terça-feira, 27 de abril de 2010

Bebum, eu?

Em 1999, eu ainda andava sem ajuda de aparelho algum. Andava meio trôpego, arrastando os pés e volta e meia me amparava em paredes. Era efeito da Machado Joseph, que tornava mais penoso o meu dia-a-dia – não muito mais penoso, um tiquinho só.

Não podia passar em frente a um botequim impunemente. Os pinguços me olhavam como quem diz: “O que é isso, companheiro? Num pode beber, num bebe”. E de nada adiantava meus olhares mais irritados, que evidenciavam uma lucidez que só calava em mim.

Teve um cara que chegou a mexer comigo:

-- Tá ruim, hein, camarada?

Eu tropicava no nada, em frente a um pé-sujo na Barata Ribeiro, no caminho de casa, quando ainda morava na Nossa Senhora de Copacabana. É óbvio que nada respondi. Ia falar o que para o bebum?

-- Meu senhor, não estou alcoolizado. É que sofro de uma doença rara, uma ataxia spino-cerebelar, conhecida como Machado Joseph...

E diria isso com a voz pastosa, pois este cocô de doença também atinge a fala. Tá, o cara me entenderia e até se desculparia pelo comentário. Pois sim! Fiz a minha cara mais feia (o que não era nenhuma dificuldade), encarei o cara, tratei de buscar o prumo – ainda tinha prumo, naquela época -- e seguia adiante para ouvir outro comentário jocoso, noutro boteco mais à frente.


O prédio onde moramos até 2005 fica quase na esquina com Bolívar. Em cima de uma Bagaggio, uma loja de malas. De frente para a ruidosa Avenida Nossa
Senhora de Copacabana.

As crianças não tinham feito um ano ainda, quando, inconformados com o aluguel, resolvemos (eu e Claudia) comprar um apartamento, juntando o nosso fundo de garantia como entrada e financiando o resto a perder de vista. Bem, o apartamento da Nossa Senhora é enorme: três quartos amplos, uma sala imensa, que se subdivide em três, um cômodo grande demais para servir como corredor, mas era o que dividia quartos, banheiro, lavabo, cozinha e sala. As dependências é que são muito ruins: a área mal cabe dois secadores de roupa e o banheiro é quase inexistente. O quarto é ok, mas sem qualquer ventilação.

O que incomoda mesmo é o esporro que vem da rua. Um trânsito infernal durante o dia e a noite, batidas de carros no cruzamento de madrugada, freadas ríspidas e barulhentas de ônibus a qualquer hora, vândalos depredando tudo e todos no caminho a partir de uma da manhã...

Só fui ver o apartamento porque tinha me comprometido com o proprietário, que por telefone, me pareceu ser um cara legal. Foi honesto, falou que o apartamento era baixo (3º andar) e de frente. Não queria perder tempo com subterfúgios. Só queria lá gente que, de fato, estivesse a fim de encarar estes desconfortos. Era sábado, Claudia com o trio em casa – antes de nos mudarmos, morávamos no Leme, num apartamento maravilhoso na Roberto Dias Lopes, de fundos para uma encosta verde. Barulho? Nenhum. Éramos felizes moradores e sabíamos disso! Até chegamos a pensar em comprar ali no Leme mesmo, mas não tínhamos cacife. A prestação da Caixa ia ficar alta demais.

Bem, mas era um sábado. E era eu quem estava à caça de um apto. Combináramos o seguinte: nós dois nos revezávamos nas idas aos imóveis anunciados. Um gostando, os dois iriam checar condições. Bem, tinha acabado de olhar um apartamento insólito na Rua Barata Ribeiro (no anúncio dizia “com ampla vista para o verde”). Bah! O apartamento era colado ao túnel que transforma a Barata Ribeiro na Raul Pompéia e a “ampla vista para o verde” limitava-se aos tufos de capim e uma esquálida palmeira que insistiam em crescer em cima do túnel.
Já era uma da tarde e não queria me decepcionar mais. Quase voltei para casa, onde Claudia e os moleques, nascidos há nove meses, me esperavam para o almoço. Definitivamente, não tinha mais intenção alguma de morar numa rua movimentada e
Só fui mesmo por desencargo. Assim que toquei a campainha e me apresentei ao Marcos, filho dos donos do apartamento e responsável pela venda do imóvel,ouvi uma pessoa sentada numa mesinha, único móvel na enorme sala, o que aumentava significativamente a impressão de imensidão.
-- Eros querido – demonstrava toda a casualidade daquele encontro Ana, acho que Paula, divulgadora de uma grande gravadora e namorada do cara.

