sábado, 8 de maio de 2010

O susto

O ano era 1984. O André desfrutava de seu ano sabático em Volta Redonda. Ele ficou exatos 365 dias coçando tão logo concluiu, no tempo mínimo de quatro anos, o curso de engenharia agronômica, em Viçosa, Minas.

André odiava Viçosa e passara os quatro anos da faculdade arrumando pretexto para ir para Volta Redonda. A greve que, em 1980, mobilizou milhares de alunos para o André significou dias de folga junto â família. Assim, tão logo se formou, André tratou de passar um ano sem fazer nada na casa dos pais.

Chico abandonara a UFRJ, onde cursava matemática. Foram dois anos de tola insistência. Voltou para a casa do pai e para a caixa registradora da padaria da família. Um ano trabalhando de manhã e à tarde. Até resolver fazer concurso público e estudar para valer. Ficava na padaria das 8h ao meio-dia, quando ia para casa, se trancava no quarto e estudava como um tarado.

O terceiro personagem desta história sou eu. Ex-aluno de engenharia agronômica em Viçosa, onde estudara com André, estava no terceiro ano de jornalismo numa faculdade que mais parecia uma boate na Zona Sul do Rio. Estava em Volta por causa de uma semana de recesso nos estudos.


Foi numa tarde de um dia útil que André me ligou, combinando de passar lá em casa. Chegando lá, fomos até uma loja de sucos, perto do cinema Nove de Abril. Nada tínhamos para fazer naquela tarde de sol ainda cálido de agosto, quando André propôs uma incursão abrupta.

-- E se a gente fosse na casa do Chico? São quatro e meia Se dermos sorte, pegamos ele na academia, onde ele faz aulas de jazz – André pronunciou as últimas palavras entre risos abafados.

-- Tem certeza que num vamos perder a viagem? Cê sabe onde fica a academia dele? Cê já viu ele malhando? – perguntei, vislumbrando o Chico, um sujeito cabeçudo e de ombros e pernas curtas e grossas, todo desproporcional, fazendo ginástica entre beldades de malha que abundam as academias de ginástica, seja em Volta, Rio ou Foz do Iguaçu.
Foi uma imagem medonha, dessas que, de noite, a gente baba na fronha, se urina todo e já não tem paz, parafraseando Chico Buarque.
Chicão nunca dera o mole de deixá-lo flagrar malhando. André desconfiava onde era a academia, mas certeza, certeza, ele não tinha.

Mas entre passar a tarde vagabundeando na Vila e ir de ônibus ao Aterrado e termos a chance de flagramos o “verme” – como André, volta e meia, carinhosamente, chamava Chico – malhando, preferimos a segunda hipótese.

Chegando na casa do Chico, tocamos a campainha na expectativa de ouvirmos de sua mãe ou de uma prima, que na época morava com a família – Seu Zé Alfredo era o chefe da casa, que, por sinal, era alugada do Zé Alberto, o JALB – que o Chico estava na academia. Se Chico tivesse mesmo ido malhar, ela era capaz de nos levar lá para assistir a cena. Achava nossas brincadeiras inofensivas e realmente eram.

-- Oi – dissemos em uníssimo para a prima, que foi quem atendera a porta.

-- Chico está tomando banho. Acabou de chegar da academia -- disse-nos.

André pediu silêncio a ela, com o dedo em riste sobre os lábios para em seguida lhe sussurrar:

-- Podemos esperá-lo no quarto dele? Mas não avisa a ele, não, ta?

-- Claro que podem – respondeu ela, com ares de cumplicidade, sabendo que faríamos alguma sacanagem com o primo dela.


Chico morava na parte superior de uma casa de dois andares. Havia um lance de escadas para a casa dele e em frente um terreno coberto de brita e uma garagem encimada por folhas de zinco com capacidade para quatro carros. Ao fim da escadaria, havia vasos e xaxins com antúrios, avencas, samambaias e comigo-ninguém-podes(?), uma espécie de varanda-selva ou vice-versa. Duas portas: uma para a sala de casa; outra para a cozinha.
A prima do Chico nos recebeu pela porta dos fundos. Correndo, silenciosamente, passamos pela cozinha e fomos direto para o quarto dele, o primeiro do corredor, vindo da cozinha.

Entramos no quarto vazio, e excitados com a possibilidade de sacanearmos o Chicão, batemos cabeça, rindo. Penamos em dar-lhe um susto, permanecendo atrás da porta. Isso, quando entramos. Mas imediatamente mudamos de idéia: nos escondemos nas cortinas do quarto.
Foi quando André ditou a última forma. Sussurou para mim:

-- Fica debaixo da cama. Quando ele se aproximar e estiver com os pezinhos ao alcance das suas mãos eu dou um berro e você puxa-lhes os tornozelos.

Me joguei rapidamente no chão e, em dois segundos, estava debaixo da cama de Chico, a postos para lhes chacoalhar
os calcanhares.

Ficamos pouco mais de um minuto esperando-o chegar, numa excitação de criança, rindo nervoso.

