sábado, 27 de fevereiro de 2010

ts.2.4

A T.S. foi uma das últimas iniciativas de Osvaldo como nosso líder. Eram muito ridículos nossos ensaios de vandalismo. Algumas vezes, lá pelas oito da noite, executávamos um bailado estranho às margens do riacho que, idilicamente, separava (ainda separa) a 27 da rua 31.

O riacho ficava a uns seis metros abaixo do nível das ruas, que só tinham um lado de casas. Em frente a elas havia um jardim gramado, com eventuais canteiros de plantas que adornavam o longo jardim – uns 2.000 metros quadrados.
Até as vertentes do rio eram gramadas. Às margens dos dois vórtices, árvores grandes (acácias) separadas a cada 10 metros, distância igual para românticos banquinhos de madeira.

De tempos em tempos, quando cruzava com ruas como a 33 e a 26, o regato corria sobre pontes. A única pinguela que existia além das trafegadas por carros, ficava em frente à minha casa, e mais tarde, uns cinco ou seis anos depois, nos a chamávamos de “Ponte das Anharips”-- Piranha + s, no dialeto popular “de-trás-para-frente”. Casaizinhos se apertavam até num poder nos bancos à noite, sob a luz bruxuleante de postes que acendiam pontualmente às 6 e meia. A área foi, por um muito breve instante, apropriadamente batizada pela Prefeitura de “Jardim dos Inocentes”. Quando os casais descobriram o potencial, digamos, “romântico” do lugar, o título virou ironia.

E os casais de namorados viraram o nosso alvo preferencial em potencial, sempre em potencial. O inusitado bailado que praticamos algumas vezes consistia em simularmos ataques com sacos de água em casais agarrados nos banquinhos. Um descia para o vale onde ficava o rio ao lado da pontezinha, munido de quatro sacos d’água, até o degrau mais alto e amplo dos três que margeavam diretamente o riacho, e abastecia moleques diretamente postados em frente aos bancos que tinham namorados. Ia o mais rápido e furtivamente possível. Treinamos esta ação umas quatro vezes, sem efetivamente molharmos um casal sequer.
-- Uai, se já estamos lá embaixo com os sacos d’água porque simplesmente não os tacamos nos namoradinhos? – perguntava, entre rude e óbvio, Vito, o Wilkens.
-- Premeditação – responderia, com ar cansado, Osvaldo, tivéssemos este vocábulo em nosso limitado léxico de criança.

Pois toda graça vinha do ataque-surpresa e da ação coordenada.

Assim, o único ato de sacanagem do qual participei, junto com o Paulinho Cabeção, foi uma pedra grande, meio-tijolo, atirada contra a porta da última casa do lado ímpar da rua 20.

Eu e Paulinho atrás da árvore a uns dez metros da entrada da casa de uma senhora, que assustada com o barulhão, abriu a porta para checar o que tinha acontecido. Entre assustada e atônita com o pedrão e a tintura da porta agredida pela mesma, resignou-se a balançar a cabeça, desaprovando aquela ação de vândalos. Antes de entrar, pegou no colo uma criança que imergiu da sala em seu encalço.
Assim que a mulher fechou a porta, Paulinho deu um soco na outra mão estendida e aberta
e caprichou no berro surdo:
--Yes! (Não, não, não. Naquela época não havia esta expressão e Paulinho Cabeção estava longe de ser “um filósofo de depois de amamhã”, como acreditava, muito apropriadamente, Niestzche em vida). Mas Paulinho ficou exultante com nosso ato de guerrilha urbana.

Já eu, não. Me arrependi antes mesmo do pedregulho tocar a porta da mãe do menininho.


Eu tinha alma de coroinha, embora cedo, começasse a simpatizar com o espiritismo. Tinha uma necessidade quase mórbida de partilhar com os outros os meus erros. Assim, enquanto Paulinho deve ter repousado seu cabeção no travesseiro e dormido o sono dos justos, minha noite de sono foi horrível. Demorei a dormir,dormi pouco e quando despertei, estava tomada a decisão: ia me desculpar pelo calhau na porta.

