado, Osvaldo, tivéssemos este vocábulo em nosso limitado léxico de criança.

Pois toda graça vinha do ataque-surpresa e da ação coordenada.

Assim, o único ato de sacanagem do qual participei, junto com o Paulinho Cabeção, foi uma pedra grande, meio-tijolo, atirada contra a porta da última casa do lado ímpar da rua 20.

Eu e Paulinho atrás da árvore a uns dez metros da entrada da casa de uma senhora, que assustada com o barulhão, abriu a porta para checar o que tinha acontecido. Entre assustada e atônita com o pedrão e a tintura da porta agredida pela mesma, resignou-se a balançar a cabeça, desaprovando aquela ação de vândalos. Antes de entrar, pegou no colo uma criança que imergiu da sala em seu encalço.
Assim que a mulher fechou a porta, Paulinho deu um soco na outra mão estendida e aberta
e caprichou no berro surdo:
--Yes! (Não, não, não. Naquela época não havia esta expressão e Paulinho Cabeção estava longe de ser “um filósofo de depois de amamhã”, como acreditava, muito apropriadamente, Niestzche em vida). Mas Paulinho ficou exultante com nosso ato de guerrilha urbana.

Já eu, não. Me arrependi antes mesmo do pedregulho tocar a porta da mãe do menininho.


Eu tinha alma de coroinha, embora cedo, começasse a simpatizar com o espiritismo. Tinha uma necessidade quase mórbida de partilhar com os outros os meus erros. Assim, enquanto Paulinho deve ter repousado seu cabeção no travesseiro e dormido o sono dos justos, minha noite de sono foi horrível. Demorei a dormir,dormi pouco e quando despertei, estava tomada a decisão: ia me desculpar pelo calhau na porta.

Quando comuniquei isso para a rapaziada, foi um “Deus nos acuda”.
-- Caralho!! Não faz isso não. Você vai botar toda a nossa operação em risco – argumentou Paulinho, com anuência vibrante de Osvaldo.

-- Que operação? Que risco? – perguntava eu o óbvio.

Paulinho Cabeção mais parecia um fósforo por acender. Era um moleque baixo, magricela e cabeludo, um cabelo liso, cortado na altura dos ombros. Acho que muito de sua notória cabeça, que lhe rendera o apelido, devia-se às suas mechas. Tinha hábitos estranhos: conversava com formigas e dizia ter poder sobre elas. Puras ilusão ou cascata.
--- Vamos, minha nêga. Vá até aquela árvore e me traga aquele raminho – ordenava Paulinho a uma formiga preta, grande, com ferrão e bunda amarela, dona de uma picada doída pra caramba, equilibrando-a sobre o dedo indicador.
Geralmente a formiga ia para a árvore, se escapasse do ataque furioso de Paulinho, em revide a uma ferroada tão logo caminhasse o primeiro centímetro de dedo.
Como ele vivia com os dedos inchados devido à desobediência dos insetos, acho que ele acreditava ter mesmo algum poder sobre os bichos. Ou então era um noviço masoquista.

Sei que estava resoluto em minha decisão (quase um ato religioso) apesar das muitas advertências em contrário, argumentadas por Paulinho e Osvaldo. O resto da turma só achava ridícula e desproporcional minha obsessão em esclarecer o episódio com a dona da casa.
-- Não machucou ninguém – afirmava, inapelavelmente, Marcos.

Mas minha decisão já estava tomada. Foi falar com a dona da última casa do lado ímpar da 20.

Constrangedor. Eu me desculpava por um acidente que não houve, mas que poderia ter havido. A mulher, que trazia o filho no colo quando atendeu a campainha, demorou um pouco a entender o que eu queria, tamanhas eram as hesitações e o gagejar em meu discurso.
Isentei o Paulinho de qualquer culpa, isto é, não toquei no nome dele. Tomei para mim toda a responsabilidade pelo “terrível” ato terrorista. E aí ela me fez uma pergunta que não tinha resposta e significou o início da derrocada do império osvaldino: “Por quê”?