Bem, gostei do apartamento, Claudia também deu o seu aval. E graças a um despachante (de grátis não, foi pago pelo serviço) conseguimos agendar a grana que o sujeito pedia pelo apartamento dia 28 de dezembro (não tenho certeza quanto à data, sei que foi nos últimos dias de 1998). Senão, teríamos que esperar mais de um mês de recesso dos funcionários da CEF.

Bem, compramos, pintamos o apartamento e nos mudamos. Na primeira noite dormindo no novo apartamento, um calor de matar, um barulho ensurdecedor e uma convicção nada convicta no peito insone. “Eu não vou me arrepender de termos comprado a este apartamento; eu não vou me arrepender de termos comprado a este apartamento”, repetia, como um mantra, entre uma freada mais brusca de ônibus e o farol alto & buzinaço de um táxi. Algum tempo depois, instalamos um aparelho de ar-condicionado e uma janela anti-ruído – que conseguiu reduzir o barulho em 30%, 40%.

O prédio tinha quatro funcionários: o porteiro-chefe, que mandava em Deus e o mundo abaixo dele – contingente não muito vasto - outro porteiro, que ficava até as dez da noite, um faxineiro, que fazia às vezes de porteiro, e um vigia noturno, que ficava insone, sério, das dez da noite às seis da manhã do dia seguinte.

Soube do que vou lhes contar há pouco tempo, uns três, quatro meses. Mas aconteceu há, pelo menos, nove anos.
Na época, quem cozinhava e arrumava para nós era Esmeralda, uma senhora negra. Rose e, primeiro Derli, depois Priscila – mais tarde Rose ficou sozinha -- se revezavam tomando conta dos molequinhos.

Esmeralda é uma mulher “sacudida” para os seus 60 e lá vai fumaça. Fala muito e tem uma voz estridente. É uma pessoa maravilhosa, gosto demais dela. Ainda hoje ela nos visita, sempre quando Cremilda, nossa diarista de sempre (começou a fazer faxina para mim na Glória, em 1986, quando comecei a namorar a Claudia) está aqui em casa.

Sempre que chegava na portaria do prédio, me sentia aliviado. Eram breves instantes de uma paz, que sabia fugidia, mas que valia para respirar e relaxar.

Assim que eu entrasse em casa, a luta iria continuar, só mudaria o cenário da guerra: desde cedo no trabalho, não demoraria nada a ter pela frente um tufão que atendia por três nomes: Caio, Clara e João.

Então, quando cruzava a porta do prédio, vindo do trabalho, era como se todo aquele esforço que fizera para me manter equilibrado terminasse subitamente e eu pudesse relaxar. Subia o lance de escada que separava a entrada predial do elevador social quase me dissolvendo. E minha voz, já pastosa, em nada contribuía para consolidar minha figura:

- Oi, Zé. E aí, Antônio? – cumprimentava sempre informalmente o faxineiro, nordestino, e o segundo porteiro, acho que carioca, respectivamente.

Antônio era botafoguense doente – mas diferente de mim, que sou botafoguense e tenho uma doença. Ele era fanático, lia tudo nos jornais sobre o time. Sempre que eu chegava, entabulava uma conversa sobre o Fogão. Eu gostava de trocar idéias com ele, enquanto subia, trôpego, o lance de degraus.

E Zé atento à minha fala...

O horário do Arnaldo, o porteiro-chefe, era das seis da manhã às duas da tarde. Antônio pegava de duas às dez da noite, Eventualmente, muito eventualmente, eles trocavam. E também me dava bem com Arnaldo.

- E como vai a família, Arnaldo? – perguntava, repetindo o ritual – subia as escadas me dissolvendo, palavras saindo sonolentas da boca.

E Zé atento aos meus passos tortuosos...

O faxineiro pegava meio-dia e largava às oito da noite. Ou seja, só quando tinha “pescoção” no jornal – um tour de force para fechar a edição de um caderno ou determinada editoria – eu não me encontrava com ele.

Eis que num belo dia, Esmeralda chegava em casa para mais uma jornada de trabalho. E cumprimentou o Zé, que como sempre retribuiu e falava (mal) de algum condômino. Era uma briga de marido e mulher no 903 ou uma sova que o pai dera no filho mais velho no 401. Só que o assunto em questão não era outro senão eu.
-- Me explica uma coisa, d. Esmeralda: como a d. Claudia agüenta o seu Eros?
Esmeralda fez ares de avestruz, de completo desentendimento.
-- Hum??? - limitou-se a grunhir sua ignorância sobre o que Zé sugeria.
-- O cara chega mamado todo santo dia. Chega em casa trocando as pernas. E ainda tem as três crianças. Num entendo como ela num dá um pau no cara...

