domingo, 29 de novembro de 2009

blitz da PM

O André sempre foi (acho que ainda é) o melhor amigo do Enéas. Mas houve uma época, acho que pela proximidade de nossas casas – o André mudara-se da rua 40, na Vila, para um bairro mais afastado, o Jardim Amália -- em que fui lugar-tenente do Enéas. Lugar-tenente é ótimo, excelente eufemismo para coadjuvante. Raramente fui protagonista. Mas esta falta de luz própria jamais me incomodou. Presenciei cenas impagáveis por conta disso.
Uma delas aconteceu numa das muitas noites em que rodamos pela cidade a bordo da Brasília bege do Capitão Enéas. O Juninho, como era tratado pela mãe, d. Aída, estacionou o carro em frente à minha casa, na rua 27, e conversávamos com as portas (as da frente) escancaradas. Passava pouco de uma da manhã, quando cruzou por nós uma patrulha da Polícia Militar, numa veraneio azul claro e branca.
Rondas feitas pela PM nas áreas nobres da cidade -- sim, o Voltaço tem áreas nobres -- eram comuns. Naquela época, meados de 1970, Volta Redonda era considerada área de Segurança Nacional por sediar a C.S.N. A Companhia Siderúrgica Nacional fabrica aço e ferro, considerados material estratégico na visão belicista-boitatá dos militares que chefiavam o país.
Voltando à vaca fria, a veraneio com cinco mal-encarados policiais a bordo, parou na frente da Brasília, depois de passar por nós à velocidade de cágado. Descem quatro PMs da viatura. Só fica o motorista. Dois deles vão até o Enéas; os outros dois vêm até minha porta, escopetas em punho. O cara que chefiava a patrulha, sargento Antunes, disse, curvando-se e apoiando os antebraços na porta do Enéas:
-- Boa noite, cavalheiros. Identidade dos dois, documentos do carro e sua carteira de motorista -- exigiu o sujeito, magro, não muito alto e barba feita.
-- Boa noite -- respondeu Enéas, pronunciando as duas únicas palavras ditas amistosamente aos policiais. -- Cê sabe com quem está falando?
Sargento Antunes tomara um susto com a petulância do moleque -- se bem que filhinhos-de-papai eram figurinhas fáceis numa sociedade de castas, como era Volta Redonda - mas recompôs-se num átimo:
_ Você pode ser o presidente da República, estou me lixando. Seus documentos, os documentos do carro e sua carteira de motorista.
- -- Sou filho do Capitão Enéas -- arrotava Enéas, com uma empáfia desmedida. – Moro na rua 26, quase esquina com a 31. Os documentos estão lá em casa. Sai só para trazer meu amigo.
Morava a uns 350 metros do Enéas, embora de minha casa não avistássemos a dele.
Sugeri que chamássemos o Celinho, meu pai, que dormia ali em casa .
-- Não, não, não, Eros. Deixa o Celinho dormir. Aliás, vai dormir você também. São quase duas da manhã. Vou até lá em casa preu provar pra estes brucutus (o adjetivo é meu, não me lembro do que Enéas chamou os PMs, mas era algo que tinha a ver com a truculência e a ignorância deles... meganhas, talvez fosse este o termo que Enéas usara) que sou filho do Capitão -- disse Enéas, fechando os vidros do carro antes de trancá-lo.
Não preciso dizer que vetei imediatamente a idéia de abandonar o barco.
Então Juninho, virou-se para o sargento, e disse, entre impaciente e autoritário:
--Vamos lá. Cês seguem a gente...
-- Seria mais rápido se vocês entrassem no carro e fossem com a gente. O cabo França e um outro praça iriam com a Brasília -- sugeriu, cavalheirescamente, o sargento.
-- Nem fodendo eu entro no carro de vocês. E nunca, nunca deixaria algum de vocês botar as patas no volante do carro de meu pai – devolveu, cavalgaduramente, Enéas.

Assim, lado a lado, fomos andando rumo à casa do Enéas com a Patamo nos seguindo.

Perguntei, quase segredando ao Enéas:
-- E agora? Você num tem carteira de motorista...Que merda!