Saí da casa da mulher em paz com minha crônica culpa judaica (?)-cristã. Mas aquela dúvida me latejava na mente. Por quê? Por quê? Por quê aceitávamos aquele julgo idiota e --- embora nunca posto à prova – maligno do Osvaldo? Seria mais justo fazer a pergunta no singular. Era eu quem dava suporte à ascensão do Osvaldo. Afinal, era no quintal lá de casa que ficava a enorme casa de boneca da minha irmã, sede do Clube Infantil de Volta Redonda (C.I. V.R.), sempre gerenciado, talvez sem objetivos, mas sempre com gentileza. Na administração do Osvaldo, a volúpia tomou forma, assim como a ambição. Desavenças começaram a brotar no grupo, unido em tudo, principalmente nas tolices. E a T.S., que nos lançaria num mundo completamente diverso do nosso, naufragara antes de qualquer ação maquiavélica.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

TS 1.4

T.S. . Turma de Sacanagem. A gente nunca tinha ouvido falar, mas pareceu a todos uma idéia promissora. Quem veio com esta história foi o Osvaldo, irmão mais velho do Paulinho Cabeção, quando, “alemães” que eram, se infiltraram na nossa turma. Osvaldo, com minha ajuda – culpa já assumida e prontamente desculpada – chegou a tocar o apito de líder. Por pouco tempo, graças a Deus.


Uma T.S. seria um bando de moleques – nós, bocós por completo, sem o menor traquejo em investidas agressivas -- concentrado em ações terroristas a namorados, cachorros, vizinhos mais velhos e o que mais pudesse se tornar um alvo em potencial. E não haveria de ter alvos, prometia, exagerando o tom, o Osvaldo.

Nós, os bocós, éramos sete pacíficos garotos (tínhamos entre 11 e 14 anos): eu (morador da casa 30 da rua 27), Samuel (da casa 24), os irmãos Marco e David (do número 20) e mais três guris da rua 20, uma das quatro transversais da 27, que separava meu quarteirão do das casas do Muel e de Marco & David. Minto: na época do Osvaldo, estávamos brigados com o Cláudio Esperança. Os únicos da 20 a integrarem nossa turma era o Vito (o nome verdadeiro deve ser o mesmo de um clássico da literatura eslava, Wilkens) e o Nem (apelido mais plausível para um simplório Aloísio).

Irmãos com uns quatro anos de diferença, Osvaldo e Paulinho moravam na mesma 27. A exatas quatro casas e mais uma ruazinha transversal, a 22, da minha. Um continente de distância, hábitos e língua diferentes – não, não, língua não -- em nossa imaginação de criança.

Não me lembro do ponto de contato. Acho que o Osvaldo queria agarrar num time - desde que o Topo Gigio, mítico time no qual ele era goleiro, e Paulinho, reserva absoluto, pois era um zagueiro muito do perna-de-pau, fora extinto ele não mais jogara. E via potencial em nosso time, os Falcões – plágio descarado do Águia, equipe que só reunia gente da rua 22. O Águia media forças com o Topo Gigio pela hegemonia dos campinhos que pipocavam na 27, às margens de um afluente do rio Brandão.
Osvaldo era bom goleiro, embora se achasse muito melhor do que realmente era. Muito exagerado, tinha como hábito de abrir excessivamente a boca, como a salientar a importância do fato que protagonizara ou testemunhara. Valera-se de ser mais velho e suficientemente maduro para assumir o controle de nossa turma – que tinha dois moleques de 10 anos, David e Muel; eu tinha 11; e Marcos e Nem, 12. Vito ou Wilkens era da idade do Osvaldo, 14 para 15, mas intelecto e sensibilidade não eram nem Tico nem Teco na cachola dele.

Um exemplo da sagacidade do brutamontes. Certa vez, aflita com o destino das borboletas implacavelmente caçadas por Wilkens, Nora, minha irmã, pediu, chorosa:
-- Num mata elas não, Vito.
-- Num tô matando não, Norinha – tranqüilizou-a o toupeira, completando a sentença: -- Só estou arrancando as cabecinhas.
Nosso time tinha dois caras bons de bola: eu e o Nem, que éramos magros de ruim (eu ainda sou); o Vito, truculento e vigoroso zagueiro – do pescoço para baixo, bordoada não era falta; Marquinhos, David, Muel e Paulinho eram uma mulambada só.
Mas o Osvaldo viu em nós mais do que apenas um bando que jogava bola.