Foi aí que Esmeralda entendeu. E faltou pouco para ela dar uma porrada no Zé.

-- Seu infeliz. O Eros tem uma doença muito séria. Volta e meia, ele cai aqui dentro de casa – disse Esmeralda, que quanto mais nervosa, mais esganiçada falava. – E eu ainda dando papo para um imbecil como você.

Fechou a porta do elevador na cara feia e descomposta do Zé.

Hummmm!! Deve ser por isso que o cara, de repente, passou a carregar sacolas para mim em vez de apenas ficar torcendo para eu me esborrachar no chão.

Bem, eu e ele deixamos o número 960 da Nossa Senhora de Copacabana. Nunca mais o vi e imagino que ele também não mais viu este bebum que vós (hic!) escreve.

domingo, 4 de abril de 2010

T.S. 4.4

Além do despotismo com que administrou o C.I.V.R. e de sua boca exageradamente aberta, ao botar um violento chute a escanteio, guardo poucas recordações de Osvaldo. A que mais me lateja as têmporas é de seu desempenho não em “Dr. Jekill and Mr. Hide”, mas sim em “O médico e o monstro”, como a trama foi traduzida em português.
Foi este arremedo de montagem que inflou o ego do sujeito. Foi imediatamente antes de assumir a presidência do clubinho que ele encarnou o médico que descobre uma droga que o transforma no mais abominável dos homens.

Na TV Globo, o protagonista era vivido por Sérgio Cardoso, ator que morreria no mesmo ano em que o especial foi exibido, 1972. Não foi difícil para ele nos convencer quanto a sua predisposição para viver o protagonista. Era de longe o mais teatral da turma.

Engraçado...Eu não me lembro de qualquer outra montagem. Ou seja, não posso garantir que encenássemos sempre para fazer caixa. Mas lembro-me de flashes da encenação (encenação?? feita por moleques de 11, 12 anos?) de ”O médico e o monstro”.
A gente se empenhou para caramba. Montamos bancos com tábuas e formas cilíndricas de concreto. O quintal ficou cheio de gente, faturamos uma fortuna (dinheiro mais do que suficiente para comprarmos mariolas e marias-moles até num poder). Na única cena em que eu aparecia era dentro da casinha da Nora. Eu era o padre que ouvia as confissões terríveis do médico, que diferentemente do texto original, lembrava-se de todos os crimes cometidos enquanto monstro. Subitamente, quando o padre (eu) ficava aterrorizado com as barbáries cometidas e preparava-se para dar no pé, o médico, já sem conseguir controlar a bizarra transmutaçãa, avançava sobre ele (o padre,eu) e o (me) esganava.
Mas quem roubou olhares e risadas do público foi um primo de Wilkens e Nem, conhecido como Baianinho. Era imagem e semelhança do Cascão, personagem de Maurício de Souza, só que mais nanico. Como não tínhamos mulher na nossa confraria – menina alguma se interessou em fazer parte do C.I.V.R. e nunca imaginamos uma entre nós – um guri tinha que encarnar algum personagem feminino. Como achávamos ridículo se pintar e vestir de mulher, passamos o papel para o Baianinho, – que resmungou um pouco, mas aceitou. Ele -- que não era membro efetivo e só se juntava à gente nas férias -- interpretava a vítima que escapara de um ataque do médico/monstro e detonava uma caçada frenética ao protagonista.

“Montado” – nosso figurino tinha até uma peruca, gentilmente cedida por minha mãe – o moleque era ainda mais feio. Além de um batom que lhe esboçava a boca, lápis preto acentuavam seus feios traços. Usava uma blusa rosa, descombinando com sapatos altos vermelhos. Saia preta e meias-arrastão de igual cor completavam o figurino de Baianinho.
A cena -- ensaiada uma ou duas vezes – era a seguinte: o médico tentava seduzir a personagem de Baianinho. Quando enfim conseguia, cambaleava, e possuído por um ser maligno preparava-se para estrangular a “moça”, que conseguia se desvencilhar dos baços do monstro. E fugia, alertando perseguidores que no fim, davam cabo da criatura.

