quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Dois perdidos num porta-malas escuro

Estávamos nós, eu, Alexandre e Chico na varanda lá de casa. Um “terremoto” cujo epicentro fora no território do Aral, na Ásia, interrompera uma partida de War regada a licor de menta e “Fanfare for the commom man”, clássico de Aaron Copland, grandiloqüência progressiva típica de Emerson, Lake & Palmer.

“Terremotos” eram comuns nas disputas de War das quais o Chico participava. Sempre que começava a perder, ele impostava a voz e iniciava a ladainha.

-- E atenção, atenção!! O maior tremor de terra de todos os tempos já teve início. O fenômeno vai atingir toda a Terra. Até países nunca antes afetados por este flagelo natural, como o Brasil, desta vez serão chacoalhados de maneira inclemente pelo movimento de placas tectônicas – dizia Chico enquanto virava de cabeça para baixo a América do Norte e misturando, de maneira irreversível, peças de diferentes cores. – Socorro! Socorro! Este prédio está ruuiinnnn........ – continuava ele, destruindo os exércitos que ocupavam o Brasil em meio a risos miúdos e debochados.

A mim só cabiam berros de protesto e promessas de nunca voltar a jogar com ele; enquanto o Alexandre resignava-se a algumas fungadas – o que denotava um certo nervosismo.

E assim estávamos, eu e Alexandre fulos, Chico sem conter o escárnio -- jogo guardado, algumas pecinhas perdidas – na varanda, quando Enéas e André apareceram na Brasília do Capitão, pai do Enéas.


Partiu do André a proposta: porque não ir jogar um futsal no Funcionários? Boa idéia para aquela tarde morna de sábado.
Mas como, se Alex e Chico não eram sócios?

Os Funcionários -- um clube metido a besta de Volta Redonda e que levava este nome porque nascera para a recreação de empregados um pouco mais graduados da Companhia Siderúrgica Nacional (C.S.N.) – ocupava uma imensa área verde, cujas quadras de futebol ficavam no alto de um morro. Para chegar a elas é preciso subir o morro, passando antes pela guarita do clube, onde porteiros checam se quem entra é realmente associado.

Eis que Enéas vem com uma alternativa aparentemente infalível para pôr Alexandre e Chico para dentro sem que o porteiro desconfiasse.

-- Tá resolvido!! – começou ele, com uma convicção que não permitia apartes. – Chico, você e o Alexandre vão na mala do Opalão. É imensa e o porteiro do clube sequer vai desconfiar. Eu dirijo.

O Opalão em questão era o carro do Seu Zé Alfredo, que o Chico frequentemente tomava do pai. Era verde-vômito, ano 1971, muito pouco rodado para seis anos de uso. Estava estacionado em frente à minha casa, na Vila, a poucos metros de onde Enéas parara a Brasília.

Eu pensei o que Chico verbalizou: uma desconfiança no Enéas.

-- Mas você num vai nos sacanear não, né?
-- Enéas, o porta-malas é grande mas somos dois lá dentro. Olha lá... – advertiu Alexandre, resfolegando.

Enéas, com uma seriedade que não permitia desconfiança, jurou que nada faria além de atravessá-los a salvo. Alex e Chico olharam para mim e para o André em busca de fidelidade. Encontraram-na, pois em pouco tempo estávamos os cinco no Opalão rumo ao Funcionários.

Na Rua 21 (Volta Redonda nascera planificada, as ruas eram numeradas) a poucos metros da estradinha que subia para o clube, Chico parou o carro. Ele desceu e entrou, junto com o Alexandre, no porta-malas.

-- Olha o pé na minha cara, Chico -- chamara a atenção Alexandre, enquanto se ajeitava diante de mim, Enéas e André.

Porta-malas fechado, a fisionomia de Enéas mudara: as feições benévolas agora davam lugar as do moleque irreverente que sempre fora.


Ao volante do Opalão, André no banco do carona, eu atrás, Enéas pisou fundo, só diminuindo a velocidade ao cruzar o quebra-molas localizado no portão do Funcionários; o suficiente para que o porteiro identificasse nossas caras e autorizasse nossa entrada.

