quinta-feira, 29 de outubro de 2009

"O" apelido



TÁ GRANDE PACAS, EU SEI, MAS É RECENTE. O TÍTULO É O APELIDO,LITERALMENTE.


Assim que nos mudamos para Viçosa, em 1979 (caraí!!), eu e André éramos bem próximos a dois baianos de Salvador, Arthur e Boca – não me lembro do nome dele, só era conhecido pelo apelido.

Nós os conhecêramos durante as provas do vestibular. Arthur era brilhante e não teve dificuldades para passar para engenharia agronômica. Éramos calouros do mesmo curso. André passara com méritos; eu, porque redação tinha o mesmo peso de matérias como matemática e biologia.

Boca era calouro de um curso menos concorrido: zootecnia, que era uma sub-veterinária. Dava ao cara noções de como lidar com os bichos, coisas como tirar a temperatura, como vacinar, como ordenhar uma vaca, mas não lhe permitia sequer prescrever um remédio para berne.

Arthur era bem mais exuberante que Boca. Tinha a manemolência típica de
todo bom soteropolitano (natural de Salvador). Era sacana toda vida. Não passava um diálogo sem zoar de seu interlocutor. E ele e Boca falavam muito. Tanto que nós, nascidos e criados em Volta Redonda, sudoeste do Estado do Rio, sem -- graças a Deus! – qualquer sotaque característico, ficamos, durante meses, falando baianês. Sempre que íamos a Volta, carregávamos as expressões e as bocas moles dos baianos. Como se aquele vício de linguagem fosse algum legado importante...Imagina.


Sei que os caras eram engraçados pacas. Arthur nunca perdia a oportunidade de lascar um apelido em quem quer que fosse. Lindo Olhar era o jocoso nickname de Norberto, um sansei de Londrina, veterano que morava com eles numa pensão no primeiro semestre de faculdade.

Outras pérolas precisam ser creditadas: Erótico era como me chamava; batizou Guilherme, um calouro como nós, de Visconde de Sabugosa. Era olhar para o sujeito e visualizá-lo com a cartola da espiga de milho falante criada por Montteiro Lobato.

Mas genial mesmo foi o apelido que cravou no Flavão, conterrâneo nosso . Era um sujeito grandalhão e algo pançudo - mais grande do que gordo. Tinha expressão séria sublinhada por sobrancelhas volumosas, verdadeiras marquises. Nós nos conhecemos na primeira semana de aula, quando ele, já de posse de seu camelo – bicicleta, essencial para quem, como nós, não tinha carro – se apresentou, curto e grosso.

-- Olá. Cês são de Volta Redonda, né? Eu também. Meu nome é Flávio e vocês devem ser André e Eros. O Muel (amigo meu de infância, Samuel) comentou comigo que vocês tinham passado para cá – disse Flávio, numa torrente de perguntas e respostas que não mais se repetira.

Dali para frente éramos três. Uma semana depois, Flávio mudara-se para a pocilga onde moramos os primeiros seis meses de 1979, onde dividira um quarto na parte baixa da casa de cômodos – morei em repúblicas de estudantes e aquilo não era uma república, embora todos ali fossem estudantes – com um sujeito chamado Hélio. O codinome, Aranha, fora dado porque, numa noite de muita bebedeira (dele, o cara tomava goles e goles de cachaça sozinho!!), o celerado apostou conosco que botava o pé no teto do quarto. É claro que nós, três espíritos-de-porco em involução, botamos pilha.
-- Mas isso é mole, Hélio!! O pé-direito desse quarto é mínimo – dizia eu, do alto de meu 1,67 cm, incendiando o bebum.

-- Mole é??? Eu falei que vou botar o pé é lá em cima!!! – repetia Hélio, apontando para onde uma fraca lâmpada iluminava o beliche onde dormia, no andar de cima.

Sei que a gente apostou uma merreca que ele não botava o pé no teto. E o caboclo, bêbado de dar dó, insistia que conseguia. Subia pela parede como um asno ensandecido. O cara tomava distância – o quarto não era pequeno – vinha correndo, dava um galeio típico dos saltadores e escalava a parede feito uma lagartixa, ou melhor, um jegue gosmento. Ficamos uma meia hora incitando o sujeito a arremeter-se contra a parede. Até que os efeitos do álcool e das seguidas topadas derrubaram Hélio.

Não tenho certeza, mas acho que o sujeito, que não era nenhum nanico, chegou a tocar o teto com o pé.


Fechando o longo parênteses sobre o cara com quem Flávio dividira o quarto na pensão, voltemos aos baianos. Foi imediato o contato de Flávio com Artur e Boca. Nem bem o apresentamos e já eram os melhores amigos de infância do aparentemente taciturno Flavão. Eis que, no quarto ou quinto dia de convivência, Artur lascou-lhe um apelido.

Como cães famintos, ficávamos observando as meninas depois do almoço num dos muitos jardins próximos ao bandejão da UFV. Eram pouquíssimas que passavam pelo nosso crivo. Embora cada vez menos seletivos, eram a maioria, quase a totalidade, tribufús.

