terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Pneu furado

Isso aconteceu ainda na fase “porra louca” de meu pai, quando minha mãe ainda era viva. Não sei o ano; sequer garanto a década. Vou ser o mais preciso possível: foi entre 1975 e 1983, respectivamente, o ano seguinte à fratura da perna direita de d. Leonor e o ano da morte dela.

Minha irmã Nora “encontrou casualmente” meu pai no bairro do Aterrado, num bar em frente à delegacia. Isso a uns cinco quilômetros de casa, uma ida de ônibus da Vila ao lá e às 11 da noite. Mas Norinha o convenceu de que estava na casa de uma amiga. Voltava para a Vila quando passando em frente ao botequim que meu pai freqüentava, divisou-o numa mesa junto a velhos e novos amigos de bar.

- Oi, pai - apressou-se ela a cumprimentar o Celinho, antes que algum daqueles vira-latas que o acompanhavam mexesse com ela.

Livre do constrangimento que um gracejo poderia desencadear, Norinha sapecou dois beijos nas faces semi-barbeadas do pai e continuou:

-- Eu estava na casa de uma amiga, a Dilma, quando passei em frente ao bar e vi o senhor. Aí, pensei: “vou esperar ele acabar o papo e pegar uma carona com o Celinho”.

Tão logo ela chegou, fez-se silêncio na mesa e um velho conhecido de meu pai – não posso chamar aqueles trastes de amigos – até cumprimentou-a.

--E aí, Eleonorinha. Acompanhando o pai? Cadê o cavaquinho, Celinho? Busca ele no carro, vai – disse Hamilton, o único daquela corja que não tinha interesse em jogo com meu pai.

Celinho odiava quando chamavam o bandolim dele de cavaquinho. Para ele era uma depreciação. Não tanto, embora também, pelo diminutivo; mais pela completa ignorância musical de quem confundia os instrumentos.

Mas foi minha irmã que gelou diante da possibilidade de ter que acompanhar o pai,numa quinta-feira, saindo sabe-se lá que horas do boteco. O dia começava cedo para ela na Cobrapi, uma empresa que prestava serviços à C.S.N.

Mas indiferente ao pedido de Hamilton, farmacêutico do hospital da companhia, e da troca indesejável de seu bandolim pelo cavaquinho, Celinho pediu ao garçom “a dolorosa”, isto é, a conta. Pagou aquela montanha de cervejas e pratos de aperitivos, consumidos por ele e mais sete camaradas, que falsamente e sem qualquer convicção protestaram diante do pronto pagamento.

E foi-se embora com a Norinha, despedindo-se apenas de um – o Hamilton – e outro. Na verdade, ele conhecia bem seu séquito de aduladores.

Logo que entraram no fusca – meu pai teve vários fuscas – 1.300 cilindradas, branco, minha irmã notou que não seria tarefa das mais tranqüilas chegarem sãos e salvos em casa. Saindo da frente do botequim, onde tinha estacionado, meu pai quase bateu num TL que vinha em sentido contrário.

Mas Norinha tinha know-how em viver perigosamente, tantas vezes no banco de carona com meu pai dirigindo alcoolizado. Ainda bem que embora em outro bairro, o caminho até minha casa era uma enorme reta. Mesmo assim, antes do meio do percurso -- a rodoviária da cidade – meu pai acelerou demais da conta e só parou quando ficou engastalhado num guard-rail que dividia as pistas e o pneu dianteiro direito furou. Graças a Deus, o baque e o esporro foram maiores do que os estragos: meu pai e Norinha saíram do carro ilesos.
¬-- Tudo bem, Nora? – tratou de certificar-se o que a aparência de minha irmã denotava, apenas susto.
-- Hã, hã...E com o senhor, tudo tranquilo? –respondeu e perguntou Norinha.
Sim,estava tudo normal. Minha irmã soube disso tão logo Celinho exclamou, com voz pastosa:

-- Puta que pariu! Como é que deixam esta bosta no meio da pista? Alguém tinha que bater!

Caraca!! O cara estava maldizendo o guard-rail que separava as pistas. É bem verdade que já estava todo destroçado mesmo antes de meu pai passar por cima dele. Mas se não fossem os restos do obstáculo, o fusca atravessaria para o outro lado, só parando num veículo vindo em sentido contrário ou num muro chapiscado do outro lado. Os destroços da divisória haviam salvado os dois.
Continuou com a cantilena alterada pelas cervejas muito além do razoável:

-- E agura? Estamos fodidos e mal pagos. Já passam de 11 da noite e vai ser ruim a gente conseguir ajuda.

Nora estranhou a fala recheada de palavrões. Não que o Celinho não os usasse. Falava, e muito!! Era um senhor boca-suja!! Mas aqueles palavrões nada tinham do tom irreverente do meu pai. Mas Norinha creditou o timbre áspero ao grau etílico em que nosso pai se encontrava.

Celinho tomou coragem para ver o estrago no valente fusquinha. Aproximando-se do parachoques dianteiro e constatou que os únicos danos foram o pneu direto furado e algumas avarias na lataria dos dois paralamas, mas isso é o que mais tinha no fusquinha, agredido que era todo dia pelo Celinho.

-- Vamos ver se funciona – disse o pai para Nora, enquanto virava a chave, com o carro em ponto morto. O fusquinha deu sinal de vida quando Celinho acelerou, fazendo esporro.

-- Acho que foi só o pneu furado – disse Celinho, sem descer do carro.

