terça-feira, 28 de agosto de 2012

basquete e carecas 1.2

28 de agosto de 1972. Uma segunda-feira, primeiro dia útil da semana. Foi, certamente, a mais abrangente experiência esportiva de Volta Redonda. Afinal, cerca de 200 adolescentes acorreram ao ginásio do Recreio dos Trabalhadores, às 19h, acolhendo convocação para um curso de basquete. A quadra do Recreio era bacana, de chão de madeira e as tabelas em vidro temperado importadas dos EUA eram móveis – a quadra, polivalente, abrigava também jogos de vôlei e futebol de salão – com as bases das estruturas de ferro das tabelas totalmente acolchoadas. No entanto, por mais aparelhado que fosse o centro – além dos limites da quadra, havia duas cestas, uma em cada canto – estava longe de comportar tanta gente. A ideia era que todas segundas e quartas-feiras, os inscritos - ééé...tinha que se inscrever para participar da oficina, vocábulo que não existia na época, um modismo muito mais recente – chegaram atraídos por uma folha mimeografada (num sei explicar esta vetusta técnica) em que um molequinho desenhado batia bola contra o chão. Ao lado, em letras garrafais lia-se: “Venha aprender a jogar basquete”. Nas frases logo abaixo, em letras menores, constava onde se inscrever, o último dia de inscrição (acho que era a sexta-feira imediatamente anterior ao dia 28), os dias e horários das aulas (segundas e quartas, das 19h às 21h), faixa etária (dos 10 anos aos 16) e o responsável pelo curso: professor Paulo Camargo. Em 1972, o golpe militar de 1964 galopava célere, e na maré golpista, só cabiam superlativos como “Brasil grande” ou eufemismos que justificassem a prática da tortura, “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Mas tinha que amar segundo os militares: sôfrega e tacanhamente; de acordo com os milicos, não havia lugar para outro tipo de amor. Nesta de que vivíamos em tempos de “milagre econômico” e oportunidades (a seleção brasileira de futebol era tricampeã e a Taça Jules Rimet repousava segura -- quá, quá, quá -- e definitivamente em solo brasileiro) não combinava com eventos menores, principalmente em cidades de segurança nacional. Municípios de segurança nacional eram aqueles considerados estratégicos para o país. E Volta Redonda, por sediar a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), gigante estatal que chegou a empregar 22 mil funcionários, era considerada como ponto estratégico pelos militares (hoje, privatizada, abriga menos de oito mil profissionais). Apesar da maciça distribuição de folhetos -- principalmente entre a molecada que fazia as colônias de férias promovidas pelo Recreio do Trabalhador para os filhos dos operários da CSN – Paulinho tomou um susto quando, na tarde do dia 28, soube do número de gente interessada em aprender a jogar basquete. Julgava reunir naquele primeiro dia, 30, no máximo 40, garotos – todos sabedores dos fundamentos do esporte, adquiridos em aulas dadas por um ícone do basquete de Volta Redonda, Libiano Abiati. Então com uns 50 anos, aquele filho de italianos, havia integrado um ótimo time formado no Voltaço, em meados dos anos 50, quando manteve uma longa invencibilidade sobre times da capital e do interior. Reproduzo esta informação como verdade inquestionável, mas sequer chequei a veracidade desta notícia. Umuarama, clube que ficava na Vila Santa Cecília. As quadras eram frequentadas pela molecada abastada do Laranjal e uns moradores da Vila. Naquela época, um jogador, nascido em Volta Redonda, Jorge Maravilha, saíra dos treinos de Libiano para ser pivô titular do Flamengo. De modos que outros jogadores, independentemente de idade, sonhavam trilhar os passos de Jorjão e jogar num clube do Rio. Este era o sonho de 15, estourando 20 adultos e adolescentes que treinavam no Umuarama, então clube da elite volta-redondense. Assim, diante de um Paulinho ao mesmo tempo radiante e encafifado (como lidaria com todo aquele contingente de alunos sozinho?). ocorreu o primeiro treino. Paulinho queria ver o potencial dos alunos que tinha nas mãos. Fizeram-se filas e mais filas para trotar quicando a bola o mais rapidamente possível e também de arremessos à curtíssima distância, usando-se o quadrado logo acima da cesta como referência. Assim foi durante as duas primeiras semanas. Na terceira semana, levou para auxiliá-lo um garotão engraçadíssimo chamado Bitinho, apelido de Herbert. Tinha uns 16 anos, era dentuço e estava longe de ser um exímio jogador de basquete. Era um esforçado armador, pois tinha, no máximo, 1,75m, em tempos em que 2 metros era uma pusta altura, digna de pivôs – os caras mais altos do time, que jogam dentro do garrafão, debaixo da cesta. Apesar da idade, o tinha visto em ação há pouco mais de dois meses, defendendo as cores do Macedo Soares, colégio onde estudei os antigos Primeiro e Segundo Graus – hoje metade do fundamental e todo o ensino médio -- no qual entrei no mesmo ano em que começara o curso de basquete, 1972. Em meio àquele ginásio lotado – o do Recreio do Trabalhador -- lembro-me apenas de Bitinho e mais três jogadores no jogo final contra a Fevre (Fundação Educacional de Volta Redonda, um colégio público): Paulo Frederico, vulgo Paulo Meleca, e Anísio, do Macedo, e Enoch, da Fevre (que mais tarde viria a ser chamado de Inhoque, pelo pessoal do basquete. Lembro-me do Paulo não sei por qual motivo; do Anísio, recordo-me de ser o mais alto em quadra e ser um dos piores, perdendo cestas inacreditáveis ou tomando tocos inadmissíveis prum cara de mais de 2 metros. De Enoch, lembro-me de ter sido o grande herói da vitória da Fevre. Fez pontos de longe (ainda não havia a linha dos três pontos) e com infiltrações fulminantes no garrafão do Macedo. Do Bitinho jogador, ficou a impressão de um sujeito raçudo, mas limitado, incapaz de parar o ala Enoch quando este passou a ser marcado homem-a-homem pelo armador do Macedo. Bem, dividida, a platéia viu a Fevre sagrar-se campeã. Possivelmente também estavam no time do Macedo, Claudio e Giuliano, filhos de Abiati. Mas Bitinho, como professor de educação física (é verdade que ainda sonhava cursar faculdade) e como auxiliar-técnico do Paulo Camargo estava longe de ser apenas esforçado. Ele e Paulinho – este sim, um bom armador, embora ostentasse perto de 2m – bolavam esquemas de jogo prontamente assimilado pelos times comandados pela dupla nos treinos. Mas como “treino é treino, jogo é jogo”, muitas vezes o esquema não era executado pelas equipes dirigidas por Paulinho e Bitinho, quer por nervosismo, quer por incapacidade tática/técnica no calor de uma disputa. É claro que uma oficina com 200 inscritos não durou muito tempo. O número de participantes foi minguando paulatinamente, até que passados uns dois meses, ficaram uns 40 participantes. Nestes dois meses, quem insistiu e ficou, viu coisas engraçadas como gêmeos idênticos que só se diferenciavam pela ordem dos nomes: um era Márcio Ricardo; o outro, Ricardo Márcio. Sei que os moleques moravam longe à beça, mobilizavam sempre uma tia para levá-los e os gêmeos eram ruins pra cacete. Não sabiam xongas de basquete, nem o basquete os queria por perto. Antes do primeiro mês de treinos, largaram o esporte. Para mim, além de um bom condicionamento físico – tinha treino em que a parte física ocupava 40% das duas horas de apronto – o basquete não me servira para muita coisa não. Eu era um tampinha e tampinha continuei. E não era habilidoso o suficiente para postular uma vaga entre os melhores. Ainda passei quatro anos treinando basquete. Até desistir e começar a treinar futebol de salão no mesmo Recreio: só que era titular inconteste. De bom mesmo no basquete foi que ficara conhecendo André e Enéas, quatro anos antes de estudarmos juntos. Amigos inseparáveis, viviam bolando “estratégias” para escapar do “batismo”, ritual sexista e idiota, liderado, na maioria das vezes, pelos mais zemulas do grupo. E sempre driblavam os mais velhos, Era um ritual pelo qual marinheiros de primeira viagem tinham obrigados a passar, mas como André e Éneas sempre escapavam, eram sempre considerados “calouros” e potenciais vítimas dos celerados do basquete do Recreio. O André era bom de bola – tanto que integrou a seleção estadual apenas dois meses depois de iniciado o curso de basquete. Era para defender a seleção do antigo Estado do Rio. Lembrem-se que a disputa foi em 1972, anterior, portanto, à fusão da cidade do Rio de Janeiro com o Estado do Rio, que ocorreu em 1974. O torneio reuniu seleções de quase todos os estados e territórios da federação. Não me lembro de termos ido bem. Nem mal. Sei que a seleção do Estado do Rio era a união de seis jogadores de minibasquete de cada uma das duas cidades rivais pela hegemonia do basquete no estado: Volta Redonda e Nova Friburgo. Os seis de Volta Redonda: André Fernão (meu amigaço até hoje), Luís Gílson, Luizinho Vianna e Lair. Estes quatro, tenho certeza. Tinha o quinto e o sexto jogadores. Claudinho José (vítima de um ataque cardíaco fulminante alguns anos atrás), Fabinho Malavasi (ex-comentarista da NBA pelo canal por assinatura ESPN), Cláudio Meleca (protagonista do post anterior) e o Rodolfo “Véia” (embora fosse um ou dois anos mais velho que a maioria de nós) são os mais cotados pela minha memória. Lembro-me de ter viajado apenas uma vez. Foi para disputar um amistoso em Nova Iguaçu, contra o time local. O Iguaçu Basquete Clube nos deu uma chinelada, num placar incrivelmente baixo, mesmo para um amistoso de minibasquete: 28 a 12. O placar faz jus à mediocridade da pelada. Não me lembro de termos atuado sequer com um time misto; só tinha reservas, uma equipe horrível.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

