sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Lagartixa em Ipanema 4.4.

Chega de tergiversar. Vamos voltar ao cerne da história.
Diante de nossa cara de espanto com o que acabara de nos contar – a expulsão dele e da mãe do morro – Lagartixa continuou seu discurso falacioso:
-- Achei que minha mãe estaria aqui. Quando penso nela subindo o morro...

Ele sabia que a mãe só trabalhava lá em casa às terças. Porque diabos ela estaria sábado à noite lá no apartamento? E como ele conseguira as chaves da porta dos fundos do apartamento?

Eram estas algumas das perguntas óbvias que devíamos ter-lhe feito, mas, nós (eu e Dudu) nos compadessemos daquele pobre diabo.

O cara ainda mentiu sobre seu estado – mais obviamente etílico e drogado, impossível.
-- Eu tombei quando forcei a porta porque estou nervoso e fraco. Só comi um pão com manteiga e um café preto hoje de manhã. E minha mãe, onde estará? – perguntava Lagartixa, já sabendo a resposta.
Fui até o telefone e liguei para a casa do Faria. Ele atendeu, falara rapidinho com ele e pedira que me chamasse a Anita.
--Alô, Anita? Tudo, tudo. Tranqüilo. É que o Lagar..., o Gilmar vai falar com você. Beijos.

Ouvimos o cascatol repetido ao telefone com Anita. Segundo o próprio Lagartixa nos disse, tão logo desligara o telefone, que a mãe chorara ao saber dos riscos que tornara uma volta à casa impossível.

Ao contar o desespero da mãe, Gilmar, sinceramente, chorou.

-- Sou um infeliz. Só faço besteira – disse, soluçando, enquanto lágrimas percorriam as faces e um ranho descia fino pelo nariz.

Eu só disse um “Que é isso, Gilmar?! Besteira o que você está falando.”

Dudu foi mais expansivo. Não ligou para o jeito maltrapilho nem para a sujeira no rosto do Lagartixa, dando-lhe um forte abraço.
-- Que infeliz o quê. Bola pra frente, Gilmar. Só tomou café e comeu pão com manteiga de manhã? Então deve estar varado de fome! Eu estava exatamente indo fazer alguma coisa para comer quando você “chegou” – disse um entusiasmado Dudu, instantaneamente transformado num chef de cozinha diante de um gourmet do porte do Lagartixa.

Eu desisti do sanduba no MasDonald’s, fiz um misto frio e tomei uma coca na sala diante da TV.

Quando cheguei na cozinha para lavar copo e pires, cheguei no exato momento Cordon Bleu do Dudu; na hora em que ele quebrava um, depois um segundo ovo sobre aquele mix azedo.

-- Chegou na hora, Eritos. Pega um prato e vem comer também –convidou-me Dudu.

-- Brigadão, Dudu. Acabei de comer um sanduíche. Vou ler um pouquinho e dormir. Boa noite, Dudu. Boa noite, Gilmar – disse, indo para o quarto..

Na manhã seguinte, passei pela sala, onde Dudu dormia sempre que tinha pooca gente no apartamento. Já esperava encontrá-lo ali.

Não esperava era encontrar o Lagartixa morgadão, metade do corpo para fora do quartinho. Quando me veio à lembrança aquele pequeno sauro pronto para saborear aquela desgraça preparada pelo Dudu. “Pronto. Empacotou. Meteu o nariz no pó e depois comera aquele mix do Dudu...”

Mas nem tinha aberto a geladeira para pegar leite para o café e eis que escuto logo atrás de mim.

-- Bom dia, seu Eres. Bati aquele rango que o seu Eduardo preparou e dormi feito pedra. Posso dar uma ligadinha para a minha mãe? –- cumprimentou ele, que insistia no seu antes dos nossos nomes (o meu invariavelmente pronunciado erradamente).

-- Bom dia, Lagartixa – aturdido com sua pronta recuperação (esperava, ao menos, uma senhora caganeira), chamei-o pelo apelido.

Ele não reparou ou fingiu que não ouviu.


Aí, lembrei-me que, além de tudo, Anita era mãe de Santo, macumbeira – nenhum preconceito quanto a isso, meus pais também eram.

De certo fechara o corpo de Lagartixa.

Lagartixa em Ipanema 3.4

Não sem antes dar-nos uma notícia bombástica. Relevante para nós, por conta da Anita, pois para o Lagartixa,
a gente tava pouco se lixando.

