segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Tênis no toró 1.2 (lembrança do turteis)

Eis que me ergo do sofá-cama, puto, e aos primeiros acordes de “A volta do boêmio” (“Boemia, aqui me tens de regresso/e suplicante te peço a minha nova inscrição”), sucesso imortalizado por Nelson Gonçalves, nas vozes zombeteiras de Enéas e Artur, pego um par de tênis e isolo um por um pela janela da casa do Pontal, em Angra.

Chovia horrores, mas a janela estava escancarada por conta do calor e como não chovia de vento, a água não respingava no quarto.

Ao meu ato, bradei, silhueta iluminada por raios que a tempestade vomitava, intensificando o toró (de “silhueta” até “toró” foi só para conferir dramaticidade à ação):
-- Eu avisei! Agora quero ver neguinho ir buscar o tênis lá fora com esta chuva!!

Naquele dia de janeiro de 1977choveu pesado até às 6 da tarde, quando a chuva deu uma estiada boa e conseguimos ir ao I.C.A.R.

Éramos em cinco: eu, Cláudio Esperança, Enéas, Lair e Artur, este já um músico fabuloso (tem um dom raro mesmo entre os músicos consagrados – ouvido absoluto). E obviamente sempre o Artur levava consigo um instrumento -- naquela noite, um violão. Ele, hoje um maestro, naquele tempo já era o centro de qualquer rodinha: bastava alguém cantarolar um fraseado que ele tirava a música. Isso é ouvido absoluto.

Bem, sentamos numa mesa e logo começou a juntar gente. Artur tocou as indefectíveis e, por isso mesmo, insuportáveis “Andança” e “Travessia”, e mais umas dez músicas. Mas nos mandamos de volta para casa quando começou a ventar forte do mar para o continente, sinal de que chuva forte não tardaria a cair.

Estranhamente – não sou um cara mau-humorado – estava chateado. Um pouco pelo chuvaréu que fez daquele dia um tédio, muito pela presença do Lair passando dias lá em casa.

Lair era um cara legal, jogava pelada com a gente, foi titular da primeira seleção de basquete do Clube Recreio do Trabalhador, formada pelo Paulinho Camargo. Nada contra, em absoluto.

Mas estava pau da vida, porque eu, o dono da casa, não o havia convidado para ficar lá com a gente. Íamos sempre a Angra e calhou de esbarrarmos com ele. Lair estava na casa de primos e dali a dois dias ia embora para Volta.

No dia seguinte, o encontramos novamente em frente a um supermercado. Até passamos um constrangimento juntos: entramos no mercado, três de nós – acho que o Cláudio e o Artur não fizeram a besteira – abrimos iogurtes, tomamos e jogamos no lixo do mercado, antes de irmos ao caixa pagar nossas compras: pão de forma, margarina, leite longa-vida, miojo, velas e outros itens de sobrevivência na meia-água sem luz.
A caixa cobrou-nos:
-- $ (não me lembro a moeda e o valor é chute) 28,80.
Tirei $30 do bolso e dei para ela.
Nisso ouvimos a voz possante de um segurança:
-- Cobra mais $ 2,40, Marta. $ 0,80 por cada iogurte que estes “senhores” tomaram no passeio pelo Epa (nome fictício do mercado).
Sequer tentamos uma desculpa esfarrapada. Rubros de vergonha, coletamos mais $1,20 e demos no pé, rapidinho.

Quando íamos para o terminal rodoviário pegar o ônibus para o Pontal, Lair veio atrás.
-- Ei, ei. Vou ficar com vocês --
disse ele, que só trazia uma mochila não muito cheia. – Tinha decidido ir embora hoje mesmo. Já ia para a rodoviária quando encontrei vocês. E já é sexta. Posso muito bem ficar com vocês até segunda.

Cabia a mim cortar a permanência dele conosco, Afinal, a casa era minha. Eu era o senhor do castelo. Sem luz, com água fria, calor, mosquitos, mas era o meu castelo. Sua decisão de ficar entre nós sem qualquer consulta me deixou puto. Mas como era de meu (péssimo) feitio, não fiz qualquer objeção.