Aliás, a ida de mulheres, ou melhor, de representantes do sexo feminino, para Viçosa foi uma indução federal.

Em 1926, o presidente Artur Bernardes fundou a universidade, então faculdade, pois para ganhar o título de universidade, a instituição tem que abrigar, no mínimo, 22 cursos superiores. E Viçosa surgiu para ser um centro de excelência no ensino agrícola. Ou seja , no nascedouro da então FFV (Faculdade Federal de Viçosa), a cidade só tinha homem. Imagina se em meados dos anos 20, mulher se dispunha a se formar em engenharias agronômica e florestal, medicina veterinária ou zootecnia?

O que fez o governo para conseguir atrair mulheres para Viçosa? Criou um curso chamado economia doméstica. Que hoje tem matérias bem úteis e interessantes no currículo. Mas quando surgiu era apenas um curso para arrumar marido para os tribufús que se dispunham a ir para o interior de Minas (sei que Minas só tem interior; neste caso, a palavra designa o oposto de centro urbano).

Desculpem-me este novo aparte, mas tribufús é um tema forte demais. Sim, era nosso esporte preferido ficarmos jogados na grama observando as “beldades” passarem.

-- Olha, olha, uma saracura desdentada – chamava nossa atenção Artur diante da aparição de uma loura de farmácia, de pernas finas e sorriso escondido entre os lábios.

-- Disfarça, que vem aí aquela senhora metida à gatinha. Até que dá um caldo...De maracujá, mas dá – anunciava discreto e jocoso, referindo-se a uma mulher com mais de 40 que insistia em usar óculos de gatinha.

Foi quando passou uma caloura, morena, nem magra nem gorda, de uma alvura ímpar. Os olhos, negros, eram profundos, e o conjunto, harmonioso.
Como juízes a proferirem importantes e definitivos veredictos, nos entreolhamos, e nossas expressões denotavam que achávamos a garota apenas razoável.
Flávio adiantou-se a qualquer comentário do grupo.
-- Cara, que gata! Num acharam não? – perguntou, mesmo já sabendo a resposta. – Parece uma princesa. Não anda, desliza...
-- Éééé...Parece mesmo uma princesa. Só faltam os anões. A branquela é a própria Branca de Neve – ria-se Artur, diante de um furibundo Flávio, na época um moleque tímido e de rara argumentação.
Ficamos ainda algum tempo olhando as moças que iam-e-vinham a caminho da biblioteca, em cuja sombra que estávamos há quase uma hora.
-- Dez pras 2. Vamos para a aula de Química. Eros? Artur?

Estávamos no último ano do regime militar (1979) e os milicos ainda temiam os estudantes, suas idéias e, principalmente, sua aglutinação. Por isso, a idéia era diluir as bases estudantis. Então, misturavam-se ao máximo os alunos. Era da turma de Química I de André e Artur. Mas não tínhamos aulas em comum de Física e Cálculo, por exemplo. Artur era colega de Flávio e Boca nas aulas teóricas de biologia. E assim seguiam as turmas, retalhadas, para evitar senso comum.

Bem, voltáramos às respectivas salas. Eu, André e Artur seguimos para o prédio logo atrás do refeitório.
Flavão tinha aula no departamento de biologia, para onde foi de bicicleta, e Boca foi para a biblioteca. Só teria aula às 4 da tarde.
Combinamos de jantar juntos lá pelas 6h. Marcamos de nos encontrar em frente ao refeitório. Quem chegasse esperava os outros.

Seguimos para a aula de Química, cuja aula era dada num imenso anfiteatro. A matéria era básica para quase todos os cursos. Mas o salão não estava cheio, não. Eu, André e Artur sentamo-nos distante do professor, umas sete arquibancadas acima. E entre meneios de cabeça e anotações, reparei que Artur sorria consigo mesmo. Peguei-o algumas vezes trepidando o corpo, como se alguém estivesse a lhe contar uma hilariante piada. André chegou a lhe perguntar o que houvera, mas Artur deu de ombros e emitiu um “depois eu conto”.

Às 10 para às 4h, acabou a aula de química. Eu segui para o prédio da biologia, onde tinha aula; André permaneceu no edifício onde estávamos. Só mudou de sala. Foi para o terceiro andar, onde assistiu a uma aula de cálculo I. Artur nada mais tinha a fazer de acadêmico naquela quarta, de modos que foi só maturando a nova galhofa enquanto encaminhava-se para o carro dele (ele e Boca tinham carro, o que os tornavam mais emancipados do que nós, meros donos de camelos e usuários de mata-sapos inter-estaduais), estacionado em frente ao refeitório. Um por um fomos chegando e juntarem-se a nós Ricardo, um caloro de agronomia, e Serginho, veterano, quase formando que moravam na mesma pensão que os baianos.