-- Nós fomos expulsos do morro – proferiu o sujeito, quando conseguiu balbuciar alguma coisa que fazia sentido. – Não sei o que houve. Estava subindo o Cantagalo, voltando de um bico de pedreiro num apartamento na Barão da Torre, quando o chefe do tráfico do morro, um negão imenso, o Tolete, e mais uns quatro armados até os dentes, me impediram que eu entrasse em casa. Acho que decidiram tomar o barraco por causa da vista.

Eu e Dudu nos entreolhamos. Eram notórias a ingerência e a desfaçatez do tráfico em qualquer morro do Rio de Janeiro. Os caras barbarizam moradores em luta contra a polícia e usam a população das favelas como massa de manobra. Como o Estado só sobe o morro para vandalizar e matar com sua polícia corrupta, os traficantes adotam uma função assistencialista. Pagam tratamento de saúde, compram remédios, bancam festa de debutante.... Acabam ganhando a simpatia de muitos moradores, o que lhe é muito conveniente na hora do pega para capar, quando os policiais sobem o morro.

Mas conhecendo a fama de Gilmar, era óbvio que aquela história era cascata!

Era bem mais provável que ele pegou pó para revender e não pagara ao cara do tráfico. A ficha de antecedentes, agravada pela voz oscilante e por aquele olhar 220 volts, nos dizia que ainda havia resquícios de pó do “banho” que dera no traficante na nareba do Lagartixa.

Pobre Anita, pensava eu, enquanto ouvia a versão mentirosa de Gilmar. Ainda bem que ela era idolatrada por muitos. Não teria dificuldade para encontrar um pouso. Só teria que se desfazer daquele traste do filho, um marmanjo de uns 35 anos que nada fazia, além de constranger a mãe.

Soubemos que ela ficou morando um tempo no apartamento do Touro, até se mudar definitivamente para a casa do Faria, quando o irmão se casou e mudou para outro apê com a mulher. O Lagartixa ficou na pista, ou melhor, foi morar na Baixada Fluminense, com uma tia, acho que em Belford Roxo. Faria não quis saber dele morando consigo.

A versão do Lagartixa, como suspeitávamos, era mentira. Ele sequer subiu o morro depois de ter dado um “banho” no Cocô Parrudo, ou melhor, no Tolete, o traficante local.
Um vizinho o avisara no asfalto que ele, Lagartixai, estava jurado de morte e o tráfico tinha invadido a casa onde vivia com Anita e tinha posto fogo em tudo que encontraram pela frente: cama, colchão, mesa, roupas, tudo.

Quem contou isso pra gente foi o Faria, pelo que conseguira filtrar da Anita, que como toda mãe, zelava irracionalmente pela reputação do filho.

A versão de Anita era muito mais amena e favorável ao Lagartixa. Ela estava sempre pronta a perdoar e minimizar os erros do filho. a quem sempre passava a mão na cabeça. E era comum lamentar a falta de sorte de Gilmar, “que nunca tinha tido oportunidade na vida”.

Lagartixa em Ipanema 2.4

Nossa faxineira, mãe do Gilmar, era algo. Negra retinta, devia beirar os 60 anos de idade. Sabe a mãe da “Fran”, “da Família Dinossauro”? Sogra do “Dino” “querida-cheguei”? Pois era a Anita, inclusive nos óculos, no quebradiço da pele – esticada e gasta pelo tempo, só pelo tempo -- e na estatura. Era magra que só e tinha uma vitalidade incomum.

Anita era extremamente batalhadora, gente boníssima, tava sempre de alto astral apesar dos perrengues que passava. Muitos dos dissabores tinham uma única fonte: Gilmar ou Lagartixa, como era conhecido nas internas – internas do nosso apartamento. O cara mais parecia uma iguana, um ser meio ancestral desses que habitam Galapágos. A ilha, no Pacífico equatoriano, foi crucial para Charles Darwin desenvolver sua teoria do Evolucionismo.