açúcar e meleca

Acho que foi numa tarde de 1973. Foi depois de ter início um curso de basquete de proporções épicas em Volta Redonda. No ginásio do Recreio do Trabalhador, o professor Paulo Camargo reuniu, na noite de 28 de agosto de 1972, cerca de 200 moleques desejosos de serem os novos Carioquinhas, Hélios Rubens e Ubiratãs do basquete nacional.

Uma ideia genial, que permitiria peneirar e burilar jovens talentos. Uma hora dessas falo mais do projeto de Paulinho Camargo.

Tínhamos acabado de sair de um treino de basquete, no Recreio, e eu, Éneas e André íamos céleres para a Padaria Central, na Vila. Quando entramos na rua 27, fomos alcançados pelo Cláudio Fernando, vulgo Claudinho Meleca, apelido pegajoso que herdara dos irmãos mais velhos Marco e Paulo – nunca descobri o porque da alcunha.
E embora, dois anos mais novo que eu e André, e há três do Enéas, Claudio era mais alto que nós três.

-- Aonde vocês vão com tanta pressa? – perguntou-nos Claudinho.
Visivelmente a contragosto, André revelou nossos planos. Fez isso contrariado porque Claudinho Meleca era um pidão da porra. Filava lanches de quem conhecia e até de quem não conhecia. Para se ter uma ideia da saciedade dele, durante um torneio na casa de nosso mais renhido rival no interior do estado, Nova Friburgo, ganhou o apelido de “Biféfero”, pela voracidade com que consumia bifes durante as refeições.
-- Oba, vou nessa – afirmou Claudinho, sem esperar qualquer convite.

Em cinco minutos estávamos diante dos doces guarnecidos por vidro. Bombas, de creme e chocolate, doces de creme com maçã, brigadeiros, e toda sorte de guloseimas que tanto fascinavam nosso inexperiente e nada sofisticado paladar. Eu pedi uma coca e um pão-de-queijo de dimensões colossais; André, sovina que só, falou que estava com a pança cheia de água gelada, sorvida num dos bebedouros do Recreio, para não pedir e gastar vintém algum. Já o Enéas, que recebera o presuntoso (sic) apelido de Banha, muito mais pelos seus hábitos alimentares do que pela gordura em si, pediu uma coca e um mil folhas. Claudinho? Nem bem tive em mãos o pão-de-queijo, enorme e vazio de recheio, e o caboclo já pedira um “tasco”, já bebendo um bom gole de meu ainda invicto refrigerante. Pedaço de pão de queijo comido, Cláudio Fernando partiu célere em busca de outra vítima. O Éneas tinha comido um micro pedaço de seu doce, quando ouviu de Claudinho:

-- Enéas, me dá um pedacinho deste mil-folhas. Parece estar uma delícia.

Enéas foi fundo na canela de Claudinho.
-- Puta merda, Claudinho. Cê só veio com a gente para filar. Que saco – disse Juninho, não se negando, no entanto, a dar uma prova para ele.

Só que Enéas levou o doce até a boca de Claudinho, sem tirar a mão do lanche. No que Cláudio Fernando trincou os dentes, mordendo o também grande mil-folhas da padaria, Enéas soprou todo aquele açúcar de confeiteiro que cobre o doce no rosto do pidão. Eu, André, Enéas e a moça que nos serviu desatamos a rir. Claudinho parecia o negativo de Al Jonson (ator branco que pintara o rosto de negro para protagonizar o primeiro filme falado da história, “O cantor de jazz”, na racista década de 20 do século passado). Fez beicinho, fez cara de puto, limpou o rosto com vários guardanapos, e foi-se.

Ainda demos muitas gargalhadas (que hoje soam ainda mais justas, ao menos para mim).
Teve um tempo -- a duração pelo afã de um álbum de figurinhas -- em que toda tarde nos reuníamos eu, Claudinho Meleca e Gustavo, um cara que morava a três casas de mim, na esquina da rua 22, para jogar bafo. E eu era tão desligado, tão imbecil, que sequer atinava que raramente era o primeiro a tentar virar o bolo de figurinhas. Por causa de um velho truque deles, quase sempre ficava como o segundo ou o terceiro. O esquema era tão simples quanto funcional; como éramos três, decidíamos a ordem de jogar no zerinho-ou-um. O Melequinha (aos irmãos mais velhos não cabiam diminutivo) e o Gustavo sempre botavam números diferentes: enquanto Claudinho botava zero, Gustavo sacava um; e vice-versa, de acordo com sinais. Assim, só cabia ao paspalho aqui decidir quem seria o primeiro: Cláudio ou Gustavo.

A única parte lícita do jogo era o par-ou-ímpar para escapar de ser o último a bater. Vez por outra “deixavam” de lado a falcatrua e eu conseguia ser o primeiro. Mas só faziam isso para que não ficasse evidente demais o golpe deles.

Puras perdas de tempo e posição. Crédulo como eu era, nunca acreditaria que me passavam a perna tão descaradamente assim. Sempre voltava da casa do Gustavo “raspelado” – sem figurinha alguma para contar história. Mas minha crença no ser humano seguia inabalável. Bons tempos.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

O registro de um porre

Zamba, vulgo Gilberto, é o terceiro na linha sucessória dos Martins de Andrade (Roxane e André são mais velhos) que têm, ao todo, seis filhos.

Como omite a origem do apelido, chegou-se a pensar em influência africana. Isso não fosse Zamba um cara de olhos azuis que quando criança tinha os cabelos quase brancos de tão louros.

Um ano e meio mais novo que o André, um dos meus mais queridos amigos, em 1977 estava no primeiro ano do Segundo Grau (atual Ensino Médio). Teve um período no qual Gilberto tomava todas no sábado à noite, voltava para casa num estado lastimável e tudo negava no almoço em família no dia seguinte.
-- Mas que porre cê tomou ontem, hein, seu Gilberto? – começava o Seu André, patriarca dos Martins de Andrade e sósia do saudoso e magnífico ator Peter Sellers.
-- Que porre, Bola? Já vai inventar história... _ retorquia Zamba, com sua voz tronitoante, a alguns decibéis do grito, entornando o copo de suco de maracujá da Renata, outra irmã, sobre a toalha branca.
Bola era um dos muitos apelidos dados pelos filhos ao pai. Seu André foi diretor da Companhia Siderúrgica Nacional (C.S.N.) e era um paizão, um cara muito legal – hoje é um avô coruja que só.
Todo almoço de domingo era isso: André e o pai contando do estado irreconhecível que Zamba chegava das noitadas de sábado, com o dito refutando tudo veementemente. Era a grande atração dos almoços de domingo na imensa e aconchegante casa, projeto do seu André, engenheiro formado pelo I.T.A., que acompanhou cada parede sendo erguida.

A casa fica no ponto mais alto do Jardim Amália, bairro um pouco afastado da rua 40, na Vila Santa Cecília, onde os Martins de Andrade moravam antes. Olhando por
cima do muro que circunda a piscina, encontrava-se a explicação para tão óbvio nome dado à Volta Redonda. Quase em frente da casa, há uns 200 metros, via-se o rio dar uma volta redonda – não sabia, mas é raro um rio dar voltas sobre o próprio leito. Ou seja, o nome da cidade não é tão pleonástico assim.