Quando comuniquei isso para a rapaziada, foi um “Deus nos acuda”.
-- Caralho!! Não faz isso não. Você vai botar toda a nossa operação em risco – argumentou Paulinho, com anuência vibrante de Osvaldo.

-- Que operação? Que risco? – perguntava eu o óbvio.

Paulinho Cabeção mais parecia um fósforo por acender. Era um moleque baixo, magricela e cabeludo, um cabelo liso, cortado na altura dos ombros. Acho que muito de sua notória cabeça, que lhe rendera o apelido, devia-se às suas mechas. Tinha hábitos estranhos: conversava com formigas e dizia ter poder sobre elas. Puras ilusão ou cascata.
--- Vamos, minha nêga. Vá até aquela árvore e me traga aquele raminho – ordenava Paulinho a uma formiga preta, grande, com ferrão e bunda amarela, dona de uma picada doída pra caramba, equilibrando-a sobre o dedo indicador.
Geralmente a formiga ia para a árvore, se escapasse do ataque furioso de Paulinho, em revide a uma ferroada tão logo caminhasse o primeiro centímetro de dedo.
Como ele vivia com os dedos inchados devido à desobediência dos insetos, acho que ele acreditava ter mesmo algum poder sobre os bichos. Ou então era um noviço masoquista.

Sei que estava resoluto em minha decisão (quase um ato religioso) apesar das muitas advertências em contrário, argumentadas por Paulinho e Osvaldo. O resto da turma só achava ridícula e desproporcional minha obsessão em esclarecer o episódio com a dona da casa.
-- Não machucou ninguém – afirmava, inapelavelmente, Marcos.

Mas minha decisão já estava tomada. Foi falar com a dona da última casa do lado ímpar da 20.

Constrangedor. Eu me desculpava por um acidente que não houve, mas que poderia ter havido. A mulher, que trazia o filho no colo quando atendeu a campainha, demorou um pouco a entender o que eu queria, tamanhas eram as hesitações e o gagejar em meu discurso.
Isentei o Paulinho de qualquer culpa, isto é, não toquei no nome dele. Tomei para mim toda a responsabilidade pelo “terrível” ato terrorista. E aí ela me fez uma pergunta que não tinha resposta e significou o início da derrocada do império osvaldino: “Por quê”?

Saí da casa da mulher em paz com minha crônica culpa judaica (?)-cristã. Mas aquela dúvida me latejava na mente. Por quê? Por quê? Por quê aceitávamos aquele julgo idiota e --- embora nunca posto à prova – maligno do Osvaldo? Seria mais justo fazer a pergunta no singular. Era eu quem dava suporte à ascensão do Osvaldo. Afinal, era no quintal lá de casa que ficava a enorme casa de boneca da minha irmã, sede do Clube Infantil de Volta Redonda (C.I. V.R.), sempre gerenciado, talvez sem objetivos, mas sempre com gentileza. Na administração do Osvaldo, a volúpia tomou forma, assim como a ambição. Desavenças começaram a brotar no grupo, unido em tudo, principalmente nas tolices. E a T.S., que nos lançaria num mundo completamente diverso do nosso, naufragara antes de qualquer ação maquiavélica.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

TS 1.4

T.S. . Turma de Sacanagem. A gente nunca tinha ouvido falar, mas pareceu a todos uma idéia promissora. Quem veio com esta história foi o Osvaldo, irmão mais velho do Paulinho Cabeção, quando, “alemães” que eram, se infiltraram na nossa turma. Osvaldo, com minha ajuda – culpa já assumida e prontamente desculpada – chegou a tocar o apito de líder. Por pouco tempo, graças a Deus.


Uma T.S. seria um bando de moleques – nós, bocós por completo, sem o menor traquejo em investidas agressivas -- concentrado em ações terroristas a namorados, cachorros, vizinhos mais velhos e o que mais pudesse se tornar um alvo em potencial. E não haveria de ter alvos, prometia, exagerando o tom, o Osvaldo.

