sábado, 27 de fevereiro de 2010

ts.2.4

A T.S. foi uma das últimas iniciativas de Osvaldo como nosso líder. Eram muito ridículos nossos ensaios de vandalismo. Algumas vezes, lá pelas oito da noite, executávamos um bailado estranho às margens do riacho que, idilicamente, separava (ainda separa) a 27 da rua 31.

O riacho ficava a uns seis metros abaixo do nível das ruas, que só tinham um lado de casas. Em frente a elas havia um jardim gramado, com eventuais canteiros de plantas que adornavam o longo jardim – uns 2.000 metros quadrados.
Até as vertentes do rio eram gramadas. Às margens dos dois vórtices, árvores grandes (acácias) separadas a cada 10 metros, distância igual para românticos banquinhos de madeira.

De tempos em tempos, quando cruzava com ruas como a 33 e a 26, o regato corria sobre pontes. A única pinguela que existia além das trafegadas por carros, ficava em frente à minha casa, e mais tarde, uns cinco ou seis anos depois, nos a chamávamos de “Ponte das Anharips”-- Piranha + s, no dialeto popular “de-trás-para-frente”. Casaizinhos se apertavam até num poder nos bancos à noite, sob a luz bruxuleante de postes que acendiam pontualmente às 6 e meia. A área foi, por um muito breve instante, apropriadamente batizada pela Prefeitura de “Jardim dos Inocentes”. Quando os casais descobriram o potencial, digamos, “romântico” do lugar, o título virou ironia.

E os casais de namorados viraram o nosso alvo preferencial em potencial, sempre em potencial. O inusitado bailado que praticamos algumas vezes consistia em simularmos ataques com sacos de água em casais agarrados nos banquinhos. Um descia para o vale onde ficava o rio ao lado da pontezinha, munido de quatro sacos d’água, até o degrau mais alto e amplo dos três que margeavam diretamente o riacho, e abastecia moleques diretamente postados em frente aos bancos que tinham namorados. Ia o mais rápido e furtivamente possível. Treinamos esta ação umas quatro vezes, sem efetivamente molharmos um casal sequer.
-- Uai, se já estamos lá embaixo com os sacos d’água porque simplesmente não os tacamos nos namoradinhos? – perguntava, entre rude e óbvio, Vito, o Wilkens.
-- Premeditação – responderia, com ar cansado, Osvaldo, tivéssemos este vocábulo em nosso limitado léxico de criança.

Pois toda graça vinha do ataque-surpresa e da ação coordenada.

Assim, o único ato de sacanagem do qual participei, junto com o Paulinho Cabeção, foi uma pedra grande, meio-tijolo, atirada contra a porta da última casa do lado ímpar da rua 20.

Eu e Paulinho atrás da árvore a uns dez metros da entrada da casa de uma senhora, que assustada com o barulhão, abriu a porta para checar o que tinha acontecido. Entre assustada e atônita com o pedrão e a tintura da porta agredida pela mesma, resignou-se a balançar a cabeça, desaprovando aquela ação de vândalos. Antes de entrar, pegou no colo uma criança que imergiu da sala em seu encalço.
Assim que a mulher fechou a porta, Paulinho deu um soco na outra mão estendida e aberta
e caprichou no berro surdo:
--Yes! (Não, não, não. Naquela época não havia esta expressão e Paulinho Cabeção estava longe de ser “um filósofo de depois de amamhã”, como acreditava, muito apropriadamente, Niestzche em vida). Mas Paulinho ficou exultante com nosso ato de guerrilha urbana.

Já eu, não. Me arrependi antes mesmo do pedregulho tocar a porta da mãe do menininho.


Eu tinha alma de coroinha, embora cedo, começasse a simpatizar com o espiritismo. Tinha uma necessidade quase mórbida de partilhar com os outros os meus erros. Assim, enquanto Paulinho deve ter repousado seu cabeção no travesseiro e dormido o sono dos justos, minha noite de sono foi horrível. Demorei a dormir,dormi pouco e quando despertei, estava tomada a decisão: ia me desculpar pelo calhau na porta.

Quando comuniquei isso para a rapaziada, foi um “Deus nos acuda”.
-- Caralho!! Não faz isso não. Você vai botar toda a nossa operação em risco – argumentou Paulinho, com anuência vibrante de Osvaldo.

-- Que operação? Que risco? – perguntava eu o óbvio.

Paulinho Cabeção mais parecia um fósforo por acender. Era um moleque baixo, magricela e cabeludo, um cabelo liso, cortado na altura dos ombros. Acho que muito de sua notória cabeça, que lhe rendera o apelido, devia-se às suas mechas. Tinha hábitos estranhos: conversava com formigas e dizia ter poder sobre elas. Puras ilusão ou cascata.
--- Vamos, minha nêga. Vá até aquela árvore e me traga aquele raminho – ordenava Paulinho a uma formiga preta, grande, com ferrão e bunda amarela, dona de uma picada doída pra caramba, equilibrando-a sobre o dedo indicador.
Geralmente a formiga ia para a árvore, se escapasse do ataque furioso de Paulinho, em revide a uma ferroada tão logo caminhasse o primeiro centímetro de dedo.
Como ele vivia com os dedos inchados devido à desobediência dos insetos, acho que ele acreditava ter mesmo algum poder sobre os bichos. Ou então era um noviço masoquista.

Sei que estava resoluto em minha decisão (quase um ato religioso) apesar das muitas advertências em contrário, argumentadas por Paulinho e Osvaldo. O resto da turma só achava ridícula e desproporcional minha obsessão em esclarecer o episódio com a dona da casa.
-- Não machucou ninguém – afirmava, inapelavelmente, Marcos.

Mas minha decisão já estava tomada. Foi falar com a dona da última casa do lado ímpar da 20.

Constrangedor. Eu me desculpava por um acidente que não houve, mas que poderia ter havido. A mulher, que trazia o filho no colo quando atendeu a campainha, demorou um pouco a entender o que eu queria, tamanhas eram as hesitações e o gagejar em meu discurso.
Isentei o Paulinho de qualquer culpa, isto é, não toquei no nome dele. Tomei para mim toda a responsabilidade pelo “terrível” ato terrorista. E aí ela me fez uma pergunta que não tinha resposta e significou o início da derrocada do império osvaldino: “Por quê”?

Saí da casa da mulher em paz com minha crônica culpa judaica (?)-cristã. Mas aquela dúvida me latejava na mente. Por quê? Por quê? Por quê aceitávamos aquele julgo idiota e --- embora nunca posto à prova – maligno do Osvaldo? Seria mais justo fazer a pergunta no singular. Era eu quem dava suporte à ascensão do Osvaldo. Afinal, era no quintal lá de casa que ficava a enorme casa de boneca da minha irmã, sede do Clube Infantil de Volta Redonda (C.I. V.R.), sempre gerenciado, talvez sem objetivos, mas sempre com gentileza. Na administração do Osvaldo, a volúpia tomou forma, assim como a ambição. Desavenças começaram a brotar no grupo, unido em tudo, principalmente nas tolices. E a T.S., que nos lançaria num mundo completamente diverso do nosso, naufragara antes de qualquer ação maquiavélica.

2 comentários:

  1. belo episódio. e estou falando sério, isso dava uma série para televisão.

    claro que você se rasgaria por dentro por força do que a dramatização obrigaria, mas faz parte.

    a essência seria mantida, afinal você é essencial.

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  2. operei a vista ontem, de modos que está meio ruim de escrever. mas acredito que na terça já esteja ok. foi catarata. inté.

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