Pois André e o patriarca armaram de desmascarar Zamba em pleno almoço dominical. E iam fazê-lo naquele sábado mesmo.

Por volta de duas da manhã, como toda semana, Gilberto só faltava ganir. Barry, melhor amigo do Zamba – bêbado que nem um gambá -- dera carona para ele.

André, da sua janela de seu quarto no segundo andar da bela casa, avisou o Dedão – outro apelido que os filhos usavam.

- Ele chegou, pai – disse, fechando rapidamente a janela.
Como de costume, seu André saíra para a varanda de casa. Ele não dormia antes que todos estivessem em casa. Zamba abriu e trancou o portão fazendo um barulhão desmesurado.
- E então, seu Gilberto? Mais uma vez, está bêbado – disse o patriarca, recebendo o filho na varanda e evitando que ele entrasse em casa, já o levando para a imensa área de serviço, espécie de primeiro andar da maravilhosa casa, onde guardavam os carros, havia uma biblioteca, uma lavanderia, um banheiro para atender quem fosse à piscina e um cômodo com duas camas. Que era para onde Seu André levava Zamba, todo sábado, para evitar que o esporro federal que o filho fazia incomodasse quem dormia.


Naquele sábado, Zamba tinha bebido todas e mais algumas. Depois de poucos minutos, André levou o gravador até o Zamba – no domingo, Gilberto acordava geralmente 11 horas, meio-dia.

Devidamente ligado, o gravador registrava um diálogo bizarro, povoado de interrupções quando como Zamba ameaçava vomitar ou quando o carregavam para o banheiro para um indispensável banho frio antes do sono.
E o Gilberto é um cara grande e forte e distribuía pontapés e mãozadas quando não o deixavam dormir com a roupa do corpo e cismavam de obrigá-lo a tomar banho e botar o pijama. Bem, gravaram mais de 50 minutos. Quando, enfim, depositaram Gilberto semiconsciente em sua cama, os dois ergueram a fita fosse um troféu.


-- Caramba!! Amanhã, ou melhor, hoje será um dia glorioso – vibrava como uma criança Seu André.

André deu um beijo de boa noite em Seu André e poucos minutos mais tarde estava dormindo a sono solto.

Dia seguinte surge esplendoroso. Um céu azul sem nuvens – os únicos vestígios no ar era a fumaça expelida pelo alto-forno, a vários quilômetros de distância da casa dos Martins de Andrade. Assim logo depois do café da manhã, por volta de 8 e meia -- do qual só não participou Zamba, por motivos óbvios – foi todo mundo pra piscina, com exceção da matriarca, d. Leila, que não era muito chegada à piscina. D. Leila, de quem quatro dos filhos herdaram os belíssimos olhos – de um azul profundo, quase abissal – conservava, obviamente com o peso da idade, a beleza que fez dela Miss São José dos Campos nos anos 50. Depois de folhear o jornal, se enfurnara na cozinha com sua fiel escudeira, Gracinda.

Zamba não despertara muito tarde, não. Dez e meia estava de pé. Só que diferentemente dos irmãos -- Roxane, André, Renata e os gêmeos Simone e Frederico – e do pai, que se esbaldavam n’água, preferia a fresca e ampla sala na tentativa de minar a dor de cabeça típica da ressaca.

-- Gilberto, vai tomar um sol!! Sai daqui, deixa este jornal – incentivava d. Leila.

Ao que contestava Zamba:

-- Calada, d. Florinda (personagem do enlatado mexicano “Chaves”). “Usted” acha que vou me juntar àquela gentalha se debatendo naquele fétido caldo de cana? Tá maluca? – retorquiu um Zamba já bem humorado.

À uma hora da tarde, d. Leila desceu à área de serviço e vibrou o sino de bronze maciço, capitalizando a atenção de todos na piscina.

-- Todo mundo pra fora da piscina. O almoço já está pronto. Já vou servir à mesa – anunciou d. Leila para o marido e os filhos.

Fato raro: não havia convidado algum, uma amiga das meninas, um parente, ninguém de fora de casa. Àquele ia ser um almoço estritamente familiar.


Quando meninas e meninos se secaram e alguns até trocaram de roupa, d. Leila serviu prontamente o almoço. Era bobó de camarão, arroz e uma salada que além dos tradicionais tomate, rúcula e palmito, tinha, além de mussarela de búfala, figos e mangas cortados em finas fatias. Para beber, limonada suíça, Coca, cerveja e água.

Depois que todo mundo comeu – André e Gilberto repetiram – Zamba não sem um prato e o repeteco, derrubar, duas vezes copos de limonada sobre a toalha impecável e ser advertido com um beliscão por d. Leila.

-- Pára quieto, Gilberto. Parece que tem bicho-carpinteiro!! Cê é um desastre na mesa. Não passa um almoço sem derrubar alguma coisa em alguém! Que inferno!! – desabafara d. Leila.
-- Vai com calma, Leiloca. Hoje você está muito belicosa comigo – quase gritava Zamba, catalisando as atenções à mesa, emendando o gracejo com uma analogia infame. – Belicosa, beliscões, entenderam??
Com o riso contagiante mesmo após a infâmia, desarmara d. Leila, que agora sorria, como todos à mesa. Seu André ria curtinho, balançando a barriga a cada risada.

Gilberto é o cara mais engraçado que conheço. É de uma espontaneidade singular. Para fazer uma piada, é preciso um mínimo de tirocínio. Zamba
dispensa este expediente. Suas tiradas não são elaboradas e saem aos borbotões, quase sempre hilariantes. Zamba, um sujeito para lá de intenso, inquieto e ansioso, faz piada de tudo e de todos. Ele e minha comadre Luciana dariam atores cômicos maravilhosos.

D. Leila e Gracinda serviram a sobremesa: uma cocada líquida divida. Gilberto repetiu duas vezes.


Foi aí que Seu André deu início ao seu plano para desmascar de vez o Zamba. Na cabeceira da mesa ergueu-se e batendo com uma colher no copo de cerveja, catalisou a atenção de todos.

-- Por favor, não deixem a mesa ainda. Todo mundo sabe que eu reclamo em todo almoço dominical dos excessos etílicos do Gilberto. Conto que ele chega fora de si, vomita, apronta um banzé danado, dá socos e pontapés em quem não o deixa dormir mesmo vomitado. E minha única testemunha é o André, que me ajuda nesta inglória tarefa. Pois bem, o Senhor Gilberto tomou outro porre ontem... – Seu André é subita e espalhofatosamente interrompido por Zamba.

-- Num tem jeito. Quando o seu Barriga (outro personagem do humorístico mexicano “Chaves”) me chama de senhor, é que vem calúnia, mentira, exagero. Imagina quando me chamar de doutor. Aí, pode apostar que eu matei alguém – disse Gilberto, um tom acima de um diálogo civilizado, como de hábito, ameaçando levantar da mesa, no que foi contido por André:
-- Espera aí, bichão. Vai sair daqui não; o pai e eu preparamos uma surpresa para você. Vai adorar...

Depois daquela súbita interrupção, o patriarca prosseguiu:

-- Bem, depois desta rude interrupção, como ia dizendo, o senhorrrr (carregou propositalmente na palavra que tanto irritava Zamba) Gilberto tomou um pifão daqueles ontem. Vomitou, deu pernada, foi um custo para botá-lo no chuveiro. E agora, com vocês a prova incontestável da balbúrdia de ontem (e Dedão olhou para André, que deixou seu lugar do lado de Zamba e voltara, do quarto, com um rádio-gravador portátil, poucos segundos mais tarde).
-- Liga, André – pediu o patriarca.

Ouvem-se grunhidos de quem ameaça vomitar.

-- Zamba, precisa abraçar o vaso? – era o André falando.

-- Querendo, eu abraço sua perna. E vomito no seu pé – reconhecia-se, pastosa e algo débil, a voz de Gilberto.

-- Eeeeerrrrgghh – disparou três vezes o gravador.

-- Gilberto, bota o dedo na goela que cê vomita – aconselhou seu André,

-- Pai, precisamos mesmo ver esta cena patética? – é André de novo.

Agora o som é mais vigoroso, vem carregado de algo mais sólido que a simples gosma da baba. Três golfadas mais tarde e ouve-se um berro:

-- Ah, eu tô muito mal. Quero morrer! – garante Zamba.