Manobrou o fusca, livrando-o dos destroços do guard-rail, desceu e retirou o estepe – careca que só – do capô dianteiro. Começou a desaparafusar o pneu, mas pela sucessão de palavrões proferidos, não estava logrando êxito.

Nisso, minha irmã vê dois sujeitos se aproximando do meio da pista, onde ela e Celinho – naquele momento brigando com o f%$#@ do pneu e aquela p%$#@ de chave de boca – estavam. Um negão, imenso, com cara de poucos amigos, e outro de cabelos castanhos-claro, quase louro, barba agreste por fazer.

Se estivesse falando, como era seu costume, Norinha teria se calado. Na falta de assunto, só alertou o pai, temerosa de que saqueadores tivessem descoberto a diligência avariada.

- Pai, pai - disse, aproximando-se do Celinho, que se contorcia em força inútil contra aqueles parafusos do c%$#@.

Sem tirar os olhos dos recém-chegados, ouviu do negão-armário:

- Boa noite! Cês estão precisando de ajuda?

Celinho, que apesar das ardvertências da Nora, só agora se deva conta de que não estavam mais sozinhos, não mediu palavras:

- Claro que não, Pedro Bó (antigo personagem de um programa do Chico Anísio, consagrado por só fazer perguntas óbvias) – disse Celinho, que à voz pastosa e ao bafo de cerveja, juntara suor farto e inglório na tentativa de trocar o pneu. - Tá f%$#@...

O negão, com cara de poucos amigos, abriu um sorriso e disse, inclinando-se para o lourinho:
-- Ta tranquilo. Deixa com a gente – disse, tomando das mãos do pai (ia empregando “meu” pai, esquecendo que quem co-protagonizou o episódio foi a Nora) a chave de boca imunda.

Os caras eram operários do alto-forno da Companhia. E entravam à meia-noite. Moravam ali perto, eram vizinhos e estavam indo para o trabalho, quando os viram em dificuldades.

Os parafusos estavam bem arrochados. O negão teve que fazer careta para conseguir afrouxá-los.

E enquanto os dois davam o maior duro, Celinho olha o relógio (um Eternamatic, com ponteiros verdes e discretos, fundo escuro e pulseira metálica. Lembro-me do relógio como se o tivesse visto ontem!!) e começou a resmungar:

- Puta que o pariu! Dois sujeitos grandes e a maior demora para trocar um mísero pneu!

Celinho não falava alto, mas também não escondia sua irritação. Norinha, envergonhada com a ingratidão do pai, era muito atenciosa; perguntava coisas desinteressantes, tals como era trabalhar no turno de meia-noite às 8h e qual era a função de um soldador, profissão do negão, chamado Cosme.

Pouco depois, Celinho dava nítidas mostras de sua impaciência. Ora chutava o ar, ora falava para os caras escutarem mesmo:

- Caralho, se fosse eu, trocaria esta merda de pneu em cinco minutos.Estes “bostas n’água” (um dos muitos xingamentos peculiares que ele adorava usar) estão demorando um século para botar este estepe!

Os caras pareciam compreender o estado de meu pai, tanto que terminado o trabalho, botaram o pneu furado junto com a chave de boca no capô, bateram o mesmo e sorrindo, Cosme – que de poucos amigos só tinha a cara – ao fim da “eternidade” segundo o meu pai, 11 minutos em qualquer relógio, despediu-se:

-- Prontinho. Ta trocado.

Ao que Celinho, gesticulando para o alto, retrucou;

-- Até que enfim. Já não era sem tempo.

E continuou, apressado e zombeteiro:

-- Vamos, vamos! Entra no carro, Norinha E vocês, Cosme e – o loirinho não se apresentou e Celinho não podia perder o gracejo – Damião, eu deixo vocês na entrada da Usina perto da Vila.

--Não precisa não, doutor Célio – disse o lourinho, mostrando que além de reconhecê-lo, sabia que ele era advogado e adorava o título. - E o meu nome não é Damião, é Lincoln. Sou filho do Seu Alberto, da peixaria da Rua Amaral Peixoto. O senhor salvou a vida dele, quando ele teve um ataque cardíaco e o internou, no peito e na marra, no hospital da C.S.N.. Meu pai vai ficar muito contente ao saber que eu ajudei, ainda que um tiquinho só, o senhor. Bem, boa noite e vão com Deus.

Dizendo isso, Lincoln e Cosme, que também se despedira, tomaram o rumo da Companhia.

Celinho permaneceu estático alguns segundos no volante do carro. Norinha sorriu seu sorriso mais saboroso.

O pai e a Nora chegaram em casa cinco minutos mais tarde sem atropelos e sem trocarem palavra.
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5 comentários:

  1. Uma apresentação, umas viradas, um clímax, uma coda. Um personagem, um anti-herói, uma transformação. Um tema, uma premissa.

    Sei que não é ficção mas... será que esta história, e talvez por nâo você não ter participado diretamente dela, foi mais dramatizada do que as outras?

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  2. Pra deixar claro, adorei a cronica, mesmo que nao consiga acentuar nada disso.

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  3. brigado, décio. me liga quando voltar.

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  4. Adorei! Que final! A leitura das suas crônicas é sempre agradável e divertida, mas essa pegou na veia. Você vai nos levando como quem não quer nada e nos deixa com um belo sorriso nos lábios no desfecho do tal nada é por acaso. E não é mesmo, né? Muitos beijos (uns 5 pelos menos nesse dia especial). Bella.

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  5. Bella, todos os outros textos são tal e qual eu me lembro. às vezes, s´eu me lembro. Mas é como eu me lembro. E num sei porque, o comentário da lu tá no post anterior.

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