Nós, os bocós, éramos sete pacíficos garotos (tínhamos entre 11 e 14 anos): eu (morador da casa 30 da rua 27), Samuel (da casa 24), os irmãos Marco e David (do número 20) e mais três guris da rua 20, uma das quatro transversais da 27, que separava meu quarteirão do das casas do Muel e de Marco & David. Minto: na época do Osvaldo, estávamos brigados com o Cláudio Esperança. Os únicos da 20 a integrarem nossa turma era o Vito (o nome verdadeiro deve ser o mesmo de um clássico da literatura eslava, Wilkens) e o Nem (apelido mais plausível para um simplório Aloísio).

Irmãos com uns quatro anos de diferença, Osvaldo e Paulinho moravam na mesma 27. A exatas quatro casas e mais uma ruazinha transversal, a 22, da minha. Um continente de distância, hábitos e língua diferentes – não, não, língua não -- em nossa imaginação de criança.

Não me lembro do ponto de contato. Acho que o Osvaldo queria agarrar num time - desde que o Topo Gigio, mítico time no qual ele era goleiro, e Paulinho, reserva absoluto, pois era um zagueiro muito do perna-de-pau, fora extinto ele não mais jogara. E via potencial em nosso time, os Falcões – plágio descarado do Águia, equipe que só reunia gente da rua 22. O Águia media forças com o Topo Gigio pela hegemonia dos campinhos que pipocavam na 27, às margens de um afluente do rio Brandão.
Osvaldo era bom goleiro, embora se achasse muito melhor do que realmente era. Muito exagerado, tinha como hábito de abrir excessivamente a boca, como a salientar a importância do fato que protagonizara ou testemunhara. Valera-se de ser mais velho e suficientemente maduro para assumir o controle de nossa turma – que tinha dois moleques de 10 anos, David e Muel; eu tinha 11; e Marcos e Nem, 12. Vito ou Wilkens era da idade do Osvaldo, 14 para 15, mas intelecto e sensibilidade não eram nem Tico nem Teco na cachola dele.

Um exemplo da sagacidade do brutamontes. Certa vez, aflita com o destino das borboletas implacavelmente caçadas por Wilkens, Nora, minha irmã, pediu, chorosa:
-- Num mata elas não, Vito.
-- Num tô matando não, Norinha – tranqüilizou-a o toupeira, completando a sentença: -- Só estou arrancando as cabecinhas.
Nosso time tinha dois caras bons de bola: eu e o Nem, que éramos magros de ruim (eu ainda sou); o Vito, truculento e vigoroso zagueiro – do pescoço para baixo, bordoada não era falta; Marquinhos, David, Muel e Paulinho eram uma mulambada só.
Mas o Osvaldo viu em nós mais do que apenas um bando que jogava bola.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Tênis no toró 1.2 (lembrança do turteis)

Eis que me ergo do sofá-cama, puto, e aos primeiros acordes de “A volta do boêmio” (“Boemia, aqui me tens de regresso/e suplicante te peço a minha nova inscrição”), sucesso imortalizado por Nelson Gonçalves, nas vozes zombeteiras de Enéas e Artur, pego um par de tênis e isolo um por um pela janela da casa do Pontal, em Angra.

Chovia horrores, mas a janela estava escancarada por conta do calor e como não chovia de vento, a água não respingava no quarto.

Ao meu ato, bradei, silhueta iluminada por raios que a tempestade vomitava, intensificando o toró (de “silhueta” até “toró” foi só para conferir dramaticidade à ação):
-- Eu avisei! Agora quero ver neguinho ir buscar o tênis lá fora com esta chuva!!

Naquele dia de janeiro de 1977choveu pesado até às 6 da tarde, quando a chuva deu uma estiada boa e conseguimos ir ao I.C.A.R.

Éramos em cinco: eu, Cláudio Esperança, Enéas, Lair e Artur, este já um músico fabuloso (tem um dom raro mesmo entre os músicos consagrados – ouvido absoluto). E obviamente sempre o Artur levava consigo um instrumento -- naquela noite, um violão. Ele, hoje um maestro, naquele tempo já era o centro de qualquer rodinha: bastava alguém cantarolar um fraseado que ele tirava a música. Isso é ouvido absoluto.