-- Deixa pra morrer mais tarde, depois do banho. Acabou de vomitar, Gilberto? ...Gilberto? ...Gilberto? – ouvia-se um estapear baixo, seu André tentava reanimar Zamba. – Merda! O cara apagou. Me ajuda aqui, André. Vamos dar um banho neste pangaré.

Da fita que todos, inclusive Zambão, escutavam-se, barulhos surdos de despir alguém, tênis caindo dos pés e um grunhido inicialmente inaudível, mas que foi ganhando força, até vir como um berro, acompanhado de um palavrão:
-- Me deixem dormir, porra!!
-- Emborcado junto a um vaso sanitário? Nada disso, vai dormir limpinho na sua caminha, Zambinha – escutava-se André, exclamar, já com voz zombeteira.

Nisso ouviam sons surdos do que parecia ser uma briga. E era, explicou André, contando do esforço que foi dar banho – ou melhor, deixar uma ducha fria cair – no/sobre o irmão.

Nisso, a captação da gravação volta a aumentar. O André foi buscar o gravador da biblioteca, onde tiraram a roupa do Gilberto, e o levou para o banheiro da piscina.

-- Esta água tá um gelo. Num vou entrar por nada deste mundo – volta a gritar, com a voz rançosa, Gilberto.

Novo som de músculos em luta. Até o girar da torneira.

-- Ai, caraí – disse Zamba.
-- Por acaso, cê bebeu cerveja e uísque quentes? – a pergunta tinha a voz de Seu André emendando: -- Num tem jeito, André, para dar banho neste bichão é impossível ficar seco.

Nisso, Zamba investe contra o gravador, no que é contido por André e Frederico, o irmão mais novo mas não necessariamente o menos taludo dos Martins de Andrade.

-- Sai para lá, zé – disse-lhe André, levando o gravador para longe de Zamba.

-- Caraca. Num esperava isso do meu pai, mesmo que tenha um quê de seu Madruga (outro personagem imbecil do seriado mexicano “Chaves”). Também não esperava uma punhalada dessas desferidas pelo meu irmão mais velho, ainda que ele seja o próprio Chaves. Num vou escutar mais um segundo sequer desta maldita e caluniosa fita – afirmou Gilberto, deixando escapar uma risada quando pronuncionou “caluniosa” e rumando para seu quarto.

-- Pode ir, bobão. É bom que saiba que gravamos quase 50 minutos e que vou espalhar esta fita entre nossos amigos – ameaçou André.

Não sei que fim teve a fita; sei que Zamba só guardou distância dos porres vexaminosos por duas semanas. Voltou a encharcar a cara na companhia de Barry. Seu André continuou com os banhos evitando que Gilberto fosse dormir todo vomitado. André ajudava o pai quase sempre. Por vezes, tentava convencer seu André a deixar Zamba dormir abraçado ao vaso sanitário do banheiro da piscina.

Apesar da insistência, não logrou êxito.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Concerto único

02-502231499 l Lasa

Estudei com o Manguinha, Eduardo França, por três anos. Os dois primeiros anos do Segundo Grau, mais o cursinho pré-vestibular, equivalente ao terceiro ano. Quando o conheci, era alto, esguio, dono de um nariz de responsa e farta cabeleira encaracolada e negra.

Devo ao Manga descobertas musicais importantes, como Bob Dylan (o Greatest Hits 2, disco duplo importado, de vinil, me foi emprestado por ele), Cream, Neil Young, Jefferson Airplane e sua cisão, o Hot Tuna e o Starship, além de outros grupos mais obscuros dos quais não me lembro.

Comecei a ouvir música, toda sorte dpe música – com exceção da bunda music, como rotulo axé, funk, pagode e sertanejo (não confundir com caipira, ritmo genuíno e imune à plastificação) e genéricos, em 1974. Foi naquele ano que o Betão, meu cunhado, mudou lá pra casa. Largara a família – mãe e avós maternos – aqui em Copa e a PUC, onde cursava o primeiro ano de Física. Em dezembro de 74 fomos, eu, Beto e Nora, ao Rio comprar presentes. Ficamos um sábado em Lins de Vasconcelos, bairro fronteiriço ao Méier, onde morava meu tio Fante, irmão de minha mãe, tia Matilde, e meus primos, Cláudia e Carlinhos. Esta observação é digna de nota: sabem qual era o nome do meu tio Fante? A pergunta só tem valor retórico, uma vez que ninguém, ninguém, a não ser minha avó e meu avô -- a quem não cheguei a conhecer – poderia cometer tal desatino: chamar alguém de Mesophante. Ou seja, o Ricardo, que carrego agregado, de mal grado, mas carrego, ao Eros, é pinto diante de Mesophante.


Trago na lembrança a capa de “Milagre dos peixes” – o primeiro Milton a gente nunca esquece – e os primeiros E,L & P, Genesis e Yes que entraram na minha vida.
Dois anos mais tarde, no primeiro ano do Segundo Grau, o Macedo Soares resolveu reunir numa só turma os melhores alunos da casa e os melhores vindos transferidos de outros colégios. Eu, que não era nenhuma sumidade, mas que também não era um jerico, fui para o 1º E, mesmo destino de gênios como a Maria Inês, transferida de um colégio de Barra Mansa, Ronaldo, vindo da Fevre, um colégio em Volta Redonda, mesma origem de Manga, outro ótimo aluno. Edisom e Guilherme rivalizavam o posto de melhor (e mais chato) aluno do próprio Macedo.



Bem, mas acontece que o Manguinha me chamou a atenção – já antenada musicalmente – para um monte de coisas legais. Então resolvi aprender a tocar violão, tornando-me um “bardo acústico” – logo eu, que não falo, hesito.

Passei a subir duas vezes por semana o morro em que se transformava a Rua 31, a partir da Rua 26. Logo atrás da bela Igreja de Santa Cecília ficava um Centro Cultural, onde professores davam aula de quase tudo a quase ninguém a módicos preços. Meu professor, cujo nome me escapa agora, era notório mestre de música, conhecia várias pessoas que aprenderam os primeiros acordes com ele.

Que tive umas duas semanas de aula, as seis horas. Logo na quarta aula, o professor, cujo nome, era algo como
Penteado, insistia em “Irene”, do Caetano, que devia ter, no máximo, três acordes e era molinho e alvissareiro mesmo para iniciantes.
Assim, não esperei muito para submeter-me à apreciação de meu guru musical. Chamei-o até em casa, e no meu quarto tentei reproduzir os poucos acordes e cantar os versos. Foi um fiasco. Sequer conseguia tirar as notas do violão e com a minha voz esganiçada tentei cantar. Qual um Belchior desrítmico insistia em “Irene rir/ Irene rir/ Irene rir/Quero ver Irene dar sua risada”. Foi surreal. Não havia ritmo. Apenas o Manga a chorar de tanto rir do meu patético desempenho ao violão.
-- Muito bom, Eritos! Engraçado pacas!! – disse Manga, refreando seu entusiasmo devido ao meu repertório de uma nota só.

Despediu-se de mim e foi até à padaria Central, a uns 300 metros da minha casa, beber uma prosaica Coca-Cola.
E assim, a MPB perdeu um enorme talento (eu). Isso foi num sábado. Na segunda seguinte, já não fui ao Centro Cultural na 31. E o violão quedou-se num canto, de onde foi resgatado, não muito tempo mais tarde pela minha irmã, ela sim, uma boa violonista.

domingo, 31 de outubro de 2010

Lumiar e o polenguinho 4.4

De manhã, logo depois de tomarmos o café, constatamos que o tempo continuava nublado, embora não chovesse àquela hora. Eram pouco mais de nove da manhã quando Claudia ligou pra a prima dela, Leila, que mora em Niterói.


-- Alô? Ana Paula? Tudo bom? Posso falar com a tua mãe? – falava Claudia ao telefone da pousada do.... PAREM!! REBOBINEM A FITA!!! AI, ESTA HISTÓRIA DE FITA DENUNCIA A MINHA IDADE. MEUS FILHOS SEQUER IMAGINAM DO QUE SE TRATA. EM DIALETO “ANTENADO”, DÊEM UM REWIND ATÉ O COMEÇO DO TEXTO.
“Tolices & memórias senis” faria mais justiça como título. Já estava imaginando a gente não encontrando a chave da casa, malocada não num vaso de antúrio, como dissera Leila, mas num xaxim com uma avenca no fundo da varanda.
Bem, acabou que eu perguntei a Claudia e ela me disse que já saímos do Rio cogitando passar na volta, caso o dilúvio se confirmasse, na casa da Leila, em Friburgo. Ninguém da casa da prima da Claudia ia subir a serra, de modos que nós já saímos do Rio com as chaves da casa. Também num pergunto mais nada para a Claudia! Confiar na memória, ainda que caduca, renderia histórias mais originais.