Quando passamos, comecei a elogiar o plano do Enéas, mas sequer cheguei a completar a frase e Enéas já estava acelerando. Ele subiu o morro ziguezagueando usando as duas pistas -- a de subida e a de descida também.

Do fundo do porta-malas , além do barulho surdo proveniente do choque dos dois com a lataria do carro, berros e xingamentos abafados. Enéas ria a alto e bom som enquanto cantava pneu.

Quando chegamos no estacionamento do morro e pensei que o Enéas pararia num canto qualquer para que os dois saíssem, ele contornou os carros estacionados e desceu em velocidade o morro, no mesmo ziguezague da subida.

Confesso que não estava entendendo nada até o Enéas parar pouco aquém do quebra-molas, descer do Opala quase se vergando de tanto rir e ir até o porteiro:
-- Maurílio, vem cá!! Olha só quem estava tentando entrar de penetra!! – disse, enquanto abria o porta-malas.
Chico foi o primeiro a sair e diante do porteiro percebeu que Enéas o enganara.
-- Caralho! Putaria isso, Enéas – xingava Chico, ainda aturdido com os muitos encontrões que dera em Alexandre.
Alex foi mais direto:
-- Enéas, você é um grande fila da puta!!!
Assistindo a cena, Maurílio ria de se fartar e não se importava mais com a entrada dos dois clandestinos. Mas aí já era tarde: putos dentro da roupa, Alex e Chico foram para casa – eram vizinhos no Aterrado, bairro não muito distante da Vila Santa Cecília; eu, Enéas e André voltamos a pé para a 27, minha rua.

9 comentários:

  1. EEEE, Eros, adorei! Saudade do meu polenguinho preferido. Vou divulgar o seu blog! bjo. Bella.

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  2. Eros, muito bom! Estou rindo de me escangalhar só de imaginar a cena!

    Abração,

    Fábio

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  3. Nossa, no lugar dos dois rapazes eu também voltaria pra casa. Coitados ficaram chacoalhando dentro de uma mala! Vocês, meninos, têm umas brincadeiras muito estranhas =]
    Um beijo, Eros

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  4. Título? "Tremores"
    Eros 'rapazotti', fico feliz que tenha entrado numa de escrever as memórias. Queria mesmo era ver isto e muito mais num livro (lembra q falei sobre isso), mas vc sabe o que + faz a sua cabeça genialmente povoada entre beijos e queijos. Forte abraço, boa escrita, Roberto Cunha

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  5. Você daí contando sobre os dois infelizes rolando no porta-malas e eu daqui, às 4 da matina, pensando: "será que esse Opala roxo tinha teto de vinil branco?"... Questão fundamental, pô.

    A linha GM tinha cores ótimas até 1974. Além do roxo (o nome no catálogo era apenas Violeta), tinha o Rosa Pantera (para panteras e panterinhas deslumbradas) e o Super Verde, que de tão super doía nos olhos.

    E hoje é tudo cinza, preto e prata. Uma caretice só.

    Abração cumpadi! Tou sumido mas agora virei freguês do blog.

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  6. reproduzo aqui comentário do chico, filho do dono do opalão:
    'Acho que o opalão não era o beterrabão, era mais feio ainda - o verde clorofila.'
    O SEU zÉ aLFREDO, PAI DO cHICO, TEVE, EM ANOS CONTÍGUoS, DOIS OPALÕES. UM BETERRABÃO -- OU MAIS TECNICAMENTE, COMO jASON vOGUEL,editor do carro e etc comenta,violeta -- e um verde, verde vômito.

    E embora chico seja uma das vítimas e dono do arrro em questão, tenho quase certeza de que o opalão roxo-beterraba. podia ser pior: ser sacaneado num opala rosa-pantera. a coisa sempre pode ser pior.

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  7. Oi Eros!!!
    Li algumas coisas, vou continuar em doses homeopáticas, mas adorei!!!!!!!
    Beijos, Kelly

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  8. bem, se continuar lendo, ainda que em doses homeopáticas já vai ser um grande estímulo, kelly.

    beijos

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  9. Adorei!!!!! Quem não faz isto quando é garoto, vai fazer merda quando for adulto!!!!
    abração!!!!

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