Bem, sentamos numa mesa e logo começou a juntar gente. Artur tocou as indefectíveis e, por isso mesmo, insuportáveis “Andança” e “Travessia”, e mais umas dez músicas. Mas nos mandamos de volta para casa quando começou a ventar forte do mar para o continente, sinal de que chuva forte não tardaria a cair.

Estranhamente – não sou um cara mau-humorado – estava chateado. Um pouco pelo chuvaréu que fez daquele dia um tédio, muito pela presença do Lair passando dias lá em casa.

Lair era um cara legal, jogava pelada com a gente, foi titular da primeira seleção de basquete do Clube Recreio do Trabalhador, formada pelo Paulinho Camargo. Nada contra, em absoluto.

Mas estava pau da vida, porque eu, o dono da casa, não o havia convidado para ficar lá com a gente. Íamos sempre a Angra e calhou de esbarrarmos com ele. Lair estava na casa de primos e dali a dois dias ia embora para Volta.

No dia seguinte, o encontramos novamente em frente a um supermercado. Até passamos um constrangimento juntos: entramos no mercado, três de nós – acho que o Cláudio e o Artur não fizeram a besteira – abrimos iogurtes, tomamos e jogamos no lixo do mercado, antes de irmos ao caixa pagar nossas compras: pão de forma, margarina, leite longa-vida, miojo, velas e outros itens de sobrevivência na meia-água sem luz.
A caixa cobrou-nos:
-- $ (não me lembro a moeda e o valor é chute) 28,80.
Tirei $30 do bolso e dei para ela.
Nisso ouvimos a voz possante de um segurança:
-- Cobra mais $ 2,40, Marta. $ 0,80 por cada iogurte que estes “senhores” tomaram no passeio pelo Epa (nome fictício do mercado).
Sequer tentamos uma desculpa esfarrapada. Rubros de vergonha, coletamos mais $1,20 e demos no pé, rapidinho.

Quando íamos para o terminal rodoviário pegar o ônibus para o Pontal, Lair veio atrás.
-- Ei, ei. Vou ficar com vocês --
disse ele, que só trazia uma mochila não muito cheia. – Tinha decidido ir embora hoje mesmo. Já ia para a rodoviária quando encontrei vocês. E já é sexta. Posso muito bem ficar com vocês até segunda.

Cabia a mim cortar a permanência dele conosco, Afinal, a casa era minha. Eu era o senhor do castelo. Sem luz, com água fria, calor, mosquitos, mas era o meu castelo. Sua decisão de ficar entre nós sem qualquer consulta me deixou puto. Mas como era de meu (péssimo) feitio, não fiz qualquer objeção.

Bem, uma vez explicada a razão do meu azedume, voltemos para o meu brado, naquela noite tenebrosa. Tínhamos, diante da ameaça de chuva, voltado para casa antes das 10 da noite.
Chegando em casa, estendemos as duas redes na varanda, Artur, de violão em punho, puxava músicas bacanas de Milton e Gonzaginha, mas esquecêramos que nenhum de nós tinha voz. Mesmo o Artur tinha uma voz de pequeno alcance. E rapidamente começaram as galhofas tocadas por Artur, interpretadas por Enéas e Lair. Sei que aquelas asneiras foram me enchendo o saco. Quando esboçaram “Mariazinha do bole-bole”, me levantei da rede.

-- Chega! Vou dormir, que é o melhor que eu faço. E vê se não fazem muito esporro, tá? – fui para o quarto, seguido pelo Cláudio, também puto com a cantoria.
Fechamos a porta, mas a cantoria desafinada prosseguia, agora mais alta. Berrei lá de dentro:
-- Podem diminuir o volume?
Pelo sorteio, o sofá-cama cabia a mim e ao Artur. Cláudio dormia num dos colchões num canto do quarto.
Por alguns segundos, a cantoria cessou. Mas deu lugar a risos abafados, sinal que a sacanagem continuaria.

A chuva era intensa em volume, mas nada de vento. Os caras – Enéas, Artur e Lair – foram miar debaixo da janela escancarada, já que tinha uma laje de uns 30 centímetros em torno de toda a casa. Cantaram uma besteira qualquer e, rindo, voltaram correndo para as redes.