Bem, então ainda era sexta de manhã quando decidimos ir embora da Parada do Krein. No carro do Aurélio, além da Mônica, foram quatro pessoas: Bella, Lu, Denise e Simone. A única menina a ir de ônibus foi a Claudia, para não deixar o “lindo” (eu) ir sozinho para Friburgo, embora Alex, Calmon e André estivessem no mesmo busão. Eu adorei.

Nós, os do ônibus, chegamos em Friburgo por volta de dez e meia da manhã. Quem desceu com o Aurélio deve ter chegado por volta de nove e meia, mas de estômago virado: Aurélio se vangloriava de descer a serra do Mar, passagem obrigatória entre Rio e Volta Redonda, trecho perigoso e cheio de curvas, em inacreditáveis seis minutos. Mas Al estava tranqüilo como há muito não o via. Assim, acho que ele não correu tanto, não.

O bairro onde fica a casa de Leila e Ambrósio é Nova Caledônia. Acho que é isso mesmo: pelo menos era este nome que estava estampado nas garrafas de licor (horrível!!!). E o endereço do fabricante ficava numa ruazinha perto da casa da prima da Claudia.

Era uma casa bem confortável, com uma decoração algo kitsch como convém às casas de veraneio. Mas o que mais nos chamou a atenção foi mesmo o jardim em frente à casa. Era uma área imensa, toda gramada. Tinha até uma piscina Tony, dessas de montar. A casa era circundada por muros altos, o que garantia a intimidade de quem se molhava ali.

Mal tínhamos acabado de chegar, nem bem dividimos quem iria ocupar os quartos (dois) e a sala e pintou uma réstia de sol na varanda. Tratamos de colocar sungas, shorts, biquínis e maiôs e corremos para o jardim. Ficamos umas duas horas desperdiçando água mangueiral, molhando-nos uns aos outros e enchendo a piscina. O solzinho, muito tímido, escafedeu-se passada uma, na melhor das hipóteses, uma hora e meia. Fervorosos adoradores do Sol, ficamos ainda um tempinho flertando com ele – ou melhor, com o que sonhávamos -- enquanto nuvens escuras nublavam o céu. As nuvens foram ficando escuras, escuras, escuras até o céu vir abaixo.

--Caraí – disparou Aurélio, ao ser atingido por grossos pingos da chuva que se seguiu, acompanhada por um vendaval.

Não sobrou ninguém para contar a história
E olha que eu adorava tomar chuva. E acredito
que, pelo menos, outros caras do bando
– Aurélio, Calmon e André - também fossem
fãs de um pé d’água na moleira. Mas aquele
toró era diferente: a água descia do céu
gélida demais, como se passasse por uma
longa e resfriante serpentina de chope. Era
coisa do Dedo de Deus e eu nem ninguém
tínhamos peito para encarar aquele dilúvio
celestial. Assim, tratamos de nos refugiar no
interior da casa: todo mundo na cozinha, pois
estávamos ainda molhados e sujos. Formou-
se uma fila para tomar banho. E a despeito do
cavalheirismo reinante, o primeiro do banho
foi o Alexandre, em quem já se insinuava uma
gripe – os acessos de tosse nada tinham a ver
com a sua renitência em fumar – já que o vício
imbecilisava também André Fábio e Luciana.

-- Também, depois daquele temporal no
Poço Feio (era este o nome, nunca houve
uma cachoeira chamada Véu de Noiva em
Lumiar. Revolucionários os b.g., não?), frio
para caramba, encarar uma fila para tomar
yum banho, ou melhor, um filete de água quente na Casinha do Tio Chico (lembram-se do careca da Família Adams”?), queriam o quê? – resmungava Alex, entre um espirro e outro.

É verdade...Além de todas precariedades
e curiosidades, a Toca do Predador tinha
um único banheiro para todos os hóspedes.
Ainda bem que ele, as meninas e o André
tomaram banho. Porque a água da casa
acabou. Eu, Calmon e Aurélio tivemos que
nos lavar -- as partes, inclusive, devidamente
mascaradas pelas sungas -- na chuva, agora
bendita chuva, mas fria pra cacete.

Todos banhados – uns mais, outros menos
– havia um prazer em estarmos juntos, que
fazer qualquer coisa, desde que juntos, nos
bastava. Ficamos juntos nas redes – alguém, possivelmente o Calmo -- alcunha do Calmon -- tem fotos nossas com uma flor de hibisco na orelha enquanto balançávamos ao sabor do vento.

A não ser quando Bella fazia o papel de
tornado e balançava, de modo inclemente,
quem estava nas redes (eram duas).

Bom, como a chuva nos ilhava e confinava à casa, resolvemos jogar. Enfim serviu para alguma coisa os baralhos que trouxemos do Rio. Jogamos algumas partidas de mau-mau. Até que a Bella teve um rompante entusiasmado e berrou, como alguns dizem ter berrado Newton ao ser atingido pela maçã da Gravidade.
- Dicionário!! Sabem jogar dicionário? Vamos jogar!! Eu explico pra quem não souber -- dizia, enquanto levantava-se até uma estante da sala da Leila, onde jazia -- um dicionário não faz outra coisa senão jazer -- um volumoso Aurélio.
- Massa, é mesmo um jogo maneiro - dizia Alex, como a concordância muda, mas enfática, de Lu, eu e Claudia.
Para quem nunca jogou, uma breve (?) explicação: um a um, os competidores buscam no dicionário vocábulos cuja definição é a mais estranha possível, de modo que os demais participantes achem-na tão esdrúxula que acabam votando num conceito inventado por um cascateiro versado em português. As definições são escritas em pequenos pedaços de papel, lidos por quem escreve o sinônimo correto. Pontuam aqueles cuja mentira é tida como verdade e também o sujeito cuja descrição, correta, engana vários participantes. Entenderam? Se não, joguem e descubram.
Só que para quem jogava com alguma constância como Claudia, eu, Lu, Bella e Alex, por exemplo, contava era ser o mais criativo possível. Fazer rir era bem mais legal e importante do que simplesmente ganhar o jogo. Tem até definições que para mim são definitivas. Como quando alguém sacou uma palavra cujo significado ninguém sequer suspeitava: tembleque. Num sei quando foi, tão pouco de quem foi a genial definição. Pode ter sido na casa em Miguel Pereira do Décio Pinto Aquino Rego, um amigo dileto. Seria genial se o sobrenome de Décio fosse realmente este. Mas não: é um reles Coimbra o mais assíduo leitor e comentarista das besteiras deste blog.

Posso até sido eu a cometer talentosa heresia, mas é mais provável que a pérola tenha sido expelida por Claudia, fã dos personagens do Maurício de Souza. Quando alguém leu "tembleque - expressão usada pelo Cebolinha (o famoso troca-letras criado por Maurício) avisando que sua bicicleta não tinha freio: 'Saiam da frente que esta bicicleta num tem bleque'". Maravilhoso, né?
Pois é, há muito, para nós, o quesito criatividade era o único que levávamos em conta. A graça era encontrar significados tão estapafúrdios quanto hilários.
Mas isso era uma "private joke" entre eu, Claudia, Bella, Alex, Lu mais Ciça e Aloy, amigos da mesma gangue, que, por motivos diversos, não foram à expedição Lumiar. Mas esta piada ficava óbvia depois da segunda rodada; era impossível que os demais participantes achassem que alguém acreditasse naqueles incabíveis, mas extremamente engraçados, “sinônimos”.

Mas daquela vez tínhamos convidados de primeira viagem, como Calmon, André, Denise e Simone, além de Aurélio e Mônica.
Logo no início as pessoas captaram a motivação real do jogo: azucrinar a língua portuguesa. Só que alguém lançou uma palavra cujo significado era uma engrenagem de maquinário gráfico, tipo calandra, e foi imediatamente vetada. Acho que foi a Lu que negou, criando um bordão que nos acompanha desde então: não vale “termo técnico”. Só que disso se valeu Simone, a irmã de Denise. Para ela, qualquer palavra que fugisse um pouco do óbvio, era motivo para esquivar-se e berrar:
-- Termo técnico não vale!!
Era engraçado pacas. Ver um monte de termos vetados, sendo que de técnicos nada tinham. Mas ninguém protestava e deixava Simone vetar o que quisesse. E ria.
Eis que surge a vez de Isabella sugerir a palavra. Ela apenas finge que procura um vocábulo e diz na lata, para uivos entusiasmados:

-- Fimose. A palavra é fimose!