Anita era faxineira de Touro e Cozido. Touro era um cara de Barra Mansa, que se tornara o melhor amigo de Cozido ou Faria, companheiro nosso de velhos tempos – estudei com Luís Henrique Faria Marques, na 3ª série primária do Nossa Senhora de Fátima. Era uma escola de madeira que ficava na rua 40 quase esquina com 41, vizinha ao Poeirinha, como era chamado um antigo cinema da Vila. Ambos não emplacaram os anos 80. Foram destruídos. Hoje, um shopping ocupa o espaço onde outrora existia o cineminha e a escola.
Além de gente boa, Anita era bom papo, antenada. E aos 60 anos tinha fôlego de causar inveja em muito garotão: fumava maconha como gente grande e não dava qualquer bandeira, mesmo depois de consumir uma tora.

Mas diferentemente do pessoal de Barra Mansa que morava com o Touro, o próprio e o Faria, que dividia o apartamento da família com o irmão mais velho, nós não a entronizamos como pitonisa. Menos que pelo seu potencial de xamã – eram vastas e invejáveis suas sabedoria popular e tranquilidade diante das adversidades da vida – mais pela intensa rotatividade da nossa república. Nos três anos em que morei lá, nada menos do que 12 pessoas se revezaram no apartamento de dois quartos na Farme de Amoedo, quase esquina com Alberto de Campos. Assim era impossível canonizar alguém, mas beatificada por nós, Anita era.

Nunca dormiu lá em casa, o quartinho da área não tinha espaço para uma cama. Havia um móvel que ocupava metade do quarto e um monte de tralhas que deixávamos lá.

Pois naquela noite de sábado em que só eu e Dudu estávamos no apartamento, quem dormiria no quartinho, largado no chão, em cima de uns edredons foi o Lagartixa.

Lagartixa em Ipanema 1.4

Era 1984 e embora curtido por três anos na Universidade Federal de Viçosa – anos perdidos em termos acadêmicos, mas de grande valia pessoal – mantinha o fôlego de universitário.


Estava no 3º ano de jornalismo na FACHA, uma faculdade em Botafogo. Dividia o apartamento em Ipanema, na Farme de Amoedo, com ...Caraca! Foi tanta gente que passou por lá que não estou bem certo de quem morava lá na época. Bem, acho que Dudu, Rogério, Tasso e Enéas dividiam o apartamento comigo na época.

Mas neste episódio bastava citar o Dudu. Irmão mais novo do Enéas, eu o conhecia desde molequinho mesmo, quando ele tinha 5, 6 anos. Era completamente diferente do irmão, meu grande amigo, com quem eu estudara os três últimos anos no colégio. Chegara ao Rio um ano antes para cursar engenharia na Santa Úrsula, faculdade vizinha ao Palácio Guanabara, em Botafogo e morava com o Diano, amigo de infância dos tempos de rua 40.
Só que, indecisão em pessoa, Dudu desistiu de engenharia e, no ano seguinte, fizera vestibular para duas faculdades diametralmente opostas: arquitetura, na UFRJ, e jornalismo, na PUC. Levou, acho que por ano e meio, as duas faculdades; uma no Fundão, Iha do Governador, outra na Gávea. Simultaneamente a esta maratona, mudou-se para a república do irmão.


Enéas, seis anos mais velho, já há muito tinha traçado seu caminho. Seu pensamento exato, sua precisão, seu pragmatismo o levaram até a engenharia mecânica, primeiro na UCP, em Petrópolis, depois na PUC do Rio. Era seu último ano na faculdade.

Achava Dudu bem parecido comigo. Era hesitante, questionava tudo, era sensível (SENSÍVEL, nada a ver com boiola, mané).

Acho que optara pelo jornalismo um pouco por influência minha... Gostaa do moleque como se fosse meu irmão caçula (eu tinha 23; ele, 18 anos, e nesta época da vida, fim da adolescência, cinco anos davam-me alguma experiência a mais). Havia uma diferença gritante entre nós dois, porém: enquanto Dudu era “pegador” – ficava com as meninas mais cotadas – eu era um fiasco com meninas, cotadas ou não.


Lembro-me bem da chegada do Dudu ao apartamento de Ipanema. Foi num fim de tarde de domingo, no início de março, véspera do primeiro dia de faculdade. Dudu aportara de mala e cuia.





Assim como o Enéas, era bagunceiro toda a vida. E logo na chegada, dera mostra de seu desmazelo, deixando a mala de roupas no chão da sala. Depois de uma breve recepção de boas-vindas, protagonizada por eu e Rogério – os únicos no apartamento àquela hora.