Ainda dei uma de macho, saindo do quarto e ameaçando:

-- Porra, num dá pra sossegar o facho, não? Guarda um pouco deste humor para amanhã... Eu tô avisando, já estou cansado, quero dormir...

--Ah, ele tá cansadinho...Vamos fazer silêncio, gente – desdenhou Enéas.

Novo silêncio entrecortado por risadinhas. Bem próximo da porta, acordes, gargalhadas e cantoria rápida. Não mexi um músculo. Voltaram a cantarolar perto da porta, esperando que eu saísse do quarto. Como não saí, Enéas e Artur adentraram o quarto – Lair ficou na rede – cantarolando “Boêmio”.


Eis que me ergo do sofá-cama, puto, e diante de zombeteiros Enéas e Artur, pego um par de tênis e isolo um por um pela janela da casa do Pontal, em Angra.

Ao meu ato, bradei, silhueta iluminada por raios que a tempestade vomitava, intensificando o toró (de “silhueta” até “toró” foi só para conferir dramaticidade à ação):
-- Eu avisei! Agora quero ver neguinho ir buscar o tênis lá fora com esta chuva!! (Ei, ei, eu já vi isso antes. Será que foi no cinema? Observação: isto é ironia, claro. Este é um recurso relativamente comum no cinema. Narrar um fato, recorrer a flashbacks até chegar à tal ação novamente e continuar daí a narrativa.)
Imediatamente Enéas vai até onde estavam as coisas dele, tateia no breu e encontra seu par de tênis. Entre risadas dispara:
-- Meu tênis táqui.
Artur procura os seus, os encontra e também anuncia, intensificando as risadas:
-- Os meus também estão a salvo.
Como os do Lair estavam nos pés dele, e o Claudio, meu aliado, comentou, sem conter o sorriso – uma vez que a situação era engraçada pacas - que os dele também estavam livres da chuva, só me restou dormir mais furibundo ainda. Com aquele tiro no pé, minha moral caíra e escorria como a chuva que encharcava os meus tênis.
Os caras resolveram acabar com a cantoria e vieram dormir. Trocaram um monte de gracejos diante da minha hilariante vacilada, mas o que realmente me incomodava, até cair no sono, eram as risadinhas abafadas do Enéas deitado no colchão dele.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Pneu furado

Isso aconteceu ainda na fase “porra louca” de meu pai, quando minha mãe ainda era viva. Não sei o ano; sequer garanto a década. Vou ser o mais preciso possível: foi entre 1975 e 1983, respectivamente, o ano seguinte à fratura da perna direita de d. Leonor e o ano da morte dela.

Minha irmã Nora “encontrou casualmente” meu pai no bairro do Aterrado, num bar em frente à delegacia. Isso a uns cinco quilômetros de casa, uma ida de ônibus da Vila ao lá e às 11 da noite. Mas Norinha o convenceu de que estava na casa de uma amiga. Voltava para a Vila quando passando em frente ao botequim que meu pai freqüentava, divisou-o numa mesa junto a velhos e novos amigos de bar.

- Oi, pai - apressou-se ela a cumprimentar o Celinho, antes que algum daqueles vira-latas que o acompanhavam mexesse com ela.

Livre do constrangimento que um gracejo poderia desencadear, Norinha sapecou dois beijos nas faces semi-barbeadas do pai e continuou:

-- Eu estava na casa de uma amiga, a Dilma, quando passei em frente ao bar e vi o senhor. Aí, pensei: “vou esperar ele acabar o papo e pegar uma carona com o Celinho”.

Tão logo ela chegou, fez-se silêncio na mesa e um velho conhecido de meu pai – não posso chamar aqueles trastes de amigos – até cumprimentou-a.

--E aí, Eleonorinha. Acompanhando o pai? Cadê o cavaquinho, Celinho? Busca ele no carro, vai – disse Hamilton, o único daquela corja que não tinha interesse em jogo com meu pai.

Celinho odiava quando chamavam o bandolim dele de cavaquinho. Para ele era uma depreciação. Não tanto, embora também, pelo diminutivo; mais pela completa ignorância musical de quem confundia os instrumentos.