Bella e todos acompanhamos a reação de Simone, que não tardou. Pensou um tiquinho e arrematou.

-- Termo técnico – disse, sendo acompanhada por Bella no segundo vocábulo.

-- Tem razão. Fimose é um termo técnico. Num vale – concordou a Loira Má, com a cara mais lambida do mundo.

A gargalhada foi uníssona. Até Denise, irmã de Simone, chorou de rir. Depois chamou a irmã num canto e deve ter-lhe explicado o que era fimose.

Mas ter sido motivo de escárnio não constrangeu Simone, que continuou a vetar a escolha de palavras com o indefectível “termo técnico” pela noite adentro.

Dia seguinte, o primeiro acordou 6h30m e o último, lá pelas 10h. E, por incrível que pareça, apesar da Bella já estar acordada, o dorminhoco não acordou com o rosto besuntado de pasta de dente.

Ela já fizera das suas com o produto. Também, depois da deixa de TOC (transtorno obcessivo compulsivo) do André...
-- Bem, agora que vamos partilhar todos o mesmo espaço, tenho que confessar uma mania e pedir algo a vocês – começou André, diante do silêncio atencioso de todos. – Eu sou psico com tubo de pasta de dente. Eu só consigo usar apertando do fim para o começo.

E, na hora que os primeiros foram dormir, André levou todos ao banheiro para demostrar o modo correto de usar a pasta dele (existe método certo de usar pasta de dente?): diante de uma audiência que, silenciosa porque estupefata, ele mostrava meticulosamente como tirava a pasta do tubo. Apertava do trecho que era lacrado em direção ao bico de onde saia o dentifrício. Até aí, novidade alguma. O x da questão é que André fazia vigorosa varredura, não deixando rigorosamente nada entre a parte que vinha sendo apertada e o que ainda estava cheio. Sabe um rolo compressor? Pois era assim que André Fábio deixava a pasta de dente dele.

Bem, depois daquela aula sintomática de portador de TOC que André nos dera, entreolhamo-nos, já prevendo o que veríamos dia seguinte.

De manhã, André Fábio foi dos últimos a acordar, pois ficara num papo com Alex e Calmon até às quatro da matina.
Bella acordou cedo e foi a primeira a ir ao banheiro. Depois dela, quem saia do cômodo não escondia o sorriso ou a gargalhada fartos. A pasta de dente Colgate, do André, jazia num canto da pia, completamente disforme. A embalagem, de ferro, estava novamente cheia pela metade. O que vinha sendo amassado sistematicamente, estava agora novamente preenchido à meia- bomba, todo untado de creme dental, como se um ogro tivesse usado a pasta do André. E só a dele estava assim, as outras quatro estavam em decente estado.
Quando André acordou e foi ao banheiro, juntou gente na porta. Ele não sabia o motivo da súbita curiosidade. Vê-lo fazer xixi, ou trocar de roupa no banheiro, não podia ser. Lavar o rosto, escovar os dentes... Tolinho! Foi olhar para sua pasta de dente, outrora tão arrumadinha, e ele entendeu o burburinho. Rindo de sua ingenuidade – não se revela uma paranóia por organização numa viagem de quatro dias ao lado de gente que mal se conhece – André foi motivo de piada por todo sábado. Mas suportou com galhardia e fair-play toda a gozação. Porém, não se viu mais sua pasta entre as que serviam à rapaziada.

Embora estivesse frio pacas, resolvemos xeretar a noite de Tere. Acabamos dando com os costados numa boate cuja voltagem parecia bacana. A Lu já chegou deslumbrada com “Last train home”, música do grupo do guitarrista Pat Metheny, cujo toca-fitas do carro do Aurélio despejava sobre afortunados que tiveram a sorte de irem no Passat vermelho até o centro – acho que além de Luciana, foram, só para checar a música, André e Calmon.

Mas o gosto musical de Aurélio estava longe de pautar-se pela excelência. Ao lado do jazz moderno e brilhante de Pat Metheny e Lile Mays, desfilavam porcarias gravadas de discos coloridos (tinha LPs laranja, vermelho, amarelo) importados, caríssimos que Al comprava na extinta Billboard ou na Modern Sound, mecas musicais vizinhas na Barata Ribeiro, quase esquina com Santa Clara, em Copacabana. Aurélio sonhara ser Dj na sede social do Clube dos Funcionários, e aquelas porcarias coloridas continham o suprassumo do corolário dos Djs: música bate-estacas e imbecilizante.
Mas fiquemos só no bom gosto musical de Al. Lu chegou na boate fascinada por Pat Metheny; acho que não tanto quanto Sônia Braga, com quem ele foi casado (cultura totalmente inútil), mas ainda assim fascinada.

Não tenho muitas lembranças daquela noite. Só que nós bebemos um pouquinho e nos esbaldamos na pista, algo cheia para o frio que fazia. Tenho uma vaga lembrança de que rolou uma porrada feia e, eu, cheio de sentimentos de “paz e amor”, já me encaminhava para separar a briga quando Claudia me puxou e me deu um esporro:
-- Tá maluco, lindo? Vai é se matar. Já viu o tamanho dos caras?

Nisso começaram a voar garrafas de cerveja entre os dois grupos de brigões e fomos embora. Todo mundo a pé, até Mônica. Aurélio levou rapidamente o carro para casa e juntou-se a nós. Fazia frio, lgo só demas estávamos bem agasalhados, e estávamos voltando para casa.

Chegamos, comemos algo só de gula. Depois jogamos algumas partidas de mau-mau mais uma de War, que eu estava ganhando até o povo encher o saco e misturar os exércitos. Isso já era umas três da manhã, quando fomos dormir.

No domingo, à tarde, voltamos para casa. Mas antes, almoçamos num ótimo restaurante, especializado em comida alemã. Desde que chegamos a Lumiar, tínhamos isso em mente: fazer uma super-refeição num lugar bacanão. O nome do restaurante era Burgomestre. A comida era ótima – e o banheiro também. Como faltava água na casa da Leila desde a manhã de sexta, evitávamos de fazer nossas necessidades –tanto número 1 quanto número 2 - nos dois banheiros da casa, o social e o de empregada.
Evitávamos usar ou o ambiente ficaria irrespirável. Ninguém podia fazer ôcoc – leia de trás pra frente. Os meninos evitavam fazer xixi dentro de casa – era um entra-e-sai rumo ao jardim nas madrugadas que passávamos insones. Só quem tinha licença para urinar as moças. Não fazia sentido exigir que elas também procurassem uma moitinha quando precisassem se aliviar. Sempre que saíamos, procurávamos usar banheiros de bares e valemo-nos até os sanitários da boate que fomos, na noite de sábado.
Mas por falta de limpeza e absoluta falta de paz não consumíamos o segundo ato desde que deixáramos o Retiro dos Artistas de Filmes Trashes, em Lumiar, na manhã de sexta-feira. Ou seja, passáramos o fim de semana sem mandar missivas para Migué (inventei esta agora, diante de outras racistas, politicamente incorretas e de péssimo – ainda que engraçado –gosto).

Quando nos deparamos com o Burgomestre, com suas mesas cobertas de toalhas de linho, e belo decór houve uma precipitação incomum aos banheiros. Mais ou menos metade de nós resistiu à mesa, iniciando os trabalhos de pedidos para o garçom. Um senhor boa-praça, que se não entendia aquela súbita corrida de revezamento aos banheiros, ao menos teve uma paciência de Jó para voltar seguidas vezes à mesa para anotar todos os pedidos. Somente uns quatro valentes deixaram para ir depois da refeição.

-- Estou guardando munição – explicava Alex.

Comemos de tudo: kassler com chucrute, salsichão com salada de batatas, almôndegas...Rolou até um joelho de porco. Comíamos comunitariamente: cada um garfava o prato do outro. Pastávamos desenfreadamente, arrematando cada prato com um papo ótimo e um fantástico pão preto. Consumíamos também várias tulipas de chope claro e escuro. E para fechar a tarde, pedimos torta de maçã com creme e licor (Drambuí, Frangélico e Amarula).

Ah, como foi fantástico o almoço e balsâmico o banheiro no/do Burgomestre. Fechamos com chave de ouro um feriado que tinha tudo para ser monótono. Além de termos deixado um monte de burgomestrezinhos para’trás.