Mais de uma hora se passara e a mala de roupas continuava na sala. Só que agora estava aberta; Dudu havia tirado uma toalha e tomado uma ducha. Aquela hora, todos ao moradores do apartamento estavam por lá. Estávamos todos na sala, quando Dudu foi pendurar sua toalha no boxe do banheiro.

-- Vamos ver o que este moleque trouxe de casa...— disse Enéas, enquanto vasculhava a bolsa do irmão.

Ele foi muito rápido. Jogou todas as roupas no chão. Caíram meias, cuecas, shortes, calças, camisas e por último, para desespero de Dudu, que tinha retornado à sala, uma bíblia.
Enéas foi fundo no escárnio.

-- Olha só, Uma bíblia. Sinto, Dudu, mas isso não vai te ajudar, na faculdade de arquitetura não. Talvez na de jornalismo... – zombou Enéas, narigão vermelho de tanto rir.

Rogério e Tasso acharam graça. Dudu apressou-se em tomar o livro das mãos do Enéas:

-- Imbecil, babaca – disparou Dudu para o irmão, que agora se regojizava da descoberta, que rendeu pelo menos uma semana de zoação para o Enéas em cima do irmão mais novo.

Dudu era fissurado numa gororoba chamada mexido. Consistia num mixer de sobras jogados numa frigideira, misturados. Ia à mesa como gosma, e o cara que comia só continuava vivo se Deus estivesse mesmo muito empenhado. Mas Dudu não só sobrevivia àqueles guisados de sobras como exultava quando encarava a solene missão de recolher restolhos na geladeira e transformá-los numa gororroba incomum.

Naquele fim de semana, eu e Dudu não subimos para Volta Redonda – por motivos distintos. Ele, a pretexto de estudar; eu combinei de sair com amigos da faculdade.

Pois sábado à noite, estávamos os dois em casa, assistindo TV. Dudu estudou a tarde e parte da noite. Eu fora na primeira sessão do cinema Veneza, em Botafogo (lembram-se?).
Acabou o Jornal Nacional e Dudu migrara, rápido, para a cozinha.

-- Erão, vou preparar um mexido. Vamos nessa? – ofereceu, berrando da cozinha para a sala.

-- Tô fora, odeio isso. Você junta todas as porcarias que encontra na geladeira...Argh, que nojo! Prefiro um MacDonalds. Quer ir não? — respondi, engatando um capítulo da novela.

Dudu investigava a geladeira. Um resto de feijão feito na terça anterior, um tanto de arroz, um cadinho de purê de batata, uma espécie de picadinho. Depois de tudo mexido, qual argamassa de cimento, Ulalá!!! Um ovo estrelado por cima! Um senhor bate e entope!

Foi quando ele reparou que a porta dos fundos estava semi-aberta. Dudu apressou em fechar e...

-- Eritos, corre aqui!!! – berrou Dudu da porta dos fundos.

Quando cheguei, Dudu estava estapeando, devagarzinho, um desmaiado Lagartixa, que era como nós chamávamos o filho da Anita, nossa faxineira.

-- Gilmar, acorda, Gilmar! – sacudia Dudu um inerte Lagartixa. -– Eritos, me arruma um pouco d’água.

Lagartixa, um sujeito magro, preto e baixo, jazia junto à porta. Ele desfaleceu quando conseguira abri-la. Ou seja, quando a resistência da porta cedeu, ele desabou, de tão chapado que estava.

Dudu sapecou água nas têmporas, mas nada.
-- Caraca, pelo bafo, o cara entornou legal –- afirmou Dudu, voltando a estapeá-lo, agora com mais força. – Isso é o que dá para perceber com ele apagado. O cara também deve estar cheiradaço.



Depois de mais uma sessão de tapas e de copos d’água na cara, Dudu soltou um muxoxo, fruto da impotência.

--Desisto – disse, enquanto tirava a cabeça do Lagartixa do colo.

Acho que o quicar da cabeça o acordou. O cucoruto em contato com o ladrilho frio da cozinha fizera Gilmar despertar.

Olhos esbugalhados, saliva acumulada nos cantos da boca, Gilmar acordou trôpego, e ansioso tentou levantar-se, e antes de estabacar-se novamente, bateu a cabeça na parede de ladrilho azul fazendo um esporro colossal.
-- Caralho!! -- riu Dudu baixinho para mim. -- Senta numa cadeira, Gilmar.