sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Lagartixa em Ipanema 1.4

Era 1984 e embora curtido por três anos na Universidade Federal de Viçosa – anos perdidos em termos acadêmicos, mas de grande valia pessoal – mantinha o fôlego de universitário.


Estava no 3º ano de jornalismo na FACHA, uma faculdade em Botafogo. Dividia o apartamento em Ipanema, na Farme de Amoedo, com ...Caraca! Foi tanta gente que passou por lá que não estou bem certo de quem morava lá na época. Bem, acho que Dudu, Rogério, Tasso e Enéas dividiam o apartamento comigo na época.

Mas neste episódio bastava citar o Dudu. Irmão mais novo do Enéas, eu o conhecia desde molequinho mesmo, quando ele tinha 5, 6 anos. Era completamente diferente do irmão, meu grande amigo, com quem eu estudara os três últimos anos no colégio. Chegara ao Rio um ano antes para cursar engenharia na Santa Úrsula, faculdade vizinha ao Palácio Guanabara, em Botafogo e morava com o Diano, amigo de infância dos tempos de rua 40.
Só que, indecisão em pessoa, Dudu desistiu de engenharia e, no ano seguinte, fizera vestibular para duas faculdades diametralmente opostas: arquitetura, na UFRJ, e jornalismo, na PUC. Levou, acho que por ano e meio, as duas faculdades; uma no Fundão, Iha do Governador, outra na Gávea. Simultaneamente a esta maratona, mudou-se para a república do irmão.


Enéas, seis anos mais velho, já há muito tinha traçado seu caminho. Seu pensamento exato, sua precisão, seu pragmatismo o levaram até a engenharia mecânica, primeiro na UCP, em Petrópolis, depois na PUC do Rio. Era seu último ano na faculdade.

Achava Dudu bem parecido comigo. Era hesitante, questionava tudo, era sensível (SENSÍVEL, nada a ver com boiola, mané).

Acho que optara pelo jornalismo um pouco por influência minha... Gostaa do moleque como se fosse meu irmão caçula (eu tinha 23; ele, 18 anos, e nesta época da vida, fim da adolescência, cinco anos davam-me alguma experiência a mais). Havia uma diferença gritante entre nós dois, porém: enquanto Dudu era “pegador” – ficava com as meninas mais cotadas – eu era um fiasco com meninas, cotadas ou não.


Lembro-me bem da chegada do Dudu ao apartamento de Ipanema. Foi num fim de tarde de domingo, no início de março, véspera do primeiro dia de faculdade. Dudu aportara de mala e cuia.





Assim como o Enéas, era bagunceiro toda a vida. E logo na chegada, dera mostra de seu desmazelo, deixando a mala de roupas no chão da sala. Depois de uma breve recepção de boas-vindas, protagonizada por eu e Rogério – os únicos no apartamento àquela hora.

Mais de uma hora se passara e a mala de roupas continuava na sala. Só que agora estava aberta; Dudu havia tirado uma toalha e tomado uma ducha. Aquela hora, todos ao moradores do apartamento estavam por lá. Estávamos todos na sala, quando Dudu foi pendurar sua toalha no boxe do banheiro.

-- Vamos ver o que este moleque trouxe de casa...— disse Enéas, enquanto vasculhava a bolsa do irmão.

Ele foi muito rápido. Jogou todas as roupas no chão. Caíram meias, cuecas, shortes, calças, camisas e por último, para desespero de Dudu, que tinha retornado à sala, uma bíblia.
Enéas foi fundo no escárnio.

-- Olha só, Uma bíblia. Sinto, Dudu, mas isso não vai te ajudar, na faculdade de arquitetura não. Talvez na de jornalismo... – zombou Enéas, narigão vermelho de tanto rir.

Rogério e Tasso acharam graça. Dudu apressou-se em tomar o livro das mãos do Enéas:

-- Imbecil, babaca – disparou Dudu para o irmão, que agora se regojizava da descoberta, que rendeu pelo menos uma semana de zoação para o Enéas em cima do irmão mais novo.

Dudu era fissurado numa gororoba chamada mexido. Consistia num mixer de sobras jogados numa frigideira, misturados. Ia à mesa como gosma, e o cara que comia só continuava vivo se Deus estivesse mesmo muito empenhado. Mas Dudu não só sobrevivia àqueles guisados de sobras como exultava quando encarava a solene missão de recolher restolhos na geladeira e transformá-los numa gororroba incomum.

Naquele fim de semana, eu e Dudu não subimos para Volta Redonda – por motivos distintos. Ele, a pretexto de estudar; eu combinei de sair com amigos da faculdade.

Pois sábado à noite, estávamos os dois em casa, assistindo TV. Dudu estudou a tarde e parte da noite. Eu fora na primeira sessão do cinema Veneza, em Botafogo (lembram-se?).
Acabou o Jornal Nacional e Dudu migrara, rápido, para a cozinha.

-- Erão, vou preparar um mexido. Vamos nessa? – ofereceu, berrando da cozinha para a sala.

-- Tô fora, odeio isso. Você junta todas as porcarias que encontra na geladeira...Argh, que nojo! Prefiro um MacDonalds. Quer ir não? — respondi, engatando um capítulo da novela.

Dudu investigava a geladeira. Um resto de feijão feito na terça anterior, um tanto de arroz, um cadinho de purê de batata, uma espécie de picadinho. Depois de tudo mexido, qual argamassa de cimento, Ulalá!!! Um ovo estrelado por cima! Um senhor bate e entope!

Foi quando ele reparou que a porta dos fundos estava semi-aberta. Dudu apressou em fechar e...

-- Eritos, corre aqui!!! – berrou Dudu da porta dos fundos.

Quando cheguei, Dudu estava estapeando, devagarzinho, um desmaiado Lagartixa, que era como nós chamávamos o filho da Anita, nossa faxineira.

-- Gilmar, acorda, Gilmar! – sacudia Dudu um inerte Lagartixa. -– Eritos, me arruma um pouco d’água.

Lagartixa, um sujeito magro, preto e baixo, jazia junto à porta. Ele desfaleceu quando conseguira abri-la. Ou seja, quando a resistência da porta cedeu, ele desabou, de tão chapado que estava.

Dudu sapecou água nas têmporas, mas nada.
-- Caraca, pelo bafo, o cara entornou legal –- afirmou Dudu, voltando a estapeá-lo, agora com mais força. – Isso é o que dá para perceber com ele apagado. O cara também deve estar cheiradaço.



Depois de mais uma sessão de tapas e de copos d’água na cara, Dudu soltou um muxoxo, fruto da impotência.

--Desisto – disse, enquanto tirava a cabeça do Lagartixa do colo.

Acho que o quicar da cabeça o acordou. O cucoruto em contato com o ladrilho frio da cozinha fizera Gilmar despertar.

Olhos esbugalhados, saliva acumulada nos cantos da boca, Gilmar acordou trôpego, e ansioso tentou levantar-se, e antes de estabacar-se novamente, bateu a cabeça na parede de ladrilho azul fazendo um esporro colossal.
-- Caralho!! -- riu Dudu baixinho para mim. -- Senta numa cadeira, Gilmar.

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