A volta não foi concorrida, como em feriados prolongados. Saímos da rodoviária por volta das cinco da tarde e antes das oito estávamos em casa.

Fizemos de um inusitado encontro de pessoas que não se conheciam, uma sagração à amizade. Rimos muito, passamos perengues mil e temos muitas histórias para contar. Estas foram só algumas.

domingo, 20 de junho de 2010

Lumiar e polenguinho 3.4

Pegamos o ônibus numa cidade desolada. A chuva transformara aquele ponto turístico em reduto dos bichos-grilos nativos. Rodamos alguns quilômetros numa estrada de barro com o coletivo fazendo perigosas evoluções e sambando “nas curvas” (favor caprichar no dialeto chiado carioquês).

Desembarcamos uns 40 minutos depois noutro ponto turístico igualmente desolado. Ficamos em São Pedro da Serra o tempo que o ônibus ficou por lá: uns 20 minutos. Tempo mais do que suficiente para conhecer todo o “centro nervoso” da cidadezinha. Que entrara em pane com aquele dilúvio. Tanto que tudo que eu imaginava ser uma loja, estava com as portas cerradas. Com exceção de uma birosca – misto de quitanda e armazém – e uma padaria, cujo néon do l do Real, estava apagado. Embora fossem menos de oito da noite, os caras da padaria já iam fechar a Confeitaria Rea -- como se lia, sem o l. Tratamos de comprar alguns víveres, já que frigobar é luxo desnecessário na ex-talagem do sr. Gólum Klein.

Eis que estranhamente ouvimos música. Vinha do único restaurante aberto. Era chique bem, e não havia viv’alma nas mesas. Só um sujeito que parecia o dono, pelo jeito que se dirigia aos garçons, se embebedava solitário com vinho rosé (blergh! Imagina a dor de cabeça do cara, ao acordar, no dia seguinte...).
O motorista do ônibus veio avisar-nos que aquela era a última viagem de retorno a Lumiar. Até conjecturamos passar a noite ali, mas aquele coaxar de sapo fez aumentar significativamente o frio.

Então pegamos o último ita em São Pedro da Serra e fomos com Klein ficar (Adeus meu pai, minha mãe/Adeus Belém do Pará... Foi só uma piadinha com o clássico “Ita do Norte”. Entenderam não? Na próxima vez, eu desenho, dããããããã....). Foi na primeira curva sacolejante que o Aurélio (não vou descrevê-lo, já o fiz nos posts de “Carnaval em Angra”) resolveu inventar um treco doido, ao que ele batizou “surfe de ônibus”. Consistia em ficar de pé no corredor do ônibus e tentar manter-se de pé sem se segurar em nada.

-- Vamos lá, Erão. É divertido – dizia ele. – Vamos, gente.

Calmon, um sujeito normalmente fechado, foi o primeiro a aderir à nova modalidade aureliana. André, Alex, Bella, Lu e eu tratamos de também tentar domar aqueles sacolejos na estrada esburacada, enlameada e cheia de curvas.


Somente Claudia -- sabiamente, pois tem os dois lados esquerdos – Mônica – a brincadeira foi idéia do Aurélio, ah, me poupem! – e as irmãs Denise e Simone – tanto por timidez quanto por medo de se estabacarem – não participaram do surfe no circular Lumiar-São Pedro.

O ônibus vinha vazio – só recolhera um capiau no caminho, que se entrincheirara no primeiro banco. Então era nosso o rinque de patinação. Depois de muito quase metermos o nariz naquele chão infecto e barrento do ônibus – eu, André, Calmon e Bella cansamos e nos sentamos, cada qual num banco. Eis que um dos que continuaram a “surfar” – acho que foi a Luciana – tomou um caixote e para não arrebentar os quartos -- e os quintos também – caiu sentada no meu colo. Ao que eu imediatamente retruquei, para espanto geral:
--Ai!! Meu polenguinho!!
Lu foi a primeira a verbalizar o pensamento geral.
-- Ué, eu caio no seu colo e você reclama do seu polenguinho? Vem cá, Claudia, como é namorar um queijeiro? – observou ela, antes de gargalhar e encontrar eco em todo mundo, incluído aí o trocador.
Alex e Aurélio também tinham cessado o “surfe rodoviário” e estavam sentados.

Nisso, eu me levantei e tirei do bolso direito da calça – usava calça de algodão verde escuro, com dois longos bolsos na frente – dois queijinhos Polenguinho, devida e irremediavelmente amarfanhados pela buzanfa ( é com s?) da Luciana.

-- Ainda bem que a Lu caiu em cima do lado direito – disse, sacando do bolso esquerdo, dois chocolates e dois doces-de-leite, que vem numa embalagem de plástico e você morde uma extremidade e vai sugando o doce.

Seria mais ambíguo e muito melhor para a minha imagem se, ao ser buzanfado (pergunta que não quer calar: é com s?) pela Lu do lado esquerdo, alertasse:

-- Ai!! Meu doce de leite!!


Mas seria melhor só para a minha imagem porque imagina o lodaçal que ia ficar minha calça, caso algum dos sachezinhos de doce de leite estourasse. Ia ser mais ou menos como o vazamento de silicone dos peitos da Vera Fischer, coisa que aconteceu há uns cinco anos (mas que me calou fundo n’alma: volta e meia eu, ainda hoje, imagino aquela mulher que já foi uma diva, com os seios vazando).

Eu sei que foi (é) uma encarnação interminável. No dia seguinte, a primeira coisa que Isabella pergunta à mesa no café da manhã (ou a pão e água, como vai insistir Luciana) a Claudia, depois de um protocolar bom dia foi:
-- E o polenguinho do Eros, Claudia? Sobreviveu? Tá tudo bem?

E aguente gracejos. Só quem não zoou comigo foram Denise e Simone. Até a Claudia fez piada...

Mas voltemos à noite anterior, que ainda não acabou. Mais alguns solavancos e estávamos de volta a Lumiar. Frio e úmido pra cacete. Mas fazer o quê? A espelunca de Chucky, o Brinquedo Assassino, não tinha área comum que abrigasse seis pessoas confortavelmente, imagina 11. Apesar da bosta do tempo, insistimos e demos uma andada até o coreto – toda aldeia tem um. Claudia tinha levado um baralho, pois já imaginávamos que seria ruim de encontrarmos lazer naquela terra. Mas o chão do coreto estava imundo e começava a chegar um povo ainda mais fedido que os bichos-grilos locais. Quando apareceu uma mulher com uma garrafa de Itapipoca, que ela sorvia pelo gargalo mesmo, fomos embora.
-- É o melhor que a gente faz, galera – dizia Aurélio ajudando Lu a descer os poucos degraus do coreto, como bom cavalheiro que quem o conhece sabe que ele não é.
-- Pô, mas ainda não são dez horas...Num tô com sono algum – ponderou Calmon, enquanto nos encaminhávamos para a Gruta do Gólum.
-- Vamos ficar no nosso quarto ou no de Aurélio e Mônica. São os maiores e se todo mundo se apertar...— disse eu, quando estávamos quase chegando à pocilga, digo pousada.
-- Podem nos incluir fora dessa. Tá frio pra burro e a gente vai é ficar debaixo das cobertas no nosso quarto – disse Denise, diante de Simone, que balançava a cabeça assertivamente, partilhando da opinião da irmã mais velha.
Eram dez e cinco quando cruzamos a porta da Pousada do Alien. Fomos para o quarto onde eu e Claudia estávamos hospedados depois de cruzarmos com seu Klein, dona Klein e Kleinzinho diante de uma televisão... ligada!! Caramba, até alienígenas assistem novela!!!
-- Boa noite – saudou-nos Klein.
-- Boa noite – respondemos em uníssono.
Já no nosso quarto, sem a presença de Denise e Simone, trocamos o baralho por uma assembléia. Dúvida: o que fazer?
-- Dou força para a gente ir embora daqui. Vamos de volta para o Rio -- sugeriu Aurélio, então morador de Volta Redonda, ainda livre dos “porra, meu” admitidos em seu léxico diário depois de duas décadas morando em São Paulo, capital.

-- PÕ, mas se a gente saiu de lá em busca de tranquilidade – ressaltou Alex.

