domingo, 15 de novembro de 2009

A flor

Bom, conforme podem constatar, criatividade aqui passou longe. E desaguo todo o entulho represado por anos a fio. Pior para quem lê. Me desculpem. O único texto escrito e postado quase imediatamente foi o dos baianos de Viçosa. Assim, mando este texto que está escrito há séculos. Já o mostrei pra uma pá de gente.

Tentei reproduzir o que contei para a então minha analista. – há uns dez anos eu fiz análise pela terceira e última vez .Tinha tido duas experiências decepcionantes com psicoterapeutas – um deles chegava a pitar cachimbo, protótipo do freudiano. Numa das primeiras sessões com Bia, mulher do Sérgio, falei do trajeto da flor no dia da morte de minha mãe. E ela chorou – se emocionando e me emocionando. Prometo que volto com coisas mais amenas. É que ou mandava essa ou quebraria minha promessa de mandar um texto por semana.



Quando minha mãe morreu, tinha absoluta convicção de que todas as minhas vicissitudes tinham se acabado. Uma certeza de que dali para frente só viriam coisas boas. Todas as minhas mágoas e tristezas tinham-se acabado. Ledo engano.

Era 19 de fevereiro de 1983 e estava de férias da faculdade em casa. Cursava o segundo ano de agronomia, em Viçosa, cidade mineira que ficava a quase 400 quilômetros de minha Volta Redonda natal. Era verão e minha mãe tinha sido internada no Hospital da Companhia Siderúrgica Nacional(CSN), com dificuldade de respirar, tão gripada estava. Naquela época, ela pesava algo em torno de 40 quilos, vitimida que estava pelo galope da doença de Machado Joseph, mal que afeta o cerebelo, conseqüentemente, o equilíbrio, e vai drenando as forças de quem tem esta bosta de doença até o imobilismo total, isto é, a morte. Estava sozinho em casa quando o telefone tocou. Era do hospital.

-- O seu Célio está? -- perguntou o homem, depois de identificar-se como sendo do hospital.

-- Ele saiu. Quem fala é o filho dele. Algum problema com a minha mãe? – respondi, perguntando.

O cara foi direto e disse que ela acabara de morrer. Desliguei o telefone e segui a pé até o hospital, a uns 600 metros da minha casa, na Vila. Fui acompanhando o riacho, que corria em frente lá de casa. Primeiro, peguei uma rosa no jardim, atravessei a rua, fui até a pinguelinha que cruza o rio. Costumava ir lá sempre com minha mãe na cadeira de rodas. Ela atirava uma flor no rio e acompanhávamos a trajetória dela, levada pela correnteza, até perdê-la de vista.

Naquela manhã, estava sozinho sobre a ponte. Chorava. Joguei a rosa no riacho, só que desta vez, acompanhava sua trajetória não apenas com os olhos, mas caminhando por uma trilha de brita às margens do Brandão. Segui pela rua 31 -- Volta Redonda é uma cidade planificada, ou era, e as ruas eram todas numeradas -- vendo sua evolução nas águas nada turvas, embora sujas, do riacho. Seguia me lembrando de diálogos, de conselhos, de trejeitos, de expressões.

-- Filho, vai ser bom quando eu morrer. Um alívio para mim e para vocês -- dizia ela, não sem algum esforço, pois a doença compromete a fala também.

-- É verdade, mãe. Vamos todos parar de sofrer -- respondia, afagando-lhe o rosto fino.

A gente -- eu, minha mãe, meu pai e Norinha, minha irmã -- era cardecista. E os cardecistas acreditam na reencarnação e na necessidade de purgar erros passados. Conseqüentemente, a principal virtude de um cardecista é – ou deveria ser -- a resignação. Hoje tenho minhas dúvidas quanto ao título da maior das virtudes, mas na época era inconcebível não ser resignado. Inútil (mas humano pacas) se revoltar contra tudo e todos; acho que só torna ainda mais pesado o fardo que nos cabe. E durante longos nove anos, não havia melhor sentimento que definisse minha mãe: resignação.

Ele fora uma mulher bela, de olhos grandes (esbugalhados, posteriormente), pernas bem torneadas. Era moderna para os padrões vetustos e bolorentos da época; trabalhou durante 18 anos como contadora da Companhia Siderúrgica Nacional. Só aposentou-se porque já não conseguia andar sem amparar-se em alguma coisa. E como nas ruas não há necessariamente paredes...

Inda hoje tenho uma foto dela esbelta, com óculos gatinhos e calças capri. Além da indumentária, a modernidade era patente em sua atitude: ela era mulher até a medula.

A flor seguiu flutuando, a pista da Rua 31 obrigava o Brandão a submeter-se a uma breve ponte, de onde saia dividindo duas ruas, a 18.A e a 18.B. Segui a rosa pela 18-B com as últimas imagens de minha mãe latejando na mente.

Me fustigava um inoportuno -- porque pequeno, em razão do justo tamanho do que de fato deveria sentir -- arrependimento por não tê-la levada mais vezes para ouvir música no meu quarto. Mais do que isso: o que me vinha à mente agora eram as vezes em que algum amigo me chama à porta de casa e a levava, carregando-a nos braços para seu próprio quarto -- é bem verdade, sempre um pedido dela mas que eu nunca objetivara. Ela tinha vergonha de estar naquelas condições ou melhor, eu é que tinha vergonha da minha mãe. E embora guardasse isso só para mim, posando de hercúleo e bom filho, relativizando minha vergonha diversas vezes, ela, obviamente com seu sonar de mãe captara meu desconforto com sua trágica presença junto a amigos meus e sempre que possível, buscava afastar qualquer constrangimento. E ela gostava tanto de ouvir música no meu quarto...