Enfim, o sujeito saiu do banho, indo tranquilamente para seu quarto. Vinha com o dorso, pouco, mas pouco mesmo, menos peludo que o do Tony Ramos. Uma toalha enrolada na cintura. Todo fresquinho.

Trancou a porta e imaginei que ia tirar a toalha. Mas com ela enrolada na cintura, veio caminhando em direção da cama. De barriga para cima, preparei-me para o berro do André. Mas eis que a meio metro da cama, Chico parou. Achei que tinha descoberto o André. Mas não. O súbito breque foi seguido de uma guinada tranquila rumo ao armário que ficava na parede oposta à cama.

Pegou bermuda e camiseta, deu uma última olhadela no espelho, como a constatar que sua (feia) imagem conservava-se intacta. Voltou para a cama e seus tornozelos ficaram ao alcance das minhas mãos, mas esperava o berro do André, que parecia adivinhar que Chico viraria de costas para a janela e se sentaria na cama. Pronto! Ele se posicionara de maneira ideal. E ainda ficara pensativo, de costas para a cama. Mais mamão que isso, era impossível.

Justo quando Chico ia sentar-se, André solta um urro irreproduzível. Quase simultaneamente ao berro, minhas mãos apertaram firmemente os tornozelos de Chico.

O cara ficou lívido; não tivesse o sangue galego de seu pai (forte como um touro, embora o Chico estivesse mais para um javali) correndo nas veias, acho que ele teria um troço. Por troço, subentendesse um ataque cardíaco, um desfalecimento (uma reação bichosa) ou um piti chiliquento (idem). Mas como bom filho de portuga, só tremeu nas bases, quietando por três ou quatro segundos – tempo mais do que suficiente para que André saísse de trás das cortinas às gargalhadas e puxasse a toalha que protegia as partes pudendas do verme. Ah, decepção!! Uma cueca crivada de ursinhos Poou evitou o grand finale daquela estratégica peça.

-- Puta que o pariu – foram as primeiras palavras de Chico depois do susto, tratando de arrancar a toalha das mãos do André. – Aposta que foi a imbecil da Lena que deixou vocês entrarem. Lena! Lena!!.

Ele berrava, já com a toalha em torno da cintura, enquanto abria a porta do quarto. Flagrou Lena e sua mãe se escangalhando de rir, imediatamente atrás da porta. E elas não viram minha participação, personificando o terrível monstro que guinchava atrás da cortina. Mas com ouvidos colados à porta e prenunciando que faríamos alguma sacanagem com o Chicão, não se assustaram quanto aquele berro horrível quebrou o silêncio da dormente casa.

-- Lena, sua idiota! Tá mancomunada com eles, né? – Chico ralhava rindo e ameaçando a prima nordestina. –- O´, que eu te boto no próximo pau-de-arara de volta pra Natal.

Deu um xispa na mãe e retornou para o quarto, onde eu e André deitávamos na cama e ligávamos a TV de 21’, sem qualquer cerimônia. Rindo, Chico admitiu que aquele susto fora um dos mais fortes que tomara em toda sua vida.

Mas nossa presença ali era raridade. Desconcertantes eram as visitas semanais feitas por Magno e Alexandre, em 1976, no 1º ano colegial.

Na época, unha-e-carne, a dupla (com um estilo de humor que ora lembrava a sofisticação do Monty Python, ora assemelhava-se à grossura encardida da série “Jackass”) invadia sempre o quarto do Chico. E fuçava o armário sem qualquer constrangimento.

Espalhavam cuecas e meias pelo quarto inteiro. Até as quatro primeiras “visitas”, Chico ainda tentava impedir que deixassem o quarto como devastado depois da passagem de um furacão. Mas já na quinta vez, resignava-se a cobrir o rosto com uma almofada do Vasco.

-- O pior é que eles não diziam palavra. Era como se fosse um trabalho que tinham que executar. Como vinham, partiam. Já na terceira vez que vieram, deixaram até de falar com a toupeira da Lena, que insistia em abrir a porta para a dupla – ria-se a valer Chicâo.

Uma investida das mais engraçadas foi quando, tacando uma a uma as cuecas no chão, Alexandre deparou-se com uma que tinha a Cruz de Malta. Alex não hesitou: botou a cueca vascaína na cabeça, acabou de espalhar as tralhas no quarto e foi-se embora, usando na cabeça a cueca do Vasco.

Coisa de maluco. Coisa do Alexandre.

2 comentários:

  1. eros, seria possível conseguir dos envolvidos umas quatro ou cinco linhas sobre o acontecido (aqui e nas outras histórias)?

    sei que o que está em jogo é a sua versão, e, principalmente, a forma como você a narra.

    mas... não é de hoje que questiono: será que o cara não está escondendo nada mais?

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  2. décio, quando a gente for tocar nisso, acho bem interessante obter outras versões. e é claro que todo o penúltimo parágrafo é inventado. Nunca soube da existência de uma cueca do vasco. mas que o alexandrecó (galinha) a encontrasse sairia com ela na cabeça, disso não tenho dúvidas.

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