-- E porque cê acha que eu tô levando estes imbecis lá pra casa? Quando o capita aparecer, eles vão se cagar todos, pedir desculpas e ir embora, de fininho. Quer apostar? – respondeu Juninho, resoluto.

Em três minutos, estávamos na casa do Enéas. As casas não ostentavam as grades que são obrigatórias na Vila atualmente, e a luz da varanda ainda estava acesa, o que significava que ainda faltava chegar alguém.


Pois este “alguém” acabara de entrar em casa. Antes, Enéas pediu, ou melhor, comunicou aos PMs que esperassem, no carro ou na varanda. Ele ia buscar o pai.

Assim que nós entramos na sala, os PMs iniciaram uma breve conferência na patamo.
-- E aí, vocês conhecem esse “Capitão Enéas”? – perguntou o sargento Antunes.
-- Um primo meu foi ordenança na casa do capitão. Ele só falava bem do cara e da família – afirmou o soldado Flores.
Ordenança era um empregado sem salário. Um soldado raso que era cedido pelo Exército para trabalhar na casa de um oficial. Na maioria dos casos, fazia a faxina pesada, como limpar latrinas.
-- Eu conheço, ou melhor, sei quem é. Ele, na verdade, entrou para a reserva como major. Agora manda num departamento da C.S.N.. É gente boa demais...— garantia o cabo França.
Outro praça também sabia da (boa) fama do capitão.
Só Antunes e um soldado nada sabiam a respeito do Capitão Enéas.
– Caralho, é melhor eu pôr meu galho dentro...


Ainda na sala, d. Aída, que ouve o barulho do filho chegando, sai do quarto do casal, envolta num roupão que combinava com a cor, bege, do creme que passara no rosto.
-- Juninho!! -- grita abafadamente ela. – Por onde você andava?






Cacei você por tudo quanto é lugar. Liguei para o Eros, o André... e nada!
Enéas esquivou-se dela, com um ”tá bom, depois a gente conversa” e já ia entrando no quarto, atrás do capitão, quando d. Aída, indignada com a indiferença do Juninho, alterou a voz:
-- Moleque!! Olha aqui, me respeita – olhos injetados, expressão irritada.
Enéas olhou-a e respondeu, se desvencilhando das mãos da mãe:
-- Num é nada disso, Aída. É que agora papai precisa conversar com uns guardinhas aí.
Estressada que só, d. Aída já imaginava o pior.
-- Deus do Céu!!Bateu com o carro!!! Machucou alguém?? Eros??
E eu me fazendo de jarro de planta.
-- Não, num aconteceu nada, tia Aída – disse eu, que diferentemente de meus amigos, costumava chamá-la de dona, não de tia.
E enquanto d. Aída vistoriava Juninho à cata de algum caco de vidro espatifado, o filho contou-lhe o que acontecera.
Foi o suficiente para ela mudar de atitude. E da busca dos resquícios de vidro passou aos tapas e cascudos no filho.

-- Peste!! E eu sem conseguir dormir até agora – disse d. Aída. – Não vai ser fácil acordar teu pai. Tava te procurando para que você o buscasse na casa do Jader, onde tinha um enterro dos ossos de um churrasco de carneiro. Encheu a cara de cerveja e tava cochilando com o seu tio na mesa, quando Aída me ligou. Dudu poderia ter ido buscá-lo, mas você saiu com a Brasília...Ainda bem que o Jader Jr. chegou e o trouxe para casa agorinha há pouco.

Dr. Jader era médico respeitado e primo do Capita. Os dois moravam na mesma rua, separados por umas oito casas, se tanto. Aída era a mulher do Dr. Jader, homônima da mãe do Juninho, e Jader Jr., obviamente, era sobrinho do capitão.

Os dois entram no quarto. Imagino o que não fizeram para acordar o Capitão. Eis que d. Aída sai do quarto e grita para o Enéas:
-- Juninho, pega umas pedras de gelo.
Vira-se para mim, que acompanhava a movimentação do lado da porta de entrada.
-- Eros, chama os policiais até a varanda – disse-me. – Vou pedir que eles esperem um pouco. O Enéas já vem.
Eu fiz o que ela pediu, não sem antes sinalizar que ela tinha creme no rosto.
Quando os PMs chegaram à varanda, o Capitão já estava de pé, graças aos cubos de gelo que Juninho buscara no congelador. Ficou a par da situação e encaminhou-se para a varanda, acompanhado de d. Aída, robe fechado da cabeça aos pés.