Sei que depois de muitas deliberações depois chegamos à seguinte decisão: de manhã cedo, Claudia ligaria para Leila, prima dela, embora minha mulher regulasse em idade com as filhas dela, as três Anas: Cristina, Paula e Beatriz. Eles (não citei o Ambrósio, marido da Leila e pai das Anas) tinham uma casa em Friburgo, que talvez estivesse vazia. Naquela época não tinha celular – uns quatro anos mais tarde, tive acesso aquela máquina revolucionária na cobertura de um show na Enseada de Botafogo. Era um tijolão imenso e eu não conseguia passar a cobertura do show pelo celular e tive que recorrer a um orelhão para passar a matéria. Ainda ficamos conversando um pouco no quarto – Lu também já tinha ido dormir. Deu onze e 15 e decidimos ir dormir. Calmon ainda estava sem sono. Pois que contasse carneirinhos (na época já namorava a Kátia Carneiro, hoje mulher e mãe de seu casal de filhos) ou papeasse só com o André no quarto.

A princípio, não entendi a pressa de Bella em ir para o quarto que dividia com Alex e Lu - àquela altura do sono dando buzanfadas (é com s?) em Morfeu. Logo que todos se despediram e foram para seus quartos e Alexandre encontrou a porta do quarto fechada, começou a fazer sentido a pressa da Loira Má.
Os Quein já tinham se recolhido e o silêncio, imperativo na Toca dos Quem, reinava absoluto. Só, rarefeito, ouvia-se o sussurar de Alex diante da porta do quarto trancada:
-- Bella! Bella! Abre a porta. Abre logo, que tá um gelo aqui fora.
Nisso, aconteceu uma sucessão de murros e pontapés na porta. E de dentro do quarto, num fiapo de voz fingido, Isabella pedia comedimento ao Alex:
-- Por favor, Alex. Não faz barulho. Já são mais de 11 horas.

Eu e Claudia chegamos a deixar nosso quarto, atraídos pelo barulhão.

-- O que houve, Alex? Que esporro é este? – perguntei.
Mas Alexandre nem precisou responder.
Uma nova sucessão de murros e pontapés chacoalhou a porta fazendo de novo barulho alto. Era Bella que esmurrava a porta, enquanto Alex fazia cara de resignação.

-- Pôxa, Alex. Já te falei pra num fazer barulho, esta é uma pousada de família – dizia Bella, com voz pausada e traindo-se para quem escutasse suas ponderações, deixando escapar uma gargalhada entre as duas últimas palavras pronunciadas.
Alex, da resignação, passou ao desespero.
-- Isabella, pelo amor de Deus, abre esta p#@@% de porta – falando um tiquinho mais alto.

Apesar do palavrão proferido entre os dentes, ainda era grande o medo de que Jason aparecesse com sua motoserra gritando “que era proibido fazer barulho depois das dez e meia, caralho!!!”.
Acabou que o cara não emergiu das sombras. Também, além dele, mulher e filhos, só nossa desavisada turma estava na pousada. E pouco depois, Bella abriu a porta. Ela só queria que Alex -- ou Lu, calhasse entrar no quarto depois dela – ficasse desesperado com a situação; não pretendia obrigá-lo a uma noite gélida, depois daquelas roubadas todas, nem vê-lo retalhado pelas garras metálicas de Freddie Kruger. Objetivo cumprido, porta aberta.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Lumiar e polenguinho 2.4

Voltemos a Lumiar e a pousada do Klein. Acho que a cidade não estava tão cheia porque urbanos, mais espertos do que nós, confiaram nos palpites meteorológicos (naquele tempo, mais do que hoje, uma loteria). A meteorologia previa uma Semana Santa chuvosa. Mas um solzinho, ainda que tímido, na manhã de quinta (chegáramos quarta à noite), nos encheu de esperança. Fomos todos para uma cachoeira a pé -- não era muito distante da pousada -- depois de tomarmos o café da manhã. Afinal, quando se é jovem há uma ânsia de tudo aproveitar, e entre nós o que não faltava era ansiedade por um mergulho na gélida poça feita pela cascata. Mas bastou chegarmos ao poção para cair um dilúvio. Até dava para ficar, não fosse o frio cavernoso que fazia. Era de se esperar que a chuva gelada tornasse quentes as águas vindas do Véu de Noiva (acabei de batizar, toda cidade turística tem uma cachoeira com este nome). Qual o quê! Era glacial o frio fora ou dentro d’água.

Assim não restou outra saída senão batermos em retirada o mais depressa possível. Aurélio corria como um louco na frente de todos. Voltara pilotando o Passat, resgatando todo mundo daquele aguaceiro. Numa primeira levou Mônica, Claudia, Calmon e André mais as irmãs Denise – era diagramadora de um jornal de cinema no qual a Claudia trabalhara antes de ir para o Globo -- e Simone, outro subgrupo.
A Denise conhecia algumas pessoas desse Dream Team – ou Nightmare Team, mais apropriado - mas a irmã só conhecia, e mesmo assim, mal, a Claudia. As duas eram bem tímidas e quietinhas.

Na segunda leva, Aurélio recolheu quem ainda estava debaixo d’água: eu, Luciana, Alexandre e Isabella. Os três já tinham estudado com a Claudia. Alex fizera o 2º ano do Segundo Grau (hoje ensino médio) e o cursinho pré-vestibular com ela no extinto Colégio Impacto, na Rua Xavier da Silveira, onde hoje funciona um apart-hotel. Luciana e Isabella estudaram Comunicação com Claudia. Lu optou por publicidade e abandonou o curso. Já Bella concluiu jornalismo com minha mulher, mas optou pela pesquisa, enquanto Claudia se rendeu ao jornalismo, primeiro o impresso, depois o televisivo e atualmente o on-line.
Lu é uma das pessoas mais agradáveis que eu conheço, dona de um humor ágil e inteligentíssimo. É madrinha do Caio, meu filho mais novo, e botafoguense de carteirinha como nós, aqui em casa. Meus filhos são fascinados por ela. É uma genial contadora de história. Acho que ela e o Zamba, vulgo Gilberto, irmão do André, estão comendo mosca. Dariam dois ótimos comediantes – e é muito mais difícil arrancar uma gargalhada do que uma lágrima.

Já Isabella era diabólica – no passado mesmo, porque agora, deu uma acalmada. Viajar com a Bella significava disposição para aturar toda sorte de avarias no percurso da civilidade. Acordar untado de pasta de dente ou andar um longo trecho com um pedregulho imenso na bolsa eram sinônimos de que Bella estava por perto. Poderia listar uma infinidade de qualidades de Isabella, mas o objetivo desse texto é acentuar seu lado Loira Má. É madrinha de consagração do João.

O terceiro vértice deste triângulo de amigos é o Alexandre, marido da Ciça, mas que na época nem imaginava que se tornaria Alexandre Mendes. Apresentado ao grupo da Eco pela Claudia, foi imediatamente aceito e passou ser um comunicólogo desde criancinha. Alex é a tranqüilidade em pessoa. Nunca vi o cara puto, nunca. E dá papo para todo mundo, até pros chatos. Se ele tem ansiedade – um dos grandes males contemporâneos – não demonstra; tira de letra todo e qualquer embaraço. É padrinho do Caio e conhecido lá em casa como “Tio Pangaré”.

Pois Bella e Alex foram os últimos a serem resgatados por Aurélio. Como não havia o que fazer – não tinha onde se proteger da chuva – vinham ensopados debaixo de uma toalha, tiritando de frio. Não preciso me estender ao dizer que o carro do Aurélio ficou um melê com barro até o teto. E o toró que caía era gélido e assim ficou o clima o resto do dia.

De volta à estalagem do Pônei Cansado (como era mesmo o nome do lugar onde os hobbits de “O senhor dos anéis” encontram pela primeira vez Aragorn (Viggo Mortensen) e por ele são salvos de serem mortos? Pois o Klein era a cara e a careca, mais a careca, do Gólum) tomamos banho quente – morno ou gelado mesmo, conforme reza a Lu. E como não tínhamos como sair com aquele pé d’água, ficamos no Klein, cuja diária só incluía café da manhã, traçando uns biscoitinhos muito dos muquiranas até umas quatro da tarde, quando parou de chover.

Mas continuava frio pra chuchu. Sei que fomos a um restaurante e fizemos um lunner (corruptela inventada agora para designar, em inglês, duas refeições em uma, no caso o almoço e o jantar. Num tem o brunch? Então pode ter o lunner). Sem poder usufruir das belezas naturais de Lumiar e não tendo como permanecer na pousada do Klein (a Lu me corrige e diz que a estalagem era um moquifo só), pois o silêncio era imperativo a partir das dez e meia da noite, fomos, todos, de ônibus até São Pedro da Serra, uma cidadezinha um pouco mais acima de Lumiar.