Mas foi minha irmã que gelou diante da possibilidade de ter que acompanhar o pai,numa quinta-feira, saindo sabe-se lá que horas do boteco. O dia começava cedo para ela na Cobrapi, uma empresa que prestava serviços à C.S.N.

Mas indiferente ao pedido de Hamilton, farmacêutico do hospital da companhia, e da troca indesejável de seu bandolim pelo cavaquinho, Celinho pediu ao garçom “a dolorosa”, isto é, a conta. Pagou aquela montanha de cervejas e pratos de aperitivos, consumidos por ele e mais sete camaradas, que falsamente e sem qualquer convicção protestaram diante do pronto pagamento.

E foi-se embora com a Norinha, despedindo-se apenas de um – o Hamilton – e outro. Na verdade, ele conhecia bem seu séquito de aduladores.

Logo que entraram no fusca – meu pai teve vários fuscas – 1.300 cilindradas, branco, minha irmã notou que não seria tarefa das mais tranqüilas chegarem sãos e salvos em casa. Saindo da frente do botequim, onde tinha estacionado, meu pai quase bateu num TL que vinha em sentido contrário.

Mas Norinha tinha know-how em viver perigosamente, tantas vezes no banco de carona com meu pai dirigindo alcoolizado. Ainda bem que embora em outro bairro, o caminho até minha casa era uma enorme reta. Mesmo assim, antes do meio do percurso -- a rodoviária da cidade – meu pai acelerou demais da conta e só parou quando ficou engastalhado num guard-rail que dividia as pistas e o pneu dianteiro direito furou. Graças a Deus, o baque e o esporro foram maiores do que os estragos: meu pai e Norinha saíram do carro ilesos.
¬-- Tudo bem, Nora? – tratou de certificar-se o que a aparência de minha irmã denotava, apenas susto.
-- Hã, hã...E com o senhor, tudo tranquilo? –respondeu e perguntou Norinha.
Sim,estava tudo normal. Minha irmã soube disso tão logo Celinho exclamou, com voz pastosa:

-- Puta que pariu! Como é que deixam esta bosta no meio da pista? Alguém tinha que bater!

Caraca!! O cara estava maldizendo o guard-rail que separava as pistas. É bem verdade que já estava todo destroçado mesmo antes de meu pai passar por cima dele. Mas se não fossem os restos do obstáculo, o fusca atravessaria para o outro lado, só parando num veículo vindo em sentido contrário ou num muro chapiscado do outro lado. Os destroços da divisória haviam salvado os dois.
Continuou com a cantilena alterada pelas cervejas muito além do razoável:

-- E agura? Estamos fodidos e mal pagos. Já passam de 11 da noite e vai ser ruim a gente conseguir ajuda.

Nora estranhou a fala recheada de palavrões. Não que o Celinho não os usasse. Falava, e muito!! Era um senhor boca-suja!! Mas aqueles palavrões nada tinham do tom irreverente do meu pai. Mas Norinha creditou o timbre áspero ao grau etílico em que nosso pai se encontrava.

Celinho tomou coragem para ver o estrago no valente fusquinha. Aproximando-se do parachoques dianteiro e constatou que os únicos danos foram o pneu direto furado e algumas avarias na lataria dos dois paralamas, mas isso é o que mais tinha no fusquinha, agredido que era todo dia pelo Celinho.

-- Vamos ver se funciona – disse o pai para Nora, enquanto virava a chave, com o carro em ponto morto. O fusquinha deu sinal de vida quando Celinho acelerou, fazendo esporro.

-- Acho que foi só o pneu furado – disse Celinho, sem descer do carro.

Manobrou o fusca, livrando-o dos destroços do guard-rail, desceu e retirou o estepe – careca que só – do capô dianteiro. Começou a desaparafusar o pneu, mas pela sucessão de palavrões proferidos, não estava logrando êxito.

Nisso, minha irmã vê dois sujeitos se aproximando do meio da pista, onde ela e Celinho – naquele momento brigando com o f%$#@ do pneu e aquela p%$#@ de chave de boca – estavam. Um negão, imenso, com cara de poucos amigos, e outro de cabelos castanhos-claro, quase louro, barba agreste por fazer.