Bem, uma vez explicada a razão do meu azedume, voltemos para o meu brado, naquela noite tenebrosa. Tínhamos, diante da ameaça de chuva, voltado para casa antes das 10 da noite.
Chegando em casa, estendemos as duas redes na varanda, Artur, de violão em punho, puxava músicas bacanas de Milton e Gonzaginha, mas esquecêramos que nenhum de nós tinha voz. Mesmo o Artur tinha uma voz de pequeno alcance. E rapidamente começaram as galhofas tocadas por Artur, interpretadas por Enéas e Lair. Sei que aquelas asneiras foram me enchendo o saco. Quando esboçaram “Mariazinha do bole-bole”, me levantei da rede.

-- Chega! Vou dormir, que é o melhor que eu faço. E vê se não fazem muito esporro, tá? – fui para o quarto, seguido pelo Cláudio, também puto com a cantoria.
Fechamos a porta, mas a cantoria desafinada prosseguia, agora mais alta. Berrei lá de dentro:
-- Podem diminuir o volume?
Pelo sorteio, o sofá-cama cabia a mim e ao Artur. Cláudio dormia num dos colchões num canto do quarto.
Por alguns segundos, a cantoria cessou. Mas deu lugar a risos abafados, sinal que a sacanagem continuaria.

A chuva era intensa em volume, mas nada de vento. Os caras – Enéas, Artur e Lair – foram miar debaixo da janela escancarada, já que tinha uma laje de uns 30 centímetros em torno de toda a casa. Cantaram uma besteira qualquer e, rindo, voltaram correndo para as redes.

Ainda dei uma de macho, saindo do quarto e ameaçando:

-- Porra, num dá pra sossegar o facho, não? Guarda um pouco deste humor para amanhã... Eu tô avisando, já estou cansado, quero dormir...

--Ah, ele tá cansadinho...Vamos fazer silêncio, gente – desdenhou Enéas.

Novo silêncio entrecortado por risadinhas. Bem próximo da porta, acordes, gargalhadas e cantoria rápida. Não mexi um músculo. Voltaram a cantarolar perto da porta, esperando que eu saísse do quarto. Como não saí, Enéas e Artur adentraram o quarto – Lair ficou na rede – cantarolando “Boêmio”.


Eis que me ergo do sofá-cama, puto, e diante de zombeteiros Enéas e Artur, pego um par de tênis e isolo um por um pela janela da casa do Pontal, em Angra.

Ao meu ato, bradei, silhueta iluminada por raios que a tempestade vomitava, intensificando o toró (de “silhueta” até “toró” foi só para conferir dramaticidade à ação):
-- Eu avisei! Agora quero ver neguinho ir buscar o tênis lá fora com esta chuva!! (Ei, ei, eu já vi isso antes. Será que foi no cinema? Observação: isto é ironia, claro. Este é um recurso relativamente comum no cinema. Narrar um fato, recorrer a flashbacks até chegar à tal ação novamente e continuar daí a narrativa.)
Imediatamente Enéas vai até onde estavam as coisas dele, tateia no breu e encontra seu par de tênis. Entre risadas dispara:
-- Meu tênis táqui.
Artur procura os seus, os encontra e também anuncia, intensificando as risadas:
-- Os meus também estão a salvo.
Como os do Lair estavam nos pés dele, e o Claudio, meu aliado, comentou, sem conter o sorriso – uma vez que a situação era engraçada pacas - que os dele também estavam livres da chuva, só me restou dormir mais furibundo ainda. Com aquele tiro no pé, minha moral caíra e escorria como a chuva que encharcava os meus tênis.
Os caras resolveram acabar com a cantoria e vieram dormir. Trocaram um monte de gracejos diante da minha hilariante vacilada, mas o que realmente me incomodava, até cair no sono, eram as risadinhas abafadas do Enéas deitado no colchão dele.

2 comentários:

  1. você já tava dramático quando "bradou". com a "silhueta", e até o "toró", só reforçou a ironia da situação.

    mas é bom terminar logo essa crônica porque a chuva não tá com cara de que cessa tão cedo. e o tênis, lá fora, é seu.

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  2. eu nem comecei a segunda parte de t~enis no toró. e num tem nada a ver com este episódio, apenas os mesmos personagens... só escrevi esta na frente de umas oito já começadas por conta da lembrança -- engraçadíssima - do artur. talvez a continuação fique para mais tarde. vamos ver.

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