O Capitão foi falar com os PMs da maneira que dormia, sem camisa, apenas com um calção surrado. Capitão Enéas tinha fisionomia tão única como seu caráter – um cara simples, que sempre buscava o bom da vida, um dos meus heróis. Usava um bigode farto encimado por uma imensa nareba – herança que deixou para os três filhos homens; Eneida escapou dessa. As sobrancelhas grossas cobriam olhos castanho-escuros e tranqüilos e tinha uma pança típica de todo bom bebedor de cerveja. Sacam o Abracurcix, chefe da aldeia gaulesa de “Asterix & Obelix”? Já d. Aída me lembra a Eva Vilma.

Bem, a cena foi muito engraçada, hilária mesmo. Estavam ali perfilados os cinco policiais, quepes devidamente nas mãos e os cinco batem continência e juntam os calcanhares quando o Capitão, olhos e nariz vermelhos, pança saliente e gambitos à mostra, surge na varanda e devolve o cumprimento juntando os calcanhares nus.
-- Desculpe, capitão. Mas estávamos fazendo nossa ronda de praxe na Vila, e na rua 27, encontramos uma Brasília bege e dois rapazes. Um deles disse ser seu filho. Era nosso dever checar – argumentou, se desculpando, o sargento Antunes.

-- Cumpriu o seu dever, sargento.... –embora o Capita espremesse os olhos, não conseguia ler o nome do PM, gravado na camisa.
-- Antunes, senhor – apressou-se em ajudar o sargento.
-- Cumpriu bem o seu dever, sargento Antunes. Ele é meu filho, sim.

-- Desculpe tirá-lo da cama, senhor – bateram continência, despedindo-se.

No entanto, antes que começassem a marchar em retirada, o capitão perguntou com voz pastosa:
-- Sargento Antunes, o meu filho não lhe faltou com o respeito não, né?
Senti um frio na espinha, mesma sensação que imagino que Enéas deva ter sentido.
Porém, o sargento foi magnânimo, acho que mais pelo estado do Capitão.
-- Em absoluto, Capitão. O senhor tem um filho bem educado – Antunes disse a última frase olhando fixamente para o Juninho.
Mais não disse o Capitão, retornando, cambaleante, para a cama e o seu sono tão bruscamente interrompido.
D. Aída fez menção de dar uns tapas no filho, mas Juninho imobilizou-a, segurando as mãos dela. Lascou-lhe um beijo, afirmando-lhe:
-- Volto já, Aídão. Só vou buscar o carro na casa do Eros.
D. Aída ainda resistiu aos carinhos do filho, mas quando conseguiu livrar-se do abraço, o Enéas já ia longe.
-- Boa noite, d. Aída – gritei, já em frente ao jardim.
Fomos até minha casa, entrei e o Enéas pegou o carro. Chegou em casa um minuto mais tarde. Enfim, a luz da varanda foi apagada.

3 comentários:

  1. Bem passada a gravidade da situação nesse trecho:

    "Estressada que só, d. Aída já imaginava o pior.
    -- Deus do Céu!!Bateu com o carro!!! Machucou alguém?? Eros??
    E eu me fazendo de jarro de planta.
    -- Não, num aconteceu nada, tia Aída – disse eu, que diferentemente de meus amigos, costumava chamá-la de dona, não de tia."

    Portanto, não venha me dizer que era pra ter escrito "não, num aconteceu nada, dona Aída".

    No mínimo fica na sua. No máximo diz "que bom que você percebeu, Décio", hehe.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. que bom que você percebeu, décio. Reli agora o teu e-mail e é claro, depois de conversarmos por telefone, ficou claro para mim sua observação. Seguindo conselhos seus decidi encurtar as ronicas. só que isso mme é impossível. fiz foi dividir a última cronica em quatro. mas se você não ler todas ou lnão ler em ordem, babau, dança, num entende nada. ainda não concluí a crônica.

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