Se estivesse falando, como era seu costume, Norinha teria se calado. Na falta de assunto, só alertou o pai, temerosa de que saqueadores tivessem descoberto a diligência avariada.

- Pai, pai - disse, aproximando-se do Celinho, que se contorcia em força inútil contra aqueles parafusos do c%$#@.

Sem tirar os olhos dos recém-chegados, ouviu do negão-armário:

- Boa noite! Cês estão precisando de ajuda?

Celinho, que apesar das ardvertências da Nora, só agora se deva conta de que não estavam mais sozinhos, não mediu palavras:

- Claro que não, Pedro Bó (antigo personagem de um programa do Chico Anísio, consagrado por só fazer perguntas óbvias) – disse Celinho, que à voz pastosa e ao bafo de cerveja, juntara suor farto e inglório na tentativa de trocar o pneu. - Tá f%$#@...

O negão, com cara de poucos amigos, abriu um sorriso e disse, inclinando-se para o lourinho:
-- Ta tranquilo. Deixa com a gente – disse, tomando das mãos do pai (ia empregando “meu” pai, esquecendo que quem co-protagonizou o episódio foi a Nora) a chave de boca imunda.

Os caras eram operários do alto-forno da Companhia. E entravam à meia-noite. Moravam ali perto, eram vizinhos e estavam indo para o trabalho, quando os viram em dificuldades.

Os parafusos estavam bem arrochados. O negão teve que fazer careta para conseguir afrouxá-los.

E enquanto os dois davam o maior duro, Celinho olha o relógio (um Eternamatic, com ponteiros verdes e discretos, fundo escuro e pulseira metálica. Lembro-me do relógio como se o tivesse visto ontem!!) e começou a resmungar:

- Puta que o pariu! Dois sujeitos grandes e a maior demora para trocar um mísero pneu!

Celinho não falava alto, mas também não escondia sua irritação. Norinha, envergonhada com a ingratidão do pai, era muito atenciosa; perguntava coisas desinteressantes, tals como era trabalhar no turno de meia-noite às 8h e qual era a função de um soldador, profissão do negão, chamado Cosme.

Pouco depois, Celinho dava nítidas mostras de sua impaciência. Ora chutava o ar, ora falava para os caras escutarem mesmo:

- Caralho, se fosse eu, trocaria esta merda de pneu em cinco minutos.Estes “bostas n’água” (um dos muitos xingamentos peculiares que ele adorava usar) estão demorando um século para botar este estepe!

Os caras pareciam compreender o estado de meu pai, tanto que terminado o trabalho, botaram o pneu furado junto com a chave de boca no capô, bateram o mesmo e sorrindo, Cosme – que de poucos amigos só tinha a cara – ao fim da “eternidade” segundo o meu pai, 11 minutos em qualquer relógio, despediu-se:

-- Prontinho. Ta trocado.

Ao que Celinho, gesticulando para o alto, retrucou;

-- Até que enfim. Já não era sem tempo.

E continuou, apressado e zombeteiro:

-- Vamos, vamos! Entra no carro, Norinha E vocês, Cosme e – o loirinho não se apresentou e Celinho não podia perder o gracejo – Damião, eu deixo vocês na entrada da Usina perto da Vila.

--Não precisa não, doutor Célio – disse o lourinho, mostrando que além de reconhecê-lo, sabia que ele era advogado e adorava o título. - E o meu nome não é Damião, é Lincoln. Sou filho do Seu Alberto, da peixaria da Rua Amaral Peixoto. O senhor salvou a vida dele, quando ele teve um ataque cardíaco e o internou, no peito e na marra, no hospital da C.S.N.. Meu pai vai ficar muito contente ao saber que eu ajudei, ainda que um tiquinho só, o senhor. Bem, boa noite e vão com Deus.

Dizendo isso, Lincoln e Cosme, que também se despedira, tomaram o rumo da Companhia.

Celinho permaneceu estático alguns segundos no volante do carro. Norinha sorriu seu sorriso mais saboroso.

O pai e a Nora chegaram em casa cinco minutos mais tarde sem atropelos e sem trocarem palavra.
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