Assim foi no(s) ensaio(s). Nossa apresentação, marcada para às 19h, começara com uns dez minutos de atraso. Afinal, alguns de nós, atores, tínhamos que fazer às vezes de bilheteiros e lanterninhas, acomodando o público nas arquibancadas de tábua.
Na hora do ”vamo ver”, o Baianinho perdeu a peruca e aquele tufo de cabelos crespos encimava aquela figura grotesca, de batom, saia preta e meias-arrastão que esquecera a fala. Perdido em cena, ele fez uma cara de pavor e correu rumo às arquibancadas e seu desespero arrancou genuínas gargalhadas. Só que a nossa idéia era fazer um espetáculo que deixasse as meninas de cabelo em pé, medonho mesmo.

Mas quando nós, “atores”, voltamos à cena para os agradecimentos de praxe, o mais aplaudido, de longe, foi o Baianinho.


Outra recordação que guardo do Osvaldo não é propriamente dele, mas de Wilkens. Depois que Osvaldo e Paulinho foram para casa deles irreversivelmente
brigados conosco, Vito cismou que ia dar porrada nele e já no dia seguinte. Para isso, iria cercá-lo no campinho de capim em frente ao Recreio do Trabalhador, por onde Osvaldo tinha que passar rumo ao Macedo Soares. Osvaldo ia para o colégio de manhã cedo; saía de casa sete e meia, mais ou menos. Ou seja, Vito ia ter que acordar bem cedinho se quisesse dar uns catiripapos no Osvaldo.
-- Num tem problema. Acordo até de madrugada para dar um cacete naquele bostinha – dizia, convicto, Vito.
Wilkens era bem mais forte que Osvaldo. Mas era muito, muito, muito, muito mais feio. Sabe a morte? Pois ela rivalizaria em feiúra com Wilkens!! O cara tinha umas olheiras de zumbi, um nariz torto, uma boca feia, com dentes tortos e incivilizados. Era o....(pera, estou contando) sexto numa família de dez filhos. Valmir, Valdir, Valter. Wilson, Vilma, Wilkens, Aluísio, Maria de Fátima, Rosangela e Marcos. Escrevendo os nomes é que me toquei que todos até Wilkens deviam ser grafados com W. Quando o Nem chegou, os pais deviam estar de saco cheio de botar nome de filho começando com W e aí botaram os nomes que mais gostavam...a menos que...Nada, não. Por breves instantes, imaginei as certidões dos quatro últimos filhos de Seu Wilkens (sim, acho que Vito era Júnior) e dona Coisa (ela era a responsável pelas olheiras dos filhos). Waloísio, Waria de Wátima, Wosângela e Warcos. Exagero...
Mas Vito cumpria a ameaça e cedinho estava de tocaia no campinho por onde Osvaldo passava para ir para o colégio.
Quando viu Wilkens, deu sebo nas canelas; já devia prever um acerto de contas com o troglodita, que acho, também estudava de manhã, na Escola Pandiá Calógeras, que formava mão-de-obra especializada para a Companhia Siderúrgica Nacional. Vito ficou só nos xingamentos:
-- Foge não, viadim.
-- Arrombado. Vou te dar porrada.
Sabedor da tenacidade jumenta de Vito, Osvaldo dava uma volta muito maior atéo colégio, subindo a rua 31, onde ficava a igreja de Santa Cecília. O caminho era paralelo ao caminho original, só que mas cansativo e mais demorado.

Mais demorou apenas três dias para que Vito percebesse o estrategema de Osvaldo e preparar-se para, entocado perto da ponte na rua 26, quase na rua 31, surpreender Osvaldo.
O ex-presidente do C.I.V.R. vinha ressabiado e atento com tudo à sua volta. Percebeu que havia alguma coisa errada na ponte. Parou, como um antílope ao farejar o leão. Vito acreditou que poderia alcançar Osvaldo na corrida. Besteira. Osvaldo fugiu correndo de volta para casa.
Vito , mais corpulento, ficou muito atrás e teve que se contentar novamente em xingar o desafeto:
-- Covarde, bundão.
-- Osvaldicha!!
Não sei o que o Osvaldo contou ao pai, mas o Seu Lionel passou a levar – antes de ir para o Escritório Central, no coração da Vila -- e trazer Osvaldo a bordo do Simca. Como tudo era muito perto, Seu Lionel almoçava em casa com a família. Bem, Wilkens desistiu de dar um pau no Osvaldo.

Seguramente, há mais de 36 anos que não o vejo. A última notícia que tive do ex-presidente do C.I.V.R. foi que virara modelo.