Sentados à mesa (juntamos duass para caber todo mundo). Artur virou-se para Serginho num tom que permitia que todos na mesa escutássemos, apesar do zum-zum-zum vindo de outras conversas:
-- Rapaz, estávamos eu, Boca, Erótico, André e Flavão olhando as mocréias que aqui polulam, hoje, depois do almoço. Os comentários de sempre. Olhe meu rei, não tinha viv’alma interessante, só baranga. Se bem que uma das fofinhas que circulam na área cativou Gordonzelo... – e ia continuar seu discurso como se todo mundo soubesse quem era Gordonzelo, como se aquele apelido que ficara a tarde inteira remoendo não fosse sensacional.
-- Peraí. Quem é Gordonzelo? – interrompeu Serginho, demorando a proferir a frase por conta das gargalhadas que lhe entrecortavam a fala.
-- Ora, alguma dúvida sobre quem é o Gordonzelo?? É óbvio que é o meu companheiro aqui, o Flavão – disse Artur, apresentando Flávio, que estava do seu lado – justificando plenamente a inusitada formação na mesa.

Artur raramente sentava-se ao lado de Flávio no bandejão. Mas desta vez era conveniente. Eram dez pessoas nas duas mesas, unidas para formar um mesão. Nós três de Volta Redonda, os baianos, Sérgio e Guilherme, ambos de Niterói, Ricardo, do Rio, Norberto “Lindo olhar”, e outro Flávio,este natural de Friburgo, irmão de um músico pouco conhecido, Cecelo.
Todos caímos na gargalhada, com a óbvia exceção do Flávio.
Eu e o André sabíamos que aquele apelido o incomodava e não o usávamos. Mas não tenho dúvidas: foi o mais inspirado apelido que já ouvi... Gordonzelo... É a junção perfeita.

@@@

Só que quando me deparei, há dias, com Gordonzelo na memória, liguei o apelido de Flavão, erroneamente, a outro episódio. Este ocorreu já no apartamento que nós três dividíamos a partir do segundo semestre da faculdade. Também, depois das agruras que passamos na pensão/república – que não era uma coisa nem a outra – da D. Edith....

Foi num fim de semana, pois estávamos os três em casa de tarde. O que era impossível de acontecer durante a semana, quando geralmente tomávamos café – vez por outra comíamos em casa – e sempre, sempre mesmo, almoçávamos e jantávamos no bandejão da universidade.

Tínhamos chegado há pouco do almoço – sábado e domingo, invariavelmente, almoçávamos no refeitório – e costumávamos ficar batendo um rápido papo já em casa. Como o grande apartamento (três quartos, sala, uma cozinha imensa, mais dependências de empregada) não tinha nenhuma área comum habitável, cada um ficava em pé na entrada de seu quarto. O banheiro ficava entre o meu quarto e o do André; este ficava ao lado do quarto do Flávio. Estávamos conversando, já tontos de sono – era de lei uma soneca depois do almoço dos fins de semana – quando Flávio e André começaram a discutir do nada. Não me lembro a razão, mas guardo que Flávio ficara ofendido com alguma coisa. Ofendido, não. Magoado. Sei que a discussão terminou com uma frase que deixava clara a susceptibilidade de Flávio.
-- E pode continuar a me chamar de”Mmmoostroo” que eu não ligo – disse ele, imitando a entonação que André dava ao apelido, antes de bater a porta do quarto estrondosamente.
É ou não compreensível minha confusão de como surgira Gordonzelo?

7 comentários:

  1. acho pouco provável que mais alguém leia todo este texto imenso, mas caso haja insistentes, ai vai uma observação de minha amada e inteligentíssima irmã -- alguém havia de ficar com o legado sagaz dos Ramos de Almeida. Eleonora de Almeida Monni é a pessoa mais inteligente que já conheci -- e olha que eu conheço gente inteligente. As aspas delimitam a observação da Nora:
    "tribufu não tem acento, como urubu ou cu, porque u e i já atraem a sílaba tônica. A não ser hiato, tipo baú.". Viu morram de inveja. "tolices & memórias" também é cultura.

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  2. textos muito gostosos, tanto no conteúdo quanto na forma.

    e por falar em forma, diga à sua irmá que algumas tribufus têm grandes acentos.

    décio.

    PS. bons tempos (e agora estou falando sobre o lance do "War") em que ficávamos horas em torno de um jogo de tabuleiro.

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  3. Grande Eros, como o menos malemolente dos soteropolitanos, tenho curtido esse e os outros posts. Parabéns pelo blog, só discordo do "Tolices" no título. E adorei - acreditei - no perfil. Grande abraço do Carlinhos.

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  4. carlinhos, me perdoe só lhe responder tanto tempo depois. é que na época eu entrei no seu blog e conversamos. é verdade. você também é baiano. monique também,não?

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  5. bem, disso não pode reclamar, alex. pode até achar os textos sonolentos, mas pequenos eles não são.

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  6. Eros, concordo com vc: Eleonora é a pessoa mais inteligente que já conheci!!!!

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