Ia me torturando com estas lembranças, deixando uma lágrima rolar aqui, outra acolá. Quando o riacho mergulhou novamente, desta vez sob a pista da Rua 33, tentei rezar um Pai-Nosso, mas fiquei só nos dois primeiros versos: minha rosa tinha sumido. Me passou uma estranha sensação de solidão, de orfandade com o sumiço da flor nas águas do Brandão. Mas depois de alguns segundos, a rosa emergiu de um redemoinho e seguiu rumo ao hospital. Eu sorri um sorriso triste e a segui ainda pela Rua 18-B até o riacho desaguar num afluente do Paraíba, na Rua 41.

Dali até a entrada do hospital foi um pulo. O Hospital da CSN ficava, mais ou menos, na metade da rua. O sol começara agora, por volta de 11h30m, a despontar no céu, abrindo espaço entre muitas nuvens. A distância era curta, a flor não demorou mais de três minutos para rodopiar, pega por uma correnteza mais forte, em frente ao hospital, para onde eu seguia. Ao todo, caminhando lentamente para acompanhar a rosa, não levei mais de que 20 minutos. Tempo suficiente para que passasse a limpo e rememorasse as principais paradas do suplício de minha mãe.

Do diagnóstico errôneo de Parkinson -- mas o único cabível na Volta Redonda dos anos 60 -- o caminhar sempre escorando uma parede, o tombo no quarto da minha irmã, a decisão de não mais andar, de só se locomover de cadeira de rodas -- Meu Deus! E nós acatamos esta estupidez, que agravou e tornou irreversível seu quadro de imobilidade. As noites passadas dormindo na cama logo abaixo da sua, ajudando-a a se mexer durante a noite, a dificuldade para se expressar, as escaras, aquele corpo que mal chegava aos 35 quilos e cuja rigidez caminhava para assumir a posição fetal e final.

Tenho certeza, certeza não, impressão, de que quando joguei um beijo para a rosa, numa despedida definitiva, a flor rodopiou ao descer uma correnteza e deslizou lentamente, como também despedindo-se de mim para, em seguida, seguir o caminho do rio. Àquela hora,chorava. E no peito, trazia um alívio indescritível.

6 comentários:

  1. Quando você escreveu sobre o "trajeto da flor no dia da morte de minha mãe" me veio logo à mente o trajeto da flor caindo, você a deixando cair numa cova, algo assim.

    Tal não foi minha surpresa e alegria quando vi que se tratava do trajeto pra frente, sempre pra frente.

    Podia não vê-la sempre, podia submergir aqui ou acolá, mas ela estava sempre indo pra frente, por um curto momento acompanhando o seu caminho, por vinte minutos te permitindo lembranças, e pro resto da eternidade nos deixando essa narrativa.

    É um alívio indescritível saber que a flor segue pra frente, e que, apesar de tudo, e por causa de tudo, tamos sempre juntos.

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  2. Eros querido, estou feliz em poder, finalmente, fazer minha estréia em seu blog e, em especial, nessa narrativa. Como lhe disse por e-mail, ela tocou forte meu coração... o bom e velho rio/ riacho/ sanguinha - sabe-se lá o que exatamente - Brandão, nos deixou marcas de muito afeto e a certeza de que nossas essências regadas pelo amor cultivado em nós, por nossos todos queridos, nos refresca até hoje, de maneira balsâmica...

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  3. décio, sou muito mais anta do que imaginava. tinha certeza que já tinha feito um comentário sobre o seu comentário. mas, enfim, ele sumiu...
    Caraí. o seu comentário é melhor que o texto. me sinto privilegiado por ter você como leitor. e mais aos trancos que aos barrancos, seguimos juntos. abraço

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  4. Nídia
    me deixa feliz que o texto tenha te tocado. mas é uma recordação triste. e este site e para difundir mais tolices que lembranças sérias. espero que continue a ler mais as tolas do que as doloridas recordações. E torço que seja assim sempre: dando mais valor à gargalhada do que a lágrima.

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  5. Queridão,
    Engraçado meu ato falho: vc me mandou procurar o post A Flor e eu falei que ia achar A Rosa (baixou um Cartola nim mim???)... Eu sei que no seu blog vou encontrar muita coisa divertida, leve e bem narrada, mas confesso que fiquei embasbacada, desbundada com essa história. Não só com o texto, mas principalmente com a sorte que vc teve de se despedir da sua mãe de u´a maneira tão sensível e lírica
    Tchamo, nêguim!
    Cumadre Lu

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  6. lu

    esta é filha de mãe solteira; o resto é foguetório. vou criar outro blog, chamado filhos de machado joseph, em que tenham uma parcela mais hard da minha adolescência. e a flor vai pintar neste. cara eu imagino isso como uma abertura de filme. a flor seguindo e os créditos pintando na tela. e foi catártico que só seguir a flor pelo rio. depois nós conversa, pessoalmente.